Herança de SANGUE

O sol nascia de repente,como se a noite fosse apenas um pequeno instante entre ontem e amanhã.Não conseguira pregar o olho um só minuto é verdade,e hoje seria pior.Hoje teria que encarar a verdade de qualquer maneira,pois ela seria física,ainda mais física do que no dia anterior.Por ela esperava mais uns dias para faze-lo,mas suas irmãs não aguentavam mais nem um minuto para fazer a partilha dos bens do falecido.A verdade é que mesmo antes de ele morrer já falavam nisso,falavam e faziam.Não foram poucos os objetos(sutis,mas percebidos) que "sumiram" misteriosamente durante o tempo em que ele definhava no hospital,como se pagasse por um crime do passado,do passado ou de outra vida.

Marcela lavou rapidamente o rosto,em qualquer outra situação,demoraria quase uma hora em frente ao grande e velho espelho na pia do quarto,dividido em três portas espelhadas.A do meio(e maior) era onde se guardava a maior parte dos objetos de higiene pessoas.Além dessas haviam duas outras pequenas á direita e á esquerda.Uma para falar a verdade,já que a da esquerda a muito não abria emperrada,e com o canto inferior do espelho rachado.Sete anos de azar?dez quem sabe,há dez anos fazia o mesmo,lavava o rosto sem animo,sem vaidade,naquela época seu pai ainda vivia,e como vivia,mais do que ela é bem verdade.Naquela época era sua mãe que definhara como uma condenada,e desde aquela época já não se abria aquela portinha.Qualquer dia,quando estivesse mais disposta,(talvez não tão cedo) abriria ela de qualquer maneira.Não que fizesse falta,o espaço sobrava com nas outras duas,principalmente na do meio.Abriria para ver o que encontrava.Quem sabe lá não se encontrasse o fim de tanto tormento?

A musica alta lhe doía na cabeça e n'alma.

"É pra tira essa energia ruim"Dizia Rebeca altiva,altiva e alta.Rebeca das três era a que mais se parecia com o finado.De estatura alta(não em demasia) a forma esportiva,a disposição para corridas e qualquer tipo de esporte,mesmo atravessando seus quarenta e quatro anos.Marcela bem tentava,mas tirando uma caminhada ou outra de vez em quando preferia manter seu peso pela boca,era mais doido,mas mais acomodado.As duas falavam qualquer coisa no pátio,onde o sol reluzia nos velhos tapetes deixados sobre a grama para tirar o mofo e o pó.

"Não eram usados dez do tempo da mai"Lembrava Rebeca.

"O pai não ligava muito pra decoração,e a Tonia também trouxe tudo de lá da casa dela,não é..."

Da porta da sala de visitas que dava para a frente da casa,a parte do pátio onde estavam Marcela e Rebeca,surge Clarice.Pequena como uma criança,gorda como uma porca(um pouco menos quem sabe se se olhasse de longe como estava agora) um chapéu velho na cabeça,sobre os ombros um suéter bege com listras alaranjadas e gola alta,e nas mãos dois álbuns empoeirados,e com algumas teias em volta.

-Eu e a Rebeca começamos antes de você chegar,pra adiantar o serviço,mas não se preocupa não,porque a gente não pegou nada.

Olhou com o canto do olho para Rebeca,alta como uma árvore.(para ela quase qualquer um era alto como uma árvore) depois desviou os olhos esbugalhados,a fitar os tapetes no sol.Será que Marcela percebeu?Provavelmente não.Também mirava os tapetes sobre a grama ainda molhada de orvalho.

"Se lava bem lavado e boca de novo pra seca,é bem capaz de me deem alguma coisa por eles no brechó..."Pensava Clarice gananciosa."Só que tem que lava á mão...e bem lavado...É mais negócio leva pra casa e deixa por lá.Pra lavar vão me cobra mais do que eu vou ganha por uma porcaria dessas"

-Eu não quero nada daqui não.Eu tenho as minhas coisas,e depois também isso não era coisa acertada.Uma hora ia acontecer,é verdade,o pai já tava velho,mas ninguém dizia que era pra agora.Se não fosse esse câncer...O que eu to querendo dizer,é que eu não esperava por isso,então nada do que tem aí me faz falta.Eu vou pegar no máximo alguma foto minha ou dos garotos que ainda tem aí,e pra mim chega.Depois também as roupas são de homem,e o Renato não ia querê usar.uma porque vocês sabem como ele é comas coisas dos outros né?e depois também porque eu acho que a gente devia era da pra quem realmente precisa.Agora tá chegando o inverno...

Marcela falava,mas falava para si.Rebeca e Clarice tinham os pensamentos longe...

-O Sérgio me pediu pra ver se achava aquele blusão listrado que você e o Renato derma pro pai no inverno passado.

Clarice mete o suéter rapidamente entre os álbuns empoeirados sem ser percebida.Que sorte!

-Pois é,o Jair também tinha pedido pra mim da um jeito de achar,mas se você quiser pode ficar pro Sérgio,o Jair ta cheio de blusa por lá.

-Então tá.Você não vai querer mesmo não é Marcela?

-Não!-Resposta seca,encharcada de desprezo. -Agora que eu já cheguei,por que a gente não entra logo pra ver essas coisas?

-A gente via ter que esperar mais um pouco,a Letícia ainda não chegou.

-A Letícia?Mas o que ela vai vim fazer aqui?

-Vê as coisas pro Fernando hora...O mano coitado,não tem nem cabeça pra isso. Depois também,mulher é que sabe do que ta precisando em casa.

-Precisando?Pelo amor de Deus Rebeca!O pai morreu ontem,como é que o Fernando ou então a Letícia iam ta precisando tanto assim de alguma coisa da casa dele?depois também os dois trabalham pelo que eu sei,não trabalham?Eles que vão arranja as coisas deles,para...Agora vai espera o sogro morrer pra mobiliar a casa?

um principio de discussão se instala,por pouco não estoura,chegava Letícia afoita.

-E aí?-Dizia ela entre respirações profundas e ofegantes.-Eu me atrasei,fui deixa a Carlinha na casa do meu irmão.-Agora entrava no pátio,abraçava uma,abraçava e beija outras...

-Vocês já começaram?

-Escuta,você e o mano ainda trabalhão,não é?

Marcela não desistira,não aguentava.

-O que?

-Nada...-Salvava Rebeca- Vamos logo lá pra dentro que tem um mundo de coisa pra a gente arruma.

O quarto cheio.Cheio de coisas espalhadas.Espalhadas pelo chão,pleo sofá,pela cadeira namoradeira de madeira e estofaria de flores desbotadas pelo tempo.Sobre a cama,agora cheia de roupas e caixas rasgadas,Marcela ainda via o pai doente,fraco,indefeso lutando para reagir,tentando acreditar,sofrendo por não conseguir.ao seu lado via Tonia incansável,seu jeito antes irritante,agora suportável.(suporta-se qualquer coisa de alguém que faz o que ela fez por um ente querido).sua formalidade quase inglesa,sua disposição indiscutível.

-E a Tonia?

-Que é que tem ela?-Indaga Clarice pouco preocupada,mexendo em algumas gavetas,nada de mais encontrava,só contas,contas antigas.

-Por que é que ela não está aqui também?

-Ela não é da família!-Solta Letícia se se dar conta do quão intrusa também é naquele lugar.

-Como que ela não é da família,ela era mulher dele.

-Mulher mas não no papel,não tem nem como prova.

-como não tem Letícia?-Todo mundo aqui sabe que o pai era casado com a Tonia,não interessa se não era de papel passado...E o tempo que ela ficou cuidando dele,ajudando a gente...Eu não acredito que você se esqueceu disso de uma hora pra outra.

-É claro que não Marcela,mas o que tem aqui era do seu Luiz e da sua mãe,o que era dela ela levou de volta.

-E seu o que é que tem aqui,me diz que eu quero ver?O Fernando pode até ter direito a alguma coisa,ele é filho,ta certo.Mas se ele tivesse tão interessado assim como você ta e não deve,ele tinha vindo,mas não veio,não é?

-Não veio mas me mandou no lugar dele.-E você já que não quer nada,o que veio fazer aqui?

-Eu vim porque eu sou filha,e depois eu só quero pegar são as fotos da minha mãe que ainda tem aqui e dos meus filhos.

-Taqui aqui ó!-entrega Rebeca a ela duas pastas de plástico empoeiradas e cheias de fotos e documentos que saiam pelas bordas.-Se é só isso que você quer,então ta aqui.Eu não vou ficar ouvindo desaforo seu de jeito nenhum entendeu? Você não tem o direito de fala com todo mundo como se fosse a dona dessa casa...

-E se for assim então quem tinha que mandar em alguma coisa era eu que sou a mais velha-Resmunga Clarice em um canto.

-Eu não tenho mais o que ficar fazendo aqui mesmo,vocês que se entendam.Eu queria que o meu tivesse vivo,mas ele não tá...Se eu bem quisesse eu sei que podia pega o que tivesse vontade aqui,mas pra que?Não é nada meu,não fui eu que comprei.Por mim vocês sabem muito bem que eu pegava esse monte de roupa e mandava pra um áxilo,mas eu já disse que não vou me meter...Vocês que se virem!

Marcela queria chorar,queria gritar,queria que seu pai estivesse vivo,mas nada disso aconteceu.Foi embora como entrou,com dignidade!E ainda levou consigo um pequeno sentimento de alma lavada ,lavada com sangue,sangue de família.

Colocava as pastas empoeiradas no banco traseiro do carro,quando sente uma mão estranha lhe pousar no ombro.

-Bom dia!

-Sim!

-você é filha do finado Luiz?

-Sou sim por que?

-É que a minha mãe disse que...olha,eu não sei como fala isso viu...Ela disse que...que teve um caso com ele no passado sabe?e que eu sou filha dele.Eu não quero o dinheiro de vocês não,a pesar de precisar e muito.O que eu quero mesmo é ver se num tem umas roupa,ou algumas coisa que eu possa leva lá pra casa.eu to com quatro menino pra cria sozinha tu sabe...

-Pode entrar,eu tenho certeza de que tem muita coisa pra você lá dentro!-Responde sorrindo.com o rosto iluminado e a alma lavada.

Marcela não se surpreendera com a notícia,seu pai nunca foi o homem mais fiel do mundo,mas se sua mãe não ligava...ela o amava,amava como ele era: carinhoso,animado,vaidoso,protetor,infiel...SEU PAI!Isso nunca mudaria,porque ela sabia que as roupas uma hora de diz fariam,como o corpo dele,mas tanto seu espirito quanto sua lembrança,eram imortais,e continuariam renascendo,momento após momento,a partir de uma foto, de uma história lembrada,de um sonho...De um encontro no infinito,de um encontro no infinito!