É assim
Do outro lado do quarto, ele estava abaixado com a cabeça entre os joelhos. O sol estava surgindo, colorindo de laranja o chão de seu quarto e o horizonte. Lucio estava sentado na cama, olhando num ponto fixo na parede. Estava pensando em como seria sua vida depois desse dia. Os dois estavam com vontade de chorar, mas eram orgulhosos demais para isso. No rádio Elis Regina cantava e sua voz se expandia violentamente pelo quarto, forçando mais ainda as lágrimas dos dois. Ontem se amando na areia tão selvagem dessa praia e hoje os dois se destruindo apenas com olhares e poucas frases.
Rodolfo levantou-se e caminhou até sentar-se ao lado de Lucio que recusou pegar em sua mão, deixando suas lágrimas dizer o que as palavras não conseguiam fazer.
É assim então que acontece quando se termina uma relação? É assim então que acontece quando se tenta não amar quem o coração mais chama de amor? É assim que tem que acontecer quando não podemos deixar nosso corpo sentir tesão, desejo e vontade de um corpo proibido? Essas perguntas estavam ali na garganta de Rodolfo, se escalando para saírem e mostrarem o fim de tudo, juntamente com a canção de Elis que já mostrava.
Tentou mais uma vez pegar na mão de Lucio, mas esse se negou a deixar. Estava tentando criar uma barreira entre ele e Rodolfo já que não conseguiria dizer que não poderia mais se encontrar com ele. Nunca mais beijaria aquele corpo salgado e moreno. Ele seria tão passado para Lucio, como os outros que um dia esse jogou numa cama qualquer para possuir e depois esquecer.
Seria difícil. Seria cruel. Seria assim que a vida seguiria: um amante para cada necessidade de cada dia e a mesma mulher o esperando em sua casa. Seria assim que as pessoas dirão amém amanhã na missa de domingo. Seria assim que as prostitutas estão se fazendo na Rua Riachuelo. Seria assim que um dia se encontraria bêbado, doente e sem nunca ter vivido com quem queria, tendo Deus a seu lado.
Os soluços aumentando e Rodolfo sem saber o que fazer. Nunca tinha passado por essa situação. Lucio foi o único homem que amou, o único que amou aquele corpo, que penetrou aquele corpo, que chupou aquele pau, que conseguiu acariciar mais do que os lábios seus. Amanhã ele estaria na praia, talvez esperando outros turistas, talvez esperando encontrar Lucio e este lhe dizer que era uma brincadeira. Amanhã ele não estaria mais naquela cama, naqueles braços, naquelas unhas tão dele, como seu próprio pau era.
Ali, do seu lado e tão distante, estava o corpo de um homem com mais de vinte anos e tão perdido na vida. Tão perto dele, a respiração denunciava que as lágrimas, que o choro demoraria a terminar. A respiração estava aumentando, sendo tomada por soluços parecendo intermináveis e gritos finos de dor.
É assim a dor que nos toma quando percebemos que não terá outro amanhã com o corpo desejado? É assim a dor, essa dor maldita, que consegue entrar no nosso corpo, habitá-lo e quando menos se espera, o consome com lágrimas e gritos, nos fazendo seus reféns e possíveis solitários? É assim. E ele não entendia por que seu Lucio não levantava a cabeça, o beijava com furor e fazia amor com ele.
Ele não entendia e não precisava também. As malas ali perto da porta, jogadas uma em cima da outra. A viagem de volta que seria semana que vem, quando o trabalho de Lucio recomeçava, estava sendo agora. Pela manhã, antes que eles se banhassem no mar e voltassem para um café da manhã com morangos e porra, cada um desses ingredientes preenchendo o vazio que a distância não consegue completar, estavam se despedindo.
Uma vez em dois meses aqueles dois naquele quarto se encontravam e eram um, eram muitos. Rastejavam um pelo corpo do outro, não sabendo o que eram, porque eram ou o que tinham de ser, fazer, ter. Estavam ali como quem está para o tempo que passa e não percebemos. Mas eles percebiam que o fim não tardaria a acontecer e domar eles com força, agressividade. Mas eles percebiam que o fim era isso: choro, dor, malas; é assim.
Ao levantar Lucio percebeu que seria difícil olhar para Rodolfo sem tentar beijá-lo. Seguiu para a mesa onde tinha uns papéis e seu maço de cigarros. Acendeu um cigarro, o tragou, e sem perceber o que acontecia, se deixando levar pela situação, estava segurando a mão de Rodolfo, apertando-a.
Fique. Aquela voz tão sedutora perto de seu ouvido. Aquele abraço. Elis terminando a canção e o sol já cobrindo o mar de laranja, quase dourado. Pela janela se podia perceber que já tinha algumas pessoas que caminhavam pela praia. Algumas poucas, perdidas. Dentro daquele quarto dois apaixonados pelados.
Virou-se para Rodolfo, o abraçando e acariciando seu cabelo. As lágrimas molhando os ombros morenos de Rodolfo, marcando assim o que já estava decidido para Lucio faz tempo.
Ter aquela cama, aquele quarto, aquele moço todos os dias em sua vida, era tudo o que ele queria. Mas não era realidade. Do outro lado dessa vontade, tinha uma mulher que o esperava com casamento marcado e outras pessoas que esperavam que ele fizesse o que todo homem deve fazer: formar uma família digna de ser uma família. Criar uma família. Ter uma família. Mostrar sua família. Ser uma família. E depois de família, viria ele só. Ele dentro dele mesmo com os remorsos e as vontades já empoeiradas. E depois o nada ou Deus ou Diabo ou o fim mesmo.
Foi naquela praia no passado que ele estava com a família em férias que viu um moço saindo do mar, com a água escorrendo pelas suas pernas, caindo de suas mechas pela areia e um sorriso para outro moço. Teve um abraço, um beijo e um grito de “ai meu Deus” vindo da boca de sua mãe. Teve também seu pau endurecendo e a vontade de ser um dos moços ou de ter o moço que saía do mar. Vamos sair daqui, filho, essa praia não é decente. E eu sou um puto aqui dentro, claro, mãe.
No outro dia estava ele sozinho na mesma praia, esperava ver o moço de ontem, talvez os dois moços tranzando ali mesmo. Então sentiu uma mão em seu ombro e ao se virar encontrou dois olhos castanhos vivos e lindos. Te vi ontem, me olhava, te chama como? Eu sou o mar que te banhou ontem. É mudo? Sou teu puto se quiser, me pega, posso te pegar, me chamo Lucio. Voz grossa, pau grande você. Os primeiros toques foram ali e ele se lembrou que havia outras pessoas na praia. Não posso, não sou, não vou, não quero, tá bom, o último sorriso poderia ter sido naquele momento, se não fosse o amanhã no mesmo lugar e o primeiro beijo no mar. E eles olharam e então você mora por aqui, não, sou de outro lugar, eu sou daqui, você é o mar, não percebe, outro beijo. E então saiu rápido, sem olhar pra trás para chorar sozinho naquela noite tão escura.
Você se lembra quando nos conhecemos? Rodolfo falava e falava e falava sem abrir a boca, apenas olhando para Lucio e ele em 1963. Sentindo o corpo amanhecendo ao lado de um homem, o susto, o medo e então o desejo crescendo e o beijo no ombro e a lambida e o sol se apresentando e pessoas na praia e a fuga. Não vá, era uma voz de longe, que ele fugia e tentava não olhar pra trás. Fugiu, correu e andou em volta daquela bunda e sentiu-a e voltou nos outros meses e sempre voltava e se encontravam as escondidas e Maria na cidade, a sua espera sempre com carinho, com a virgindade intacta, com a castidade de uma puta escondida.
Agora ali, fumando, sentado na cama, com a cabeça de Rodolfo em suas pernas. Te amo, não entende. Entendia, claro que entendia, até sentir a perfuração que era difícil sentir. Entendia, claro. Era um amor tão lindo, tão poético, tão vivo, tão deles e tão sexual também, e tem Deus, e tem a família e tem esse cigarro que nunca acaba. Não dá mais, não dá mais, não posso te querer mais, não sou só teu, não sou teu, nunca serei só teu.
Os olhos vermelhos também se acenderam no rosto de Rodolfo, tentando não fazer com que as lágrimas aumentassem. Passando a mão de leve nas pernas tão peludas e tão másculas de Lucio. Aquelas pernas que o prendiam na cama e fazia com que ele se perdesse nos lençóis, nas areias, no chão de qualquer lugar. Me leva um dia pra conhecer Curitiba e sua casa? O silêncio.
E depois as risadas de um dia juntos e depois dois meses sem eles e depois mais um dia juntos. Três anos e ali nas pernas dele era como se fosse toda uma eternidade dividida e sentida no fundo. Se isso não for amor, Lucio, o que é? Foge comigo, vamos para o nordeste, o Rio de Janeiro, dizem que lá podemos ser feliz. Gente como a gente. Lá poderemos ter os sonhos mais lindos realizados, sabe essa música? Vamos ter os sonhos mais lindos realizados. Você me ama? O olhar perdido, o cigarro no fim e a voz de Caetano agora fazendo o quarto se explodir. Sente essa voz dele. Uma voz que tremia no disco, fazendo o quarto tremer e as pernas e as mãos e as lágrimas e o choro enfim. Todo aquele choro.
Me abraça? Levantou-se e pegou mais um cigarro, o acendeu. É o fim, tá feito já, Rodolfo. Nunca mais. Muito tempo, muito tempo que ele vai ter pra casar, procriar, criar família, trair e morrer. E Rodolfo ficará na praia até o fim da vida. Ficará lá, nas areias com os turistas e desperdiçando a sua coragem de viver com qualquer um. As lágrimas saindo tão brutalmente.
É assim então? Você simplesmente tem uma futura mulher e nunca será meu. Me enganou, me usou, três anos é uma história. Te amo, não pode simplesmente acabar e me acabar! Por que não foge comigo, não vive comigo? Por que me deixa aqui sozinho, por que fazer isso com nossas unhas?
O silêncio fazendo o quarto ficar no escuro daquela despedida. Nem Caetano cantava mais, o disco rodando sem som. Um de cada lado da cama. Um com cigarro e sem saber mais o que dizer, o outro colocando a roupa e dizendo e dizendo e dizendo sem parar com a boca fechada. Tão iludido. Tão burro. Tão usado ele estava ali com o calção desbotado, a camisa regata branca e os cabelos atrapalhados, aqueles cabelos cacheados que tantas vezes foram das mãos de Lucio.
Pegou um cigarro e foi pra porta, a abriu e assim abriu também o coração de Lucio. O fez sangrar com soluços internos, tão internos que Rodolfo não percebeu. Ficou parado por uns três segundos olhando bem fixo para a cara do homem que tantas vezes o comeu. Então Rodolfo se foi.
Deixando um corpo se desmanchando na cama, se agarrando no que podia dos lençóis, fazendo o colchão se molhar cada vez mais. As lágrimas tão cruéis e tão amigas agora. Elas acompanhando aquela despedida desde o começo, o mostrando como ele era fraco e tão sentimental. Preciso, era preciso. Teria uma vida normal, uma família. Com as unhas tentou buscar algum corpo, algum corpo de Rodolfo do outro lado da cama, mas só encontrou porra seca ou então bituca.
O fim nunca imaginou que seria assim, nunca quis que fosse assim. Nunca quis ter levado aquilo até ali. Mas sempre voltava. Toda vez que entrava no carro seguindo para Curitiba prometia nunca mais voltar, mas voltava e encontrava sempre Rodolfo na praia, com o calção e a água fazendo seu corpo mais dele.
O sol já estava forte e Lucio com o corpo deitado na cama. Tinha acontecido já e era preciso ir sem volta. Levantou, colocou a roupa, acendeu mais um cigarro, escreveu um bilhete assim foi amor é amor será sempre amor, para R, e partiu para a praia. Um último olhar para aquelas areias que serviram de ninho para o sexo selvagem deles. Um último pisar naquelas areias que marcaram tanto a sua vida. Tudo começou ali, nasceu dali. Surgiu por aquelas águas para terminar naquele quarto, também em meio às águas, as que saem dos olhos.
Então estava um calor imenso. Um dia lindo e claro ali fora. Uma praia cheia de gente e ele andando de mãos dadas com seu homem. Conversando, falando, dizendo, se beijando para que a lua visse como era bonito amar e sentisse inveja deles. E foi a inveja talvez, o medo talvez ou a vergonha que fez com que aquela mão de Rodolfo agora estivesse por aí perdida, e ele, Lucio, caminhando para o mar com um sol bem vermelho por sobre sua cabeça.
As pessoas felizes ali, caminhando lado a lado, de bem com a vida. Todo mundo seguindo para um lado, para outro, alguns sozinhos outros amando e mais alguns ali apenas para se ter sentido na vida. O mar se agitando a cada onda que quebrava na areia, espalhando as águas e os delírios dos pensamentos de Lucio. Cada vez que a onda vinha, ele sentia a quente água nas pernas e no rosto outra quente água, descendo para a boca, pescoço, peito e pau.
Ali está a água do fim, que levará para o fim, que fará um fim. O fim que terminará numa missa, numa prece, num porque de sua família. O fim de um amor tão cruel, deixado apenas num bilhete para que o futuro, se tiver, conheça a dor de amar. Lá está, perto do maço de cigarros, com o disco de Caetano rodando sem som no rádio. Dizendo que amou.
Então o mar sugou, puxou com força e ele não sabe nadar e ele avisa Rodolfo que o agarra e eles saem rindo pela praia. Têm que ter cuidado, meu bem, se não sabe nadar, não vá para o fundo. Agora não tem Rodolfo, tem o mar ali para terminar o que ele já começou.
O mar o fez ter vontade de gritar, gritou. O mar o fez ter vontade de voltar, não voltou. Fez com que ele mexesse os braços, mexeu, disse, mas a felicidade nas areias era tão grande, era tão normal, era tão certa e tinha missa e então assim ninguém ouviu o que se tinha que ouvir.
Então Lucio se foi.