A Caixa Branca
Atravessei a rua sem olhar os carros agressivos que quase me atropelavam e entrei no prédio sem que fosse visto. Subi os andares dos correios até o pavimento que despacha as encomendas. Na caixa que vim receber estão as ferramentas da minha próxima obra, e as cartas de Kriska, minha ex-mulher húngara, que me mandou estes instrumentos de trabalho, direto de Budapeste. Todas as noites, na última semana, esperei por este embrulho como uma coruja admira um noite nebulosa. Era justamente como eu pensava, uma caixa de papelão branco com logotipos carimbados por toda parte e uma etiqueta vermelha do correio húngaro. Enquanto a caixa continuava no balcão, para que eu assinasse protocolos de despachos e recibos de entrega, minhas mãos pediam para segurar a caixa branca com carimbos espalhados e etiquetas vermelhas do correio húngaro.
Cumpri meu processo burocrático e já começava a sair da sala, quando levantei os olhos para um senhor recebendo uma caixa no outro extremo do balcão. Um senhor com um terno azul de riscas, um lenço de seda branca no bolso, chapéu panamá, óculos escuros, que findavam a esconder o senhor atrás da barba fechada, porém muito bem aparada. O senhor de terno de risca saiu antes mesmo de me deixar ver seus sapatos bicolores. Precipitei-me a seguir o senhor de terno de riscas pelas ruas que seguiam adiante do prédio dos correios no centro da cidade. Muitas pessoas andando no meio de muitas outras pessoas que atravessam no caminho de todo mundo, e eu utilizando meu aprendizado em técnicas de disfarce, fazendo cara de todo mundo. Cara de todo mundo é muito utilizada pelos tímidos esquizofrênicos. É fazer algum tipo de sorriso em linha reta, com olhos de sobrancelha. Passar de lado pelos corredores da rua. E o senhor de terno de risca caminhava abraçado ao seu pacote, uma caixa branca com logotipos carimbados na frente e uma etiqueta vermelha do correio húngaro, só na frente, e a caixa é menor do que a minha. Estranho os carimbos só na frente – achava que minha caixa tinha carimbos por toda parte.
Andei cinco quarteirões há vinte passos do senhor de terno de riscas, já o conhecia depois daquele percurso. Seguia os seus passos no mesmo ritmo, na mesma intensidade, na mesma agonia – eu já sentia a agonia que o senhor de terno de riscas transpirava – quando esbarrei numa garota punk que lia uma revista enquanto andava na calçada, mascando chiclete de hortelã e distraída para o norte. A garota olhou pra mim com seus olhos pintados de preto ao redor e me esbofeteou com sua mão direita, ainda pude ver as unhas pintadas de uma cor intensa de vinho. Eu saí em disparada, para que minha caixa branca não caísse no chão enquanto eu levava uma corsa da punk. Achei que depois disso teria perdido o senhor de terno de riscas do meu alcance, mas não, eu ainda podia vê-lo com seu caminhar apressado e bem-postado. Aquele senhor de terno de riscas era um homem com pouco mais do que quarenta e cinco anos, devia ter um metro e oitenta de altura, setenta e cinco quilos, uma mente calculista e perfeccionista, pesadelos recorrentes, traumas de relações, unhas dos pés encravadas, pensamentos libidinosos com a ex-mulher e com a vizinha de cima, devia ouvir vozes. Consegui diminuir a distância que ficou maior depois que esbarrei na punk sem causa. Aquele senhor caminhava tão preso à caixa branca com carimbos e etiqueta, que se podia suspeitar de seu semblante assustado. O senhor de terno de riscas acelerou o passo depois de virar à direita na esquina da sapataria, indo em direção a uma loja de departamentos no fim da rua. Sobre esta loja de departamentos, vinte andares de apartamentos de um quarto e sala, quatro apartamentos por andar. Ali viviam as mais diferentes espécies de pessoas, das mais diferentes regiões do país; ladrões, prostitutas, contrabandistas, dois traficantes, um advogado de porta de cadeia, um motorista de ônibus, sete empregadas, dois balconistas de padaria, três garçonetes, um coveiro, cinco manicuras, cinqüenta e oito estudantes da faculdade federal, doze policiais, trezentos e dezessete viciados e um indivíduo que o senhor de terno de riscas conhecia. Comecei a aproximação quando chegávamos à loja de departamentos no final da rua. Eu cheguei tão perto que já podia ouvir o que se passava pela mente do senhor de terno de riscas. E ele pensava que devia manter sua caixa branca com carimbos e etiqueta bem presa em seus braços, pensava em chegar ao edifício sobre a loja de departamentos no final da rua, pensava em ir até o apartamento do indivíduo que conhecia naquele prédio, pensava em como o segurança particular da casa lotérica olhava-lhe como quem analisa alguém esquisito, pensava em como iria fugir.
Eu já o seguia sem me preocupar em ser notado. Ele não podia me perceber, de tão ocupado com seus pensamentos e estratagemas. Quando o senhor de terno de riscas atravessou o vestíbulo daquele edifício, eu entrei na loja de departamentos, fui para a sessão de roupas femininas e fiquei bisbilhotando as camisolas, lembrava de Kriska, minha ex-mulher húngara, quando ela me esperava em casa, tomada banho e sentada na cama, ela lia um livro de um poeta que não lembro o nome, mas do qual ainda lembro os versos que ela recitava, ela me esperava e parecia que eu não chegava nunca. Eu passei pelo corredor dos perfumes e, tive a impressão de sentir a fragrância azul do perfume de kriska, achei que ela estivesse bem atrás de mim, mas ela estava longe e meu olfato entorpecido. Encontrei o frasco de perfume, igual ao que ela tinha sobre sua penteadeira de mogno, desenrosquei a tampa e de fato era aquele cheiro, aquele cheiro que se espalhava pela nossa casa e que até hoje ainda vive em meus lençóis. Eu estava sozinho ali, naquela loja de departamentos, enquanto o homem com terno de riscas subia pelo precário elevador da década de cinqüenta; até chegar ao décimo terceiro andar, no apartamento onde morava o tal indivíduo que ele conhecia. Eu me perdia entre lembranças de Kriska, pensamentos do homem de terno de riscas e todo aquele tumulto de pessoas em busca das promoções imperdíveis, das liquidações de início de ano. Minha caixa branca com carimbos e etiqueta estava aberta. O homem de terno de riscas entrou no apartamento do indivíduo e não se demorou sequer dez minutos lá. Eu comecei a suar frio; a agonia do homem de terno de riscas havia invadido minha calma e destruído toda a minha lógica racional; então corri até a saída da loja de departamentos e ele, o homem de terno de riscas, corria para fora do prédio. Eu o vi entrar num táxi e li seus lábios dizendo ao chofer para seguir na direção do bairro onde eu tenho uma casa, onde eu moro. Depois que o automóvel sumiu pela avenida que cruzava a rua da loja de departamentos, eu olhei para cima do edifício e, sem me permitir um raciocínio, entrei no prédio, subi os treze andares, cheguei na porta do apartamento do tal indivíduo que o homem de terno de riscas conhecia; a porta estava aberta. Entrei sem fazer nenhum barulho, desviando-me dos objetos caídos no chão, a radiola havia sido quebrada, alguns porta-retratos foram jogados contra as paredes, mas ninguém ouviu nada, nem eu. Quando olhei para dentro da cozinha, o tal indivíduo estava olhando fixamente para mim, seus olhos esbugalhados em minha direção eram como uma súplica, um pedido desesperado por misericórdia. Entrei na cozinha finalmente, fiquei diante do tal indivíduo de olhos esbugalhados, ele era um tal indivíduo de corpo estranho, rosto murcho e pele áspera, como um caráter. Havia uma caixa branca lá, a caixa branca com carimbos e etiqueta do homem de terno de riscas, estava aberta e sem seu conteúdo, sem os instrumentos de minha obra executada. Recolhi a caixa do chão e, antes de deixar aquele lugar, que até então, era desfavorecido de sentimentos e de verdades, tive um incontrolável impulso de cuspir sobre aquele indivíduo, juntei todo o escarro dos meus pulmões e acertei a cusparada bem na testa do indivíduo que já não existe. Seu pescoço, cortado cirurgicamente de um lado a outro dos ombros, deixava esvair o rubro mel daquele repugnante indivíduo que o homem de terno de riscas conhecia. Admirei por alguns segundos aquela cena, o corpo estranho no chão, mergulhado em sangue, cortado em dois, cuspido na cara. Então fui embora, sem fazer nenhum barulho, desci os andares do edifício até a rua das pessoas que esbarram e pessoas que atravessam o caminho de todo mundo. Saí com a caixa branca com carimbos e etiqueta sob minha falha proteção, pois estava aberta, mas foi aberta para conclusão do trabalho, da obra aproximada, havia enfim terminado minhas obrigações naquele dia, naquele centro de cidade e com aquele homem de terno de riscas e chapéu panamá. Entrei num táxi e retruquei o mesmo nome de bairro como destino. As cartas de Kriska eu retirei da caixa branca com carimbos e etiqueta vermelha dos correios húngaros, as cartas de Kriska eu guardei no bolso interno do meu paletó azul, com riscas de giz.