A LEBRE E A TARTARUGA.

RUBEMAR ALVES

Pedindo licença a Mestre ESOPO, escravo e contador de estórias na Grécia Antiga.

Sabe aquela pessoa apavoradinha, apressadinha, muito vantagista, que vai-fazer-e-acontecer, que debocha dos amigos e faz pouco em todo mundo... e depois não faz é nada? Pois é.

Sabe aquela pessoa tranqüila, observadora, esperançosa, devagar-se-vai-ao-longe (e como foi!), do tipo deixar-acontecer-para-ver-como-é-que-fica, que conversa com todo mundo sem restrições... e um dia faz até o que nem sonhara? Pois é.

Conheceram-se num ônibus urbano, voltando à noite de um curso de inglês, ambas primeiro ano.

A mais velha com livro na mão, a mais nova provocou assunto. Por acaso moravam no mesmo subúrbio carioca, a linha do trem dividindo a rua.

A tartaruga morena, 18 anos, cursara o ginásio em escola municipal, precisou trabalhar cedo numa loja, sem emprego no momento – inglês americano, orientação do consulado (com sacrifício, pagara do bolso os dois semestres).

A lebre oxigenada, 16, iniciava o científico em escola federal, nem a colcha da cama alisava ao acordar – inglês britânico, orientação do consulado (com beijinhos familiares, ganhara em duplicata o valor das mensalidades).

Ah, não apostaram “corrida”, embora conhecessem Esopo.

A de 18 não tinha quem a financiasse, pai esforçado e honesto, mas de ordenado curto – filha única. Sincera.

A de 16, pai com ótimo ordenado e muitas gratificações do tipo ‘cale-a-boca’, também dois tios cheios de dinheiro que a disputavam como ‘a sobrinha predileta’ – a irmã de 11 anos, abandonadinha, coitada. Mentirosíssima.

Tornaram-se amigas com muitas restrições de temperamento.

“18” enlouquecida - lia anúncios em jornal, visitava agências de emprego, situação financeira bastante crítica em casa, inglês ficara para trás.

“16” inventadeira - faria medicina (ou “enlouqueceria” se não fizesse, costumava se exibir), estudaria também alemão, espanhol e italiano.

Tá bom. Vamos ver.

“Ex-18” arrumou emprego perto de casa. Gráfica enorme que fazia catálogos telefônicos para o Brasil todo - assinantes, endereços, classificados - e mais dois países. Também revistas e alguns livros. Função de revisora – não podia haver um único errinho, de letra ou algarismo. Deve ter sido a única pessoa na longa estória da gráfica que trabalhou nos quatro setores, aprendeu tudo muito depressa, nas horas de mais folga dos catálogos auxiliava nas revistas quando este trabalho acumulava.

Dois anos depois arranjou emprego melhor no centro da cidade, estava mais versátil e prática em situações difíceis. Foi secretariar. Continuou escolaridade à noite. Ia progredindo.

“Ex-16” continuara freqüentando a escola, com o mistério de nunca ser vista manuseando o material escolar e ‘conseguir’ passar de ano até com boas notas. Inglês lá no passado: abandonou. Emprego? Pra quê? Tinha casa e comida sem esforço. Trabalhar cansa...

Divergências fortes até mesmo em gostos musicais e cinematográficos. Feias discussões.

A mais velha amou “Gigi”, com Leslie Caron, filme premiadíssimo (Bafta, Globo de Ouro, Grammy, David di Donatello) - a mais nova odiou (na verdade, nem entendera).

Separaram-se.

Algum tempo decorrido.

Por vaidade, povão paga anúncio em rádio, programa bem popular, grande audiência. “Ex-16” casando ao final de maio, sem lembrar que era dia de aniversário de “ex-18”.

Meses depois, encontraram-se numa fila de ônibus – agora trabalhava num escritório, empresa de produtos plásticos, para ajudar nas despesas da casa, marido ‘complicado’ (não definiu): início de gravidez. Quem sabe filho ou filha no futuro cursasse medicina? Não se visitavam, notícias vagas através de terceiros, por acaso, na rua.

Mais algum tempo, a primeira filha completando cinco anos, outra na barriga, reencontraram-se pela terceira vez na condução.

A “ex-l8” sempre alegre e otimista, cursando Letras-UFRJ, bolsista na biblioteca e dava aulas particulares.

A “ex-16” carente financeira, sem progresso algum, inglês ficou na iniciação, menos debochada, um tanto decepcionada com marido cada vez mais ‘complicado’ (?), consigo própria e... “Com a vida...” – dizia em furtivas lágrimas.

Lebre cansada, parada onde nem “havia uma pedra no caminho” – a pedra era ela mesma.

Mais um curto relacionamento porque lebre mentirosa pediu emprestado e, num velho hábito, não devolveu “Bom dia, tristeza”, de Françoise Sagan – alegava ora que a filha ainda estava lendo (5 anos?) ora que perdera... num ônibus.

O tempo passou, a “ex-18” nomeada professora, depois secretária numa escola e diretora em outra.

“Ex-16”? Dormiu sobre a pedra, duas filhas crescidas e mal orientadas, também inventadeiras e...

Por favor, caros leitores, eliminem maus pensamentos e curiosas perguntas.

Tartaruga passou a frente sem ter planejado.

Acontece, por que não?

F I M