Flash-back de nós dois
E maio entrou sem fazer alarde, vindo me pegar sentado, ao lado de umas lembranças na minha varanda que dá pro céu. O tempo já nem me importa, se são horas disso, ou daquilo; se é de dormir, ou de comer. Agora mesmo, só sei que é tarde, e que esta já levantou, pedindo licença pra se retirar. Uma noite com cara triste já me espreita por trás do arrebol, naquele horizonte onde você desenhava bichinhos de algodão borrado. Chove esse maio por aqui, amor, e você, por onde anda? Sinto que vou carregar nas costas esses dois invernos, o de fora, que cabe a Deus controlar, e o de dentro – e mais pesado – que você instituiu ao fechar aquele portão sem dizer palavra. Lembra o girassol que você colheu olhando pra trás? É, guardei duas pétalas que sua distração deixou cair, dentro daquele Neruda que eu te lia nos dezembros quentes. E do nosso jardim florido, o que roubava olhares distraídos, lembra? Deste, pouco resta. Abandonei o doce hábito de cuidá-lo. E não de todo, mas em partes, posto que ainda cuido dos girassóis, como se fossem você. Mas, a maior graça ele perdeu, os olhares que não mais desperta. Ah, amor, nosso jardim... Até os beija-flores desistiram de nosso endereço, e me basta aguçar o olhar para vê-los em sobrevôos por jardins alheios. Não é para menos, pois até a alegria desistiu de mim, depois que você fechou aquele portão sem dizer palavra. Chove esse maio por aqui, amor, e você, por onde anda? E eu que já nem ando, pois que já abandonei as caminhadas à beira-mar, pra não mais doer nas lembranças: você catando conchinhas, eu rabiscando haicais na areia. E tantos foram meus abandonos, meu amor. Não menos foi o que guardei. Dormem no armário seu travesseiro de macela, e aquele pente de madeira que compramos no Nepal, porque ambos têm seu cheiro. E o que mais pude, guardei nos caminhos da mente, vizinhando com a saudade. É assim que me alimento, ligando esse flash-back de nós dois.
Por hora, mais não digo, por não me agradar falar ao papel, mais que aos seus ouvidos. E até posso dizer mais, se for pra falar dessa chuva insistente, dessas nuvens que de tão negras, já dizem ser noite, ou dum vagalume que acolá piscou um susto. Ou falar dessa tevê quebrada que fechou o meu mundo pra balanço; dos poemas que me faltam ler, fazer; das noites em que sou um, com mil de nós dois se amando mente adentro; do nosso cão que me olha triste quando me escuta pensar alto; enfim, daquele Porto ao meio que não mais bebi depois que você fechou aquele portão sem dizer palavra. E o que mais dizer, amor? Se chove tanto nesse maio, e você, por anda que não vem?