COTIDIANO CITADINO

A vida segue sua ladainha, com a poesia das coisas enfiada na trama dos tecidos, que nem piolho em costura. Lavo a roupa suja da semana com o alvejante das ideias e ela possivelmente me parecerá nova. Necessito alvejar também a mim... Além da porta da invernia, um tímido sol abençoa o inanimado. Escavo a terra preta dos canteiros sob as roseiras e as minhocas se escondem lentamente. A vida corre plácida. Uma menina ruiva brinca com os seus gatos no pátio da infância. Um menino acompanha, empolgado, o latido de seu cãozinho e com ele aprende a ladrar suas vontades, tropeçando nos códigos da fala. Várias mães cochicham as novidades. Há pessoas que entram e saem numa aleluia à vida costumeira. O vento pampeiro entoa sua velha canção num sopro de novidades e faz vermelho e álgido o nariz da manhã. O coração bate forte, sem os costumeiros resmungos dos quase setenta. Somente a tosse macula a placidez das hortênsias nos jardins. O mate-amargo aquece o corpo num beijo tradicional. Um velho pede esmolas e pão. Como não sei cozinhar e estou sozinho em casa, seria bom que de alguma janela alguém acenasse com uma sopa quentinha. Abrem-lhe o portão e o mendigo entra com os seus olhos de prece sempre adiada pela fome. O zelador do prédio, condoído, divide sua minguada algibeira...

– Do livro ALMA DE PERDIÇÃO, 2012/16.

http://www.recantodasletras.com.br/contos/3766230