A VIDA CONTINUA
A VIDA CONTINUA
O Sol se poupava, e havia poucos raios de luz incisivos sobre a calçada, tímidas aquarelas colorindo o chão, imagens desbotadas, reflexos dos nossos cotidianos.
Ele andava a passos largos, parecia ter a pressa do mundo, olhar baixo, praticamente corria com as pernas curtas que lhe impunha certas dificuldades, as quais ele vencia com determinação, é que se ele perdesse aquela condução que sairia ali do ponto da praça exatamente como relógio britânico às seis horas e quinze minutos, ele só viajaria dali à uma hora, quando teria outra viagem cobrindo mesmo roteiro, por essas e outras razões que ainda não sabíamos, ele praticamente corria, quando saia da loja 23, uma loja de material de construção, A Mão De Obra, onde ele trabalhava no caixa, há exatos 28 anos.
Essa era a sua rotina, chegava também não menos apressado por volta das cinco horas e trinta minutos, quando o dia ainda estava meio sonolento, adentrava e fechava as portas atrás de si, para abri-la pontualmente às oito horas, nesse ínterim, aproveitava para colocar as coisas ainda mais em ordem, acreditava que todos os setores eram igualmente importantes, almoxarifado, departamento de pessoal, entre outros, mas entendia piamente que o caixa da empresa é local sagrado, e colaborava de forma decisiva com o setor de contabilidade da empresa.
A Mão De Obra, era a casa mais frequentada da região, em que pese à fama de careira, contudo, Antônio Carlos, esse era o seu nome, contava com uma freguesia cativa, em função do ótimo serviço prestado, assim como pela qualidade de seus materiais, podia-se dizer que as pessoas mais abastados da região eram seus clientes.
As coisas corriam tranquilas como sempre, seu Antonio, aparentava uns quarenta e dois anos, há quem cravaria na sorte, ao sustentar que ele beirava a casa dos sessenta, o certo é que, ninguém sabia a sua idade, creio que isso era mistério até mesmo para a sua família, ele argumentava que sua certidão de nascimento não condizia com a verdade, pois seu pai ao registrá-lo anos depois se equivocara, carregando nos números.
Clóvis Dantas era o dono do estabelecimento, e o empregara a vinte e oito anos atrás, aquele menino franzino, vindo tocado pela seca, das regiões do sertão da Bahia.
Bem enfrente à sua loja, Antonio havia notado uma movimentação fora do comum, é que máquinas e homens chegavam e saiam apressados, dias depois ele ficou sabendo que todo aquele burburinho, toda aquela movimentação, era por conta da demolição dos casarões da família Cedro Paz, que tinham sido adquiridos por um grande empresário vindo das bandas do Sul, com o fito de ali expandir os seus negócios.
A demolição começou a todo vapor, e em que pese às medidas adotadas no intuito de minimizar os constrangimentos que deveriam advir, e que fugia ao controle do dono da obra, a poeira incessante começou cobrir o bairro, tingindo-o com uma nuvem espessa de barro amarelado, isso desgostou profundamente Sr.Antônio muito mais do que o Sr. Clovis, a poeira estava dando início aos contra tempo pelos quais passariam.
Os protestos, dos demais comerciantes, foram estéreis, inócuos, pois respaldados por uma licença da Prefeitura, as obras continuaram a todo vapor,
os clientes de Sr. Antonio reclamavam da poeira e do incômodo, da lama, daquele ar carregado, viciado, e da presença maciça de trabalhadores seminus, que eram responsáveis pelo progresso que se avizinhava e não tinham culpa alguma, eram trabalhadores como toda gente e estavam ali defendendo o seu pão de cada dia.
Porém a hostilidade era visível por parte dos mais conservadores, e entre eles, Epaminondas dono de uma Concessionária demonstrava o seu inconformismo e veementemente protestava, chegando mesmo ir à Prefeitura liderando um grupo de empresários locais buscando a todo custo à paralisação da obra, não lograram êxito,e ele no entanto não sabia que daqui alguns meses em função do seu ramo de atividade, seria ele bastante beneficiado.
As obras transcorreram agora já se via as primeiras ferragens imponentes da fundação, que revelavam que ali seria erguido um prédio majestoso. Todos estavam curiosos, queriam descobrir a todo custo, que atividade seria ali explorada, por aquele empresário que demonstrava grande força de capital.
Antônio, responsável como fora dito pelo caixa da empresa, rodava virava dava uma forcinha também na gerência, continuava com os mesmos hábitos, taciturno além do normal, os passos também pareceram ficar mais difíceis, e céleres ao mesmo tempo, ele passou a falar com as mãos, a resmungar e seus olhos de vezem quando pareciam perdidos, olhando para tudo e para o nada.
Finalmente descobriu-se por que tanta pressa para voltar para casa, e por que de lá não arredava os pés quando não estava trabalhando, uma parenta sua que viera há alguns dias dar região inóspita, de onde ele fora tocado, às pressas só com a roupa do corpo, sob a severa possibilidade de sucumbir a qualquer tempo, pois a fome é cruel, viera tratar-se de uma doença de pele, que já estava em estado avançado, e deixou escapar o segredo que o Sr. Antonio, guardava sob sete chaves.
Na realidade o mesmo cuidava todos esses anos, de sua uma mãe que contrairá Alzheimer, e estava com setenta e dois anos de idade.
Quando ele ia trabalhar, pagava a uma sua vizinha de prenome Cândida, para ficar com sua mãezinha e fazer frente aos cuidados necessários, dai sua pressa para voltar à residência, dai o sedentarismo, tudo em nome do amor que tinha pela mãe, filho do meio, foi o único que arribara, e quando ela começou a apresentar os sintomas inicias da doença, seus irmãos a mandaram para sua casa, e ele a recebeu de braços e coração abertos.
D. Júlia, já estava com ele há uns nove anos, e todo esse tempo ele se dedicou fervorosamente, buscando dar-lhe todo o conforto possível e minorar seus sofrimentos, contudo o estado de D.Júlia, em que pese os cuidados, de D. Cândida, dos profissionais médicos que a acompanhavam e do zelo do filho extremoso, mostrava franco declínio.
E na manhã de seis de dezembro, véspera do seu aniversário, D. Júlia despediu-se do mundo e daquele sofrimento, para tristeza e desespero do seu filho, velório simples e na tarde do mesmo dia dava-se o sepultamento, a madrugada o encontrou sozinho com seus pensamentos, não conseguira pregar os olhos, e entre aquelas quatro paredes, revia o filme de sua vida, enquanto observava os pertences da mãe, que ainda estavam ali espalhados, fitou aquela cadeira de roda, que tinha sido as suas pernas nesses últimos anos, sentou-se nela, e chorou copiosamente as suas saudades.
Na manhã seguinte, ele já estava de pé como habitual, preparando-se para ir para o seu trabalho, o rosto parecia ter envelhecido abruptamente, a dor dos nos olhos demonstravam o duro sofrimento da noite passada, abriu a porta da casa, fecho-a atrás de si, os passos não estavam apressados como de costume, continua difíceis, mas parecia arrastar-se penosamente.
Com os últimos acontecimentos, esquecera-se por completo, dos vizinhos, os quais ele chamava de intrusos, e se surpreendeu ao ver que a obra já estava bem adiantada, três pavimentos construídos mostravam a intenção de alguns outros que viriam, ficou absorto olhando aquele prédio que subia verticalmente com grande empáfia e beleza.
Quando abriu a loja, alguns minutos depois chegou a família Clóvis Cunha, e não conseguiram demovê-lo da intenção de não trabalhar naquele dia, tanto é que desistiram, e Sr. Antônio, deu início a mais um expediente, e apesar da apatia desenvolveu suas atividades com o profissionalismo de sempre,
os transtornos, em face do adiantado da obra do prédio em frente, tinham minimizado, e agora já podia se ver um canteiro de obra organizado, uma maquete colocada naquela manhã revelava a suntuosidade da obra, assim como revelava um segredo bombástico, ali seria um grande Magazine, não só venderia os mesmos utensílios que Sr. Antônio os conhecia muito bem, mas como venderiam de tudo mais, não comercializariam carros, não era uma concessionária para alívio de Sr. Epaminondas.
Sr. Antônio gelou, ficou fitando aquela maquete por horas, e já via diante de si aquele prédio pronto, majestoso, o grande concorrente ditando regras, gente entrando e saindo, carros dos fregueses empilhando-se no estacionamento, parecia que seus olhos estavam hipnotizados, e seus pés também não se moviam, ele estava ali estático, absorto, contemplativo.
Os trabalhadores, impássemos, tocavam a obra para cima, carregamentos e mais carregamentos chegavam a toda hora, alguns curiosos postavam-se em frente daquela que seria o grande Magazine, Antônio saiu do seu estado de torpor, foi atender a alguns fregueses no tocante a alguns cheques que foram e voltaram.
O céu, começou deixar-se salpicar por algumas estrelas, as lâmpadas nos postes acenderam-se automaticamente, as lojas cerravam suas portas, os pontos de ônibus ganhavam grande aglomeração, os carros andavam com certa pressa, Sr Antônio, não, agora se arrastava, parecia costurar a calçada, seguia indolente, dispensou a condução e seguiu alquebrado, via-se a preocupação estampada no seu semblante seus olhos distantes por certo embalavam as lembranças dos últimos meses, e aquele Magazine, a viagem de sua querida mãe, as mudanças drásticas em sua vida, tudo mexia com ele de forma decisiva, ia contabilizando enquanto andava, e quando chegou à sua residência, passava das vinte horas, sentou-se na soleira da porta, demonstrava cansaço, e uma tristeza incomum, deixou-se ficar por horas sem coragem de entrar em casa.
Quando a coragem resolveu que já era hora, o fez com gesto dificílimo, as pernas não atendiam à sua vontade, praticamente arrastou-se, entrou, nenhuma lâmpada foi acesa, quem por ali passasse ouviria um misto de silêncio, e de soluços, um choro sentido carpido nas suas amarguras, nas suas lembranças, nas suas saudades.
A madrugada desse dia o encontrou como vinha acontecendo amiúde sem conseguir pregar os olhos, e quando raiou a alvorada fora testemunha dos sofrimentos atrozes pelos quais passava, logo, logo deveria dirigir-se à Capela local, a missa de ano em homenagem a sua querida mãe dar-se-ia por volta das sete horas e 30 minutos, ele barbeou-se como de costume, arrumou-se sem gosto, trajava uma calça de linho preta e uma camisa de manga comprida de seda azul-marinho, engoliu dois goles de café sem leite, sem companhia de algum sólido, e saiu rumo à Capela da Cidade, sozinho com seus pensamentos. Padre Gregório, começou a solenidades na hora marcada, suas palavras em louvor à mãe de Antônio e à Maria, mãe de Deus, todos que ali estavam presente emocionaram-se, o rosto do filho de D. Júlia , estava banhado de lágrimas, após o término das cerimônias, ele saiu silencioso, e rumou com passos apressados em virtude do adiantado da hora, para a casa de Construção, onde trabalhava, seria em mais de 28 anos,o primeiro dia que chegaria atrasado.
Lá chegando, se surpreendeu com a grande quantidade de pessoas que estavam na praça, como ele pode esquecer que logo mais seria a Inauguração do grande Magazine, o Magazine Tend Tudo, ele tremeu, o nome era sugestivo, e ao ver toda aquela gente e que pareciam felizes, notou que o Padre Gregório, que horas antes estava a interceder pela alma de sua mãezinha junto aos céus, agora intercederia rogando sucesso à debutante, não escondeu sua contrariedade, nem seu desapontamento, contudo entendia que era necessário que ele estivesse ali, representava a igreja local, era conhecido, e estimado por todos, ele não se colocava entre os concorrentes, estava exercendo seu sacerdócio, era bastante requisitado, sua oratória desafiou as fronteiras, falava no nome de Deus, e por Deus, com grande brio, parecia que anjos o acompanhava, sempre disseram isso a seu respeito, tranquilizou um pouco seu coração.
Às dez horas, deu-se início às solenidades de inauguração, o discurso de Padre Gregório agora era outro, ele tinha um para cada ocasião, falou bonito como sempre, e logo, logo uma fita imensa nas cores da loja era cortada, a dar entender simbolicamente que daquele momento em diante, o Magazine estava com suas portas abertas para o público, que não se fizeram de rogado e superlotaram as dependências da grande loja de departamento,
Senhor Antônio observava estarrecido, atônito, aquele grande alvoroço, e pode constatar que alguns de seus clientes, notadamente os clientes mais assíduos, também se dirigiam para a loja em frente, aquilo o acabrunhou, falou direto ao seu coração, a tal ponto que ele procurou refugiar-se no interior da sua loja, observava as prateleiras apinhadas de mercadoria, e nem uma viva alma como de costume, que já àquelas horas entravam e saiam da loja contentes após adquirirem tudo o que precisavam e as vezes compravam o supérfluo.
Os vendedores, em número de seis estavam de braços cruzados, e o observava compadecidos, ele tinha emagrecido, parecia ter diminuído de tamanho, aquele homem sóbrio, falava agora gesticulando com os braços, com todo o corpo em excesso, nem uma viva alma, nenhum cliente entrara na sua loja praticamente naquele dia, esse constrangimento o marcava na alma, os gestos dos braços pareciam ter serenado, ele todo tinha serenado, estava agora apático, à tardinha, como todos os dias, as coisas serenavam, as pessoas pareciam cansadas, em virtude de mais um dia de labutas, algumas lojas começaram a descer suas portas, o magazine, não, teria nesse dia de inauguração expediente até às 22horas, dando boas vindas aos clientes que eram presenteados comprando peças de grande qualidade pela metade do preço. Que cartão de visita interessante, que estratégia mirabolante, pensou ele, e a contragosto dava sua mão à palmatória.
Sr. Antonio rendeu-se inexoravelmente, Sr. Clóvis estava atônito, ainda não tinha caído a ficha de vez, fecharam as portas da Mão De Obra, no mesmo horário de todos os dias, ele pegou a sua sacola onde estava à marmita e só naquele instante se dera por conta, lembrou-se de que não havia almoçado, deu de ombros, e começou sua peregrinação de volta para casa, os mesmos passos de sempre, agora, porém sem a intenção de chegar logo em casa, sem nenhuma pressa.
Olhou furtivamente com olhar lânguido, para a loja rival, ao passar quase pela porta e admitiu comm o coração apertado o esplendor da mesma, e conjecturava com sigo mesmo, como seria dali por diante, era uma concorrência muito forte, e no fundo ele sabia que a Mão De Obra, não poderia fazer frente ao Novo Magazine, que inaugurara sua loja com preços bem acessíveis, além do mais com grandes novidades e variedades, atraindo a sua clientela, pela primeira vez sentiu medo, e uma dor atroz o oprimia,
a caminhada de volta para casa, o encontrava ensimesmado, quando chegou à sua residência, o fez com alguns minutos de atraso, é que nessa noite os passos foram ainda mais lentos e o arrastavam, parecia que ele não queria chegar a lugar nenhum, apenas deixava-se conduzir. Chegou, entrou, sentou-se sobre a velha cadeira, e ficou ali quieto, viu o vulto que acabara de chegar, era sua mãe, viera vê-lo, ela também tinha muitas saudades...
Na manhã seguinte o material de Construções Mão De Obra, não abrira suas portas como habitualmente, como rotineiramente fazia a várias décadas,
passados os três dias de luto, um moço jovem, aparentando uns vinte três anos, abria as portas da loja, tinha assumido seu posto.
Albérico Silva