Conto de Um Quase Abandono.

Sinto frio nos pés. Abro os olhos devagar, contorcendo meu rosto, fazendo a careta matinal de todo santo dia, meu jeito de acordar incomodado, porque eu sempre quero dormir um pouco mais. Após alguns segundos lutando contra o sono, finalmente obtenho consciência e recolho meus pés nos lençóis. Viro para o teu lado, você não existe deitado como deveria, ao meu lado. Talvez esteja no banho, na sacada, no saguão do hotel ou ainda nos meus sonhos... Fecho os olhos novamente para desenrolar as lembranças da noite passada e encaixo todos nossos encontros como um quebra-cabeça montando uma imagem linda de um conto de paixão. Eu poderia passar o imenso resto de vida nesse estado de pós-absorção de um sentimento real. Mas não é possível viver em função dos frutos de uma paixão recente que, embora tão nova, seja forte. Não é possível viver em função em nada, só é possível viver. Viver basta, na maioria das vezes. Oras, hipocrisia minha que só vivo por você nos últimos meses. Mas esse é um segredo que eu só divido com lençóis e paredes. Abro os olhos com a maior vontade de existir do mundo, sento na cama. Lá fora um vento gelado, trabalho e vida me esperam. Eu preciso, ainda que nem por um segundo eu queira, sair desse quarto de hotel. Paro meu cérebro ativo que maquina o tempo todo e percebo o universo ao meu redor. Não há barulho de chuveiro, e daqui consigo ver a sacada, vazia. E vejo nuvens negras do lado de fora, um avião passando longe em silêncio. Evito chegar perto da janela para ver o cotidiano pregado torto nas calçadas da cidade. Por dentro, vejo a televisão desligada e mal colocada em cima de uma cômoda enorme e escura. Tão bonita. E o vaso de flores ao lado da televisão pequena e graciosa, tudo tão bem colocado, tão perfeito, cheirando bem, me fazendo bem e feliz. E vejo tudo, até que olho para a porta e vejo o que deveria ter visto logo no começo, antes de me deixar levar pela maravilhosa sensação de estar apaixonado por você: um bilhete. Grudado no meio da porta escura, o papel amarelinho e pequeno parecia um passarinho perdido no meio daquela enorme porta escura. Estou longe, tenho a visão ruim desde quando era menino e não consigo ler daqui o recado que você deixou. Talvez eu esteja vendo um coração desenhado na folha. Sim, definitivamente, é um coração. E imagino que talvez seja um bilhete avisando onde você está e que logo está de volta. Consigo imaginar até uma assinatura afetuosa, na tua caligrafia perfeitamente alinhada, assinando teu nome, tão bonito. Resolvo me enfiar inteiro embaixo dos lençóis outra vez. Lençóis com cheiros teus, travesseiro enfeitado com fios do teu cabelo claro. Eu abraço tudo e todo meu sentimento. Mas decido que é hora de levantar e procurar por você. Visto minha roupa, abro a cortina ainda mais, ligo o som e qualquer música me parece melodia perfeita, tomo um banho gelado e deixo teu bilhete por último. Arranco-o da porta e sento de pernas cruzadas na cama, para enfim, descobrir onde você se meteu. Confesso minha bobagem de ter pensado mais cedo que histórias de amor, romance ou qualquer coisa, dure. Não, poucas coisas duram nessa vida. E nós não nos encaixávamos nessas poucas coisas. É o que o teu bilhete diz. E não, não é um coração no final, é só tua assinatura nem um pouco afetuosa, com uma letra feia, torta, apressada, medrosa, nojenta. Confio-te o segredo de não saber o que sentir, não é dor, não é alegria nem tristeza. É um não-sentir estranho, uma náusea vagabunda no estômago, arrepios pelo corpo, um desespero de gritar naquele quarto vazio cheirando a paixão barata para a qual eu me vendi. É um vazio. Depois de você, ficou o vazio. Me passa pela cabeça que pode até ser uma brincadeira tua e eu saio hotel afora me aventurando a te buscar no saguão. Deixo para trás os lençóis, a paixão, eu e você, e sigo para as escadas. Sim, desço de escadas, milhares de degraus de medo e solidão já tomam conta de mim. Desço de escadas pra sentir em cada passo, o impacto da busca irracional e relutante que eu não sentiria se descesse de elevador. Três degraus abaixo e eu já perdi a conta da porcentagem do quanto o vazio cresceu. Onde está você? Contenho-me e paro para recuperar o fôlego. Perto de mim, uma janela enorme me mostra um nada maior ainda e eu começo a pensar que você já pode estar longe. Em milhares de ruas e avenidas dessa cidade morta, interligadas a mais centenas de estradas e rotas loucas, você pode estar em qualquer lugar, e qualquer lugar é previsível demais pra mim que preciso te achar dentro de cinco minutos antes de entrar em desespero. Choro e desço mais degraus. A mão suada no corrimão e os passos frenéticos ecoando naquele lado abandonado do prédio enorme. Seis andares a menos e eu paro outra vez. Porque você foi? É uma pergunta que me faz sentar e pensar bem. Preciso recuperar o dobro do fôlego anterior e você já deve estar longe. Dou-me ao luxo de sentar no degrau frio, encostar-me à parede também fria e fechar os olhos pensando nas dezenas de trilhas que teu sentimento pode ter seguido. Começo procurando meus defeitos que, por serem tantos, me perco na conta. Tento citar então minhas qualidades, mas o que é qualidade pra mim talvez não seja pra você. E suspiro que é tudo tão complicado... Penso então no que me acontecerá a seguir, se eu seguir em frente. Se eu descer até o saguão, com certeza você não estará me esperando com um sorriso enorme no rosto como eu desejo. Então, além de ter a absoluta certeza de que você partiu, ainda vou ser taxado de louco por sair assim atrás de alguém que me deixou sem dó nem piedade. E se eu voltar para o quarto, ajeitar minhas coisas, colocar uma roupa e sair de cabeça erguida do prédio? Duvido muito que você tenha pagado a conta da nossa estadia... Então será mais digno pra mim e pro meu coração apertado e acelerado, sair fingindo ser herói, pagar a estadia e perguntar como quem procura um produto em supermercado, se alguém te viu passar, se você deixou notícias ou algum bilhete. Saio por uma porta lateral perto da escadaria, subo no elevador e a cada segundo que passa, martela na minha cabeça a certeza de que não, não haverá notícias ou bilhetes. O elevador tá vazio, eu me olho no espelho e analiso a embalagem... Abro um sorriso. Eu me apaixonaria por mim sim, e ao invés de me perguntar por que isso não aconteceu com você, eu deixo pra lá, não quero saber. Mas eu não vou atrás porque se meu destino fosse escrito na mesma página que o teu, você não seria esse fugitivo ridículo e descarado que você é agora. Nem um beijo na testa pra partir, covarde. Entro no quarto, vazio, volto pra cama e me jogo. Umas lágrimas escapam, mas não por você e sim pela chance gasta. Mais uma vez não deu certo e todo o discurso que eu, volta e meia, faço. Sento na cama e percebo que você largou o relógio na cabeceira da cama. Relógio falsificado, feio, de mau gosto. Suas roupas também são feias e de mau gosto. Eu sorrio. Acho-me maior e melhor que você. É você que precisa de mim, eu te escrevo um conto e fim, você é página virada. Coitado. Bem assim, eu falo bem alto: Coitado! Visto minha roupa e desço com a dignidade mais sincera do mundo colocada no peito como um broche de brilhante. Paro na recepção, você não pagou a estadia. Deixo seu relógio com a moça do cabelo cor de gema de ovo, se acaso você voltar... Saio pro dia frio e cinzento e percebo o quanto eu estou feliz por conseguir ser pra mim mesmo o que você não foi. Ando até a esquina em passos firmes, enquanto o vento passa pelos fios de cabelo e arrasta consigo as últimas partículas de você em mim. Estendo a mão, já livre das tuas, e consigo chamar um táxi. Conseguirei ainda passar na minha casa antes de ir ao trabalho, descansar, ler um livro, te esquecer de vez. De longe eu olho a porta de acesso ao prédio e você está lá, afobado, sem relógio, sem amor, um coitado. Não sinto nada. Ou mais que nada, eu sinto pena. Pena por nós. Não é raiva, não é rancor, nem tristeza... Eu só queria que desse certo. Ainda assim eu penso em voltar até aquela porta grande pra te falar quinhentas coisas que eu deixei sair como choro debaixo do chuveiro, mas eu deixei sair, já foi. Você entra no prédio com a esperança de encontrar teu relógio e não me encontrar. Posso até ver seu passo vacilante e imaginar o teatro que você faria caso eu estivesse no saguão de entrada. Eu entro no táxi com a esperança de encontrar outra história e não mais te encontrar. Que seja assim, cada um em seu lugar, cada um na sua estrada. Que seja assim, toda aventura doce tenha um fim. Que você um dia ame alguém. Que eu também. Que seja assim, passageira a paixão e eterno o amor que há de vir.

Leo Freitas
Enviado por Leo Freitas em 01/07/2012
Reeditado em 01/07/2012
Código do texto: T3754922
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