NATUREZA VIVA
NATUREZA VIVA
O mar estava furioso. Arremessava-se com ímpeto contra os rochedos, parecia espumar de raiva, as embarcações atracadas pareciam barcos de papel, e era açoitado impiedosamente pelas suas águas severas que pareciam querer tragá-los.
O céu cinzento-escuro espiava toda essa refrega, debruçado sobre grossas nuvens que pareciam estar carrancudas.
O Sol intimidou-se ante o quadro dantesco pintado pelas mãos da natureza e bateu apressadamente em retirada sem nenhum protesto, sem nenhuma objeção.
O vento soprava com furor incomum, a todo pulmão. Os galhos nas árvores pendiam fragilizados, pareciam que iam partir-se ao meio, e alguns partiram-se, não resistiram à aquela força desproporcional.
As folhas roçavam-se freneticamente sem nenhuma libido, algumas despencavam vertiginosamente, outras ficavam balouçando desgovernadas ao capricho da possante viração, pareciam gangorras indo e vindo, pareciam subjugadas, e obedeciam.
Descargas elétricas cortavam o céu de ponta a ponta iluminando-o de forma ameaçadora e logo em seguida, um vento agudo rugia com voz rouca e intimidatória., e seus rugidos eram ouvidos a quilômetros de distância.
Grossos pingos de chuva começaram a precipitarem-se abruptos e ferinos, anunciando o temporal egrégio e voraz que não tardou a se fazer presente. Os barcos eram arremessados uns contra os outros e os mais fortes venciam a peleja.
Os rochedos imponentes pareciam alheios aos acontecimentos, alguns, horas sumiam naquela imensidão de água devastadora para depois ressurgirem intactos até certo ponto, pois as águas ferinas como línguas de fogo, aparavam as suas arestas.
Doutras vezes, essas águas explodiam com fúria desmesurada e eles impolutamente não se abalavam, não arredavam o pé, continuavam incólumes como se as desafiassem, de outras vezes pareciam sorrir ante as insistências desnecessárias.
Alguns galhos sim, não resistiram, e sucumbiram e ficaram boiando desorientados pareciam braços inermes sobre aquelas águas bravias pedindo socorro, outros airosamente venceram a batalha e se refrescavam.
As águas arrastavam sem piedade a tudo o que encontrava pela frente, lambiam com língua de fogo, e deixava um rastro de nuvens de fumaças esbranquiçadas, destemida, aniquilavam e deixavam atrás de si resquícios de destruição inexpugnável.
O vento, igual serpenteava ferinamente, em ziguezague impávido, senhor de si, chicoteava a face da terra impiedosamente.
As nuvens continuavam atritando-se, e os clarões iluminavam o zimbório deixando trilhas de luz, os ribombos intimidantes eram como se emergissem das entranhas da terra e mais se pareciam tropéis de cavalos enfurecidos disparando a toda velocidade fazendo estremecer o solo.
Dona Joaquina Alcântara, esposa do senhor Teles Alcântara, como de costume nesses momentos, cobria todos os vidros e espelhos da casa, com pesadas toalhas, e desligava os eletrodomésticos os retirando da tomada, aprendera tal expediente com sua mãe, que por sua vez recebera a lição de sua avó, e ficava quietinha com dois terços nas mãos rezando rogando as intervenções necessárias do alto.
Os estrondos podiam ser ouvidos a milhares de quilômetros de distância, os raios em trajetórias sinuosas com suas ramificações irregulares pareciam dimanar do infinito pareciam flechas envenenadas e riscavam o céu abruptamente e precipitavam-se sobre o chão.
Após algumas horas angustiantes que pareciam não ter fim, finalmente após grande apreensão, os ânimos serenaram, a bonança apresentou seu cartão de visita, e acenava naquele cenário desolador o lenço branco da paz.
Chegou até certo ponto titubeante, tímida, mas, depois se impôs e a sua vontade era obedecida, a borrasca de algumas horas atrás era substituída por uma brisa afável.
Os ventos acalmaram-se e já não soprava com tanta irritabilidade e toda agrura, e pouco a pouco, foi arrefecendo o seu ânimo e mar, antes indócil, e bravio, estava calmo, sereno!
Também cessaram os fragores ameaçadores, o céu parecia em paz consigo mesmo, e já se podia ver um azul esmaecido se apresentando sem muita pressa, porém resoluto, mostrando que as coisas voltaram aos seus devidos lugares.
As nuvens, aos poucos, foram perdendo aquele ar sombrio e ameaçador, as folhas sacudiam-se, tiraram o excesso de chuvas sobre si, alguns pingos teimaram e ficaram teimosamente, e emprestavam ainda mais beleza.
Ainda chovia, todavia era chuva de menor intensidade, algumas gotas que ficaram retidas nas folhas, nas copas das árvores, pareciam pérolas presas a essas superfícies refletindo a luz do Sol que voltara de mãos dadas com a calmaria benfazeja.
Os rochedos continuavam soberbos! As nuvens pacificaram-se de vez; as embarcações que resistiram à fúria das águas caudalosas, agora balouçavam tranquilas ouvindo as canções de ninar que vinham da boca do vento, e sorriam, sorriam agradecidas.
A tempestade calara a sua voz a sua fúria dava lugar agora a uma serenidade.
E essa aragem amena envolvia todo o ambiente, a cúpula celeste, que até instantes atrás dava nítida impressão que iria rasgar-se, e dela emergiriam os deuses encolerizados que se abateriam vingativos sobre a humanidade, agora era uma abóbada radiante, translúcida, natureza viva.
Aplacara-se assim a exaltação da natureza que se regozijava em ver as flores sorrindo novamente sem medo os pássaros cantavam alegremente, verdadeira sinfonia podia ser ouvida, e embevecia a todos, saíram de seus esconderijos, estavam confiantes, e o vento soprava amigavelmente sobre suas asas. Alguns intentaram o voo, e o fizeram de maneira graciosa, eram livres, tinha o mundo a sua frente.
Alguns pescadores foram ver os estragos, contabilizaram a olho nu as perdas os estragos eram muitos, sim, e devastadores, alguns mais destemidos, sob o protesto dos remendos improvisados nos cascos mostravam a intenção de se aventurarem, pareciam não ter aprendido as lições alguns desistiram, mostram bom censo, outros, contudo zarparam, e mais tarde tiveram que ser socorridos, os remendos reclamavam a mão de obra precária, e a água já se, se insinuava.
As lojas no grande centro que haviam fechado suas portas agora as descerravam, e os primeiros transeuntes arriscavam-se acanhados, também fazendo uma avaliação e observando o lixo que se amontoara ao longo das vias, muitos detritos de toda natureza, como saldo negativo impiedoso de devastação, aquela borrasca que se abatera furiosamente sobre eles naquela manhã de 13 de outubro, que jamais será esquecida.
Os coletivos com seus faróis acesos arrastavam-se ainda mais lentos, os carros os imitavam e os seguiam nessa mesma procissão, apressa inimiga da perfeição impunha respeito.
O mar estava sossegado, amigável, as ondas vinham mansas beijar a areia, e cochichava alguma coisa, e elas sorriam confirmando os galanteios, e dengosas deixava-se cortejar.
Algumas velas agora de forma prudente foram eriçadas, após vistoria acurada e criteriosa, e arfava alegremente ao sabor do vento amigo, espetáculo indizível, aquele colorido das velas era uma atração a parte, embarcações de todos os portes, e elas singraram calmamente sobre o espelho d’água tranquilamente, eram muitas, e parecia uma grande romaria., uma procissão em agradecimento à mãe natureza.
Serenara o acendimento da natureza, havia tranquilidade e confiança, aqueles momentos atrozes eram passados, por certo não sairia das lembranças de cada qual, porém, menos apreensivos procuravam seguir suas rotinas.
O sol fez-se mais forte, mais robusto, mais intenso, seus raios vinham beijar os primeiros curiosos que se aglomeravam a beira da praia abençoando aquela romaria, pescadores iam a busca do seu sustento e o sustento das suas família, e além do mais tinha compromissos com os grandes fornecedores que dependiam dele, e vice-versa.
D. Joaquina, nesse exato momento, terminava as suas preces de agradecimento, estava convicta, convencida, que os seus apelos foram ouvidos, e Nossa Senhora, agora derramava bênçãos sobre todos, sobre todos os seus filhos, aquém ama, e jamais negara o devido socorro.
O Sol acelerou os passos apressadamente e com muita vontade, as aves recolheram-se aos seus poleiros naturais, a lua surgiu airosa e brejeira, brisas convidativas sopravam com lábios sensuais, e se ofereciam. Quando o Sol voltou para casa, a Lua se fez presente, risonha e contente na sua Lua cheia. As estrelas a acompanharam, e também exprimia o seu contentamento, e salpica o céu com seu pisca-pisca singular.
Os coletivos agora estavam mais vivazes e traziam nos seus interiores trabalhadores cansados, que tiveram a árdua e importante tarefa da reconstrução, e já se pensavam como seria a labuta do dia seguinte, e traçavam planos apesar do cansaço, alguns mesmos extenuados, porém felizes por poderem ser uteis. O homem pode constatar mais uma vez inexoravelmente do alto de toda sua fatuidade, egoísmo, prepotência, irreverências desmedidas, o quão frágeis, e devem curvar-se ante essa Força Superior, à qual ele pode denominar com o nome que quiser. Porém, que eu a chamo de Deus!
A apreensão de horas atrás, o grande temor que rondava a todos, apesar do homem se julgar como autossuficiente, agora dava lugar à tranquilidade, e podia se ouvir a música da esperança, e cada qual assimilou o acontecimento dentro das suas possibilidades da sua compreensão, contudo era notório todos acreditavam piamente em algo bem maior, bem maior do que a vontade deles estava no controle, e por isso eles não deveriam temer, deveriam sim curvar-se, curvar-se a essa força maior qualquer que fossem as crenças deles.
As estrelas surgiram iluminando ainda mais o céu, as ondas vinham e banhavam os rochedos, que agradeciam o banho noturno. As ondas viam seguiam, e deitavam-se na areia e voltavam para recomeçar um ciclo fantástico de belezas indescritíveis que não precisava ação humana, pelo contrário, estes devem agradecer sempre genuflexos.
Na casa de D. Joaquina, as últimas lâmpadas silenciaram-se, podia-se ver um único clarão vindo da sua residência como conseqência das suas preces.
Albérico Silva