Das almas...
Não me lembro qual era a minha idade, entre três e cinco anos, talvez. Já que a prole de minha mãe estava completa entre partos e abortos, éramos cinco os sobreviventes. Dois irmãos mais velhos, dois mais novos, eu no meio como se fosse uma ponte os ligando. Na verdade um casal mais velho e outro mais novo do que eu.
Com clareza e nitidez, a aversão pelos seres humanos, mesclada a uma enorme compaixão, que para ser bem sincera ainda me acompanham na mesma proporção... Amar a humanidade é fácil, conviver com os seres humanos é terrível. E eu repito para mim essas palavras frequentemente.
Bom, mas nada de ser prolixa, essa mania de versejar e rimar faz com que minhas frases se percam no meio de minha prosa.
Fazia calor, um calor de condensar o ar, umedecer minha fronte e trancar meus pulmões em mais uma crise de asma. Débil, fraca, observava a casa pobre, o teto sem forro, mas extremamente limpa. Minha mãe mal sabia que o cheiro de cera com o calor sufocava-me como uma mordaça invisível.
Aos poucos fui perdendo a consciência. Livre, finalmente livre.
Entre as névoas que se formaram ao meu redor, vislumbrei o pequeno corpo na cama, os cabelos claros ensopados de suor, o vestidinho velho agarrado à magreza da carne. Os lábios roxos quase sem vida.
Soluços, choro, seguiram esses arremedos de lembranças. Do alto, não sei do alto de quê, pude ver minha mãe ajoelhando-se ao meu lado, erguendo-me em seu colo em um desespero que hoje eu sei só as mães conhecem.
Aos poucos a pequena casa foi sendo tomada pelos vizinhos que ao ouvirem os sons de dor correram na tentativa de ajudar ou por mera curiosidade. Velas foram acesas, rezas proferidas, e eu, eu continuava inerte nos braços de minha mãe.
Afastei-me. Todo o amor que sentia por ela, só por ela, dessa vez não me levaria de volta à carne. Hoje eu penso que minha lucidez, minha teimosia diante da vida era imensa para uma criança tão pequena. Na verdade eu já desprezava a vida tanto quanto desprezava pessoas, com exceção de minha mãe.
Sentada nos degraus da cozinha, observei meu irmão e irmã mais velhos conversando.
- Será que dessa vez ela morre? Disse ele. Um garotinho cheio de pose, marrento que mais tarde mostraria que sua índole não era das melhores.
- Não sei, a mãe sempre fica preocupada, mas ela não morre. Ela é estranha, não é? Minha irmã se referia a mim. Era uma boa menina, a bondade daqueles que não se preocupam com os mistérios da vida e se contentam com pouco.
Os dois ficaram por um tempo em silêncio, pensando em minhas bizarrices.
Por fim, em um veredicto, ele deu a sentença:
- É, ela é estranha, vamos brincar? Se ela morrer, sobra mais comida e não precisaremos dormir todos apertados. Dane-se.
Minha irmã, abriu a boca e fechou sem respondê-lo, me amava. Mas não quis contrariá-lo. Saiu correndo a esconder as lágrimas.
Ajustei meu vestido, cobri meus joelhos e fiquei esperando que enfim meu espírito se libertasse do fio que me mantinha presa àquelas pessoas. Entoei uma canção, que não me lembro mais, fechei os ouvidos para a Ave Maria, adoraria ouvir o Credo, mas esse não veio.
Ouvi o choro do bebê da casa, pobrezinho, acordou assustado em meio aquela balbúrdia, a menininha que ao lado dele tentava consolá-lo era um pouco mais velha. Eram esses momentos que me enchiam de dor e de impotência, eles não me viam, e eu sabia, assim como sabia de muitas coisas que nunca ninguém me explicou e nem me explicariam. Tentei ajudá-los, mas longe da matéria pouco podia fazer. Quando bebê, minha mãe dizia que eu movimentava objetos sem tocá-los, mais tarde conversaria com pessoas que não existiam, mas ali diante daqueles dois anjinhos, nem objetos eu pude mover e nem mesmo ser ouvida... Não queria me aproximar da sala, onde me pranteavam ainda viva, tinha receio do imã da carne me atrair para dentro dela. Mas sem ter como ajudar meus irmãos menores, aproximei-me de minha mãe que em esforço contínuo tentava baixar a febre que assolava meu corpo e me abanar para devolver o ar. Sussurrei ao seu ouvido que os menores precisavam de ajuda. Uma, duas vezes, até que ela de alguma forma me ouvisse... E ouviu, pediu para que uma das vizinhas fosse ao seu quarto, quarto esse onde dormiam os caçulas, ela e meu pai. Dei minha missão por terminada, rapidamente fui para o fundo do quintal sentar-me debaixo de uma mangueira, adorava mangas, o cheiro, o caldo. Mas naquela tarde não havia mangas pelo chão e se houvesse não seria possível me lambuzar com elas.
No meu íntimo eu sabia que logo um de meus amigos invisíveis chegaria. Deite-me no chão a olhar as nuvens, desenhava o céu com meus pensamentos. Bloqueei qualquer indício de voltar a viver naquele lugar estranho. Não sabia e não sei de onde vim, mas aqui era e sou uma estranha.
E então ele chegou...
- O que faz aqui menininha? Seu lugar é lá dentro, sua mãe te espera, seu pai está chegando para levá-la ao hospital.
- Você demorou... Hoje não vou voltar. Quero ir embora.
- Sabe que não pode, já nos falamos antes em seus sonhos. Suas crises são provocadas por você, a asma é só sua desculpa para se afastar.
Fingi que não ouvi o comentário. Mudei de assunto.
- Lá de onde você vem tem mangas? São uma delícia, se tivesse alguma no chão te daria,lá em cima tem um monte, mas não consigo subir na mangueira.
Apressadamente com medo que ele usasse as mangas contra minha decisão, conclui:
- Não vou sentir falta delas. Podemos ir?
Pensativo meu amigo, pacientemente pegou minhas pequenas mãos entre as suas e tentou me persuadir.
- Não gosta da sua mãe? Ela está sofrendo, vai sofrer ainda mais se a deixar.
- Sim, dela eu gosto. Mas ela tem aos meus irmãos.
- Não é assim, minha criança. Você tem um papel a cumprir e precisa ir até o fim.
- Já me disse isso antes. E disse também que sou muito pequena para entender. Se quer saber, não quero entender, não quero esse papel. Choro, não durmo, tenho medo, não gosto das pessoas, não gosto... Por favor me leva daqui.
Sem dizer nada, ele se levantou, me pegou no colo conduzindo-me de volta para dentro da casa onde meu corpo ostentava um vestido limpo, sapatos e meias. Que só de olhar me davam engulhos de calor. Mesmo semimorta, fui cuidadosamente trocada para ir ao hospital. Os sapatos eram de minha irmã mais velha, o vestido também. No recinto formou-se uma procissão de velas e choro, as crianças, meus irmãos em um canto observavam minha mãe em prantos. Não, não era novidade nada daquilo, mas dessa vez toda aquela comoção e parafernália alongava-se diante de minha teimosa indiferença.
- Vê? Indagou-me, proferindo meu nome.
- Vejo, mas não me chame assim. Esse nome não é meu, essa carne não é minha, nada disso é meu.
- Mas você percebe a dor que vai causar em sua mãe? O seu nome é o de menos, ainda terá muitos, sua mãe pressente que nenhum nome se adequará a você, por isso a chama de Alma. Alma você gosta?
- Sim, eu gosto, minha mãe sabe tudo, minha mãe, só ela é importante, não gosto de vê-la sofrendo, leve-me daqui, por favor.
- Não, se quer partir, saiba que a fará sofrer, saiba que ela a chorará por anos, que trocaria sua vida por você. E saiba que daqui a alguns anos ela irá te salvar para libertar seus irmãos.
- Não entendo, não entendo, pare por favor!
- Não entende mas não quer ficar, não entende e quer partir. Sua dor será maior estando longe. Não conseguirá fugir de sua consciência.
- Não faz diferença morrer agora ou depois... Eu já vi um enterro, as pessoas choram mas voltam às suas vidas. Eu sou só uma criança que não gosta de conversar, que não gosta de estar entre outras crianças, você que não me entende. Se eu voltar lá, amanhã vou abrir os olhos e me arrepender de ter ficado...
Mal terminei de pronunciar essa frase e vi minha mãe cambaleando perante os sinais vitais que deixavam meu corpo, ao que tudo indicava o socorro estava demorando demais, o hospital era longe. A família sem recursos não conseguira nem mesmo um carro para levar-me dali. Meu pai ainda não aparecera. As rezas aumentavam, as crianças choravam, o cheiro de velas, mangas, cera e o calor conspiravam ao meu favor. Em outras crises quando eu fui socorrida mais rapidamente e eu também respondi aos apelos sem tanta má vontade, o oxigênio artificial, as injeções para me reanimar sempre surtiram efeito.
Mas dessa vez, minha tenacidade em se fazer cumprir meu desejo afastava qualquer ajuda.
Diante da minha irredutibilidade, meu amigo, meu mentor, ou qualquer coisa que o valha, me colocou no chão para que eu ficasse quase da altura de minha irmã mais velha, aquela que para mim seria a mão a me levar por caminhos que eu tinha tanta dificuldade. Ou seja estar entre as pessoas, durante um bom tempo ela foi para mim muletas emocionais em troca a ensinei a matemática. Algo que para mim, foi extremamente fácil. Mas enfim diante dela, do seu rostinho em lágrimas, sem poder tocá-la, meu amigo se ajoelhou e me confidenciou que ela teria um destino muito trágico sem a minha presença. O meu não seria melhor, mas o dela se agravaria sem mim. Vislumbrei-a arrastando-se pelo chão, uma visão que me fez chorar. Não, eu não queria isso... Não queria o sofrimento dela ou de minha mãe que obviamente seria maior ainda.
Meu irmão mais velho, parece ter adivinhado o que se sucederia, com um sorriso se escârneo contemplava meu corpo quase inerte.
Isso mexeu comigo. Não... Eu não deixaria que ele tripudiasse de minha mãe e irmã, não enquanto eu pudesse fazer algo.
Abracei meu amigo invisível, chorei copiosamente em seu colo enquanto nos despedíamos. Não entendia o porquê da vida, não entendia o porquê da morte. Vagar entre suas fronteiras sempre foi fácil para mim... Mas eu não poderia fugir nem de uma e nem de outra...
Como uma criança birrenta voltei finalmente à carne, abri meus olhos, fitei meu irmão... E ele com sua alma ainda em sombras lançou-me um aviso:
- Morra.
Isso foi a mola que me fez recuperar o fôlego.
Acordei definitivamente dois dias depois, meus miolos doíam. O cheiro do café quente me levou à cozinha, mas novamente esqueci meu corpo no quarto...
Voltei à cama, fiquei a observar meu corpo. Minha mãe pressentindo a necessidade de sua presença aproximou-se com um sorriso. Sorriso que uniu minha alma à minha carne.