O lado de fora da dor.

Rodoviária cheia de malas, pessoas, humor e cheiro de café matinal às seis da manhã de uma segunda-feira quente. O sol tinha acabado de aparecer por trás do portão número dois e era possível ver pelo reflexo, milhares de grãos de poeira subindo no ar quando bagagens colidiam com os carrinhos de metal. De longe, uma índia de cabelos longos entoava uma canção de ninar para uma criança vestida num vestido cor de rosa bem claro. Eu ouvia de longe a canção e queria dormir também, mas embarcaria dali alguns minutos, logo, eu precisava manter-me acordado. Tudo por ali era muito quieto e doloroso. A tristeza dava pontadas no estômago quando eu via a cara de batalha das garçonetes naqueles barezinhos sujos, já tão cedo e cheio de homens velhos no fim de suas vidas encarando copos de cachaça e derrota. Tudo me doía naquele lugar, não escuro por causa do céu, mas pesado por causa da vida. A vida não era fácil pra quem trabalhava ali e a vida não era fácil praquela índia também porque ela usava roupas sujas e sandálias arrebentadas. Volta e meia passava uma senhora ou um adolescente qualquer de nariz em pé. ‘Vou pra São Paulo’ eu os ouvia dizer, nojentos, ou Belo Horizonte, ou Rio de Janeiro, mas que fossem pra Paris! A arrogância daqueles poucos só os levaria pro inferno. Que fossem pro inferno. Se a arrogância fizesse jus ao bolso, deveriam ir de avião. E que morram sem ar na turbulência porque eu sempre quero varrer do mundo quem se sente melhor. Hipócrita, eu sei. Eu era superior a eles e sentia, mas eu já era mesmo uma sombra apenas no mundo grande. Quem tinha lugar no céu era aquela garçonete que tinha levantado às quatro da manhã e tava ali, no bar em frente ao meu banco servindo sorridente um senhor sem dente e maltrapilho. E ela cantarolava no balcão e sorria e servia e lutava e vivia. Eu já gostava dela antes de conhecê-la, pelo jeito de sorrir sincera, ou só pelo fato de rir da vida quando essa enchia seu caminho de pedras. Ela dizia em alto e bom som que guardava as pedras, pois faria uma estátua de si própria e colocaria no meio da praça central da cidade. Serei famosa, ela dizia. Na loja de doces ao lado, uma gorducha olhava por baixo dos óculos todas as crianças que berravam para mães sem dinheiro por um chiclete ou chocolate. Olhava de cara feia, não gostei tanto dela. Mas muito duvidei que fosse soberba ou arrogante. Pensando assim, eu até simpatizava com a vendedora de doces. Era como vender sonhos. Pra crianças. Até que deu minha hora de embarcar e eu segui mancando com dor no pé por pisar no solo dessa gente sofrida. Eu confesso que senti sua falta desde as seis da manhã, porque todos meus dias começavam uma da tarde com uma ligação tua, ou uma aparição ao pé da porta, sem propósito, só por vontade. Mas eu não podia e nem queria comparar minha dor com a daquele povo. Eles tinham cortes mais profundos nas emoções. Eu que não tinha mais você, tava indo pra outra cidade. Bem quis eu nesse momento ser arrogante e poder te ligar e dizer como aquelas pessoas de nariz empinado ‘Vou pra São Paulo’. Mas eu não ia. Eu embarcava pra uma cidade do interior de aspecto triste também, cheia de dores naquele mar escuro de águas sozinhas que eu tinha me tornado. Alcancei o ônibus que era o melhor da rodoviária porque eu, também com tristeza percebi, tinha condições de viajar com conforto. Se (pu)desse, me desfaria dos meus poucos luxos pra dividir com a gorducha dos doces ou a garçonete da estátua ou a índia de roupa puída, mas uns vinte reais não mudaria a vida daquelas humanas. Sentei na poltrona perto da janela e me vi cuidando mais da dor alheia porque me distraía da dor mesquinha que eu sentia desde quando você disse que não queria mais ficar comigo. Desde então, eu tenho ouvido música no barulho da chuva caindo, visto poesia em palavras soltas pela cidade, encontrado você em todos os rostos que me olham nos olhos. Não é fácil. Mas é muito mais difícil pro rapaz do lado de fora do ônibus, vendendo colares, brincos e pulseiras de semente expostos organizadamente lado a lado no que parecia ser algum tipo de tecido aveludado preto. E em contato com aquela realidade dolorosa do dia-a-dia daqueles seres humanos, literalmente humanamente existindo, meu amor por você parecia um grãozinho de arroz no meio da maior e melhor safra do ano. Era pequeno, bobo. E antes de viajar eu fechei os olhos e rezei por você sim, mas me empenhei mais naquelas vidas sangradas, algumas com esperanças, outras conformadas. Havia muito além daqueles muros quentes da rodoviária, daquele nascer de sol quase sem luz, daquelas pontadas de tristeza desesperada. Há sempre mais, e há sempre na gente um jeito de ver e deixar-se levar e sentir. Basta querer. Eu quero, quis, hei de querer. Você me deixou, espero que sinta muito ou sinta de novo algo por outro alguém. Porque também há mais além do nosso pseudo-amor, da nossa quase união errada na sua totalidade. Há mais coisas quando entrelaçamos os dedos do que apenas dedos entrelaçados. Você até viu, mas só eu enxerguei de verdade. Da mesma forma que você até veria a índia com a criança no colo, mas você não enxergaria a dor nas costas daquela senhora. Eu enxerguei de verdade. E se um dia você estiver consciente do caleidoscópio de sensações que é a vida e o mundo, eu estarei pra onde irei, esperando você. Porque há mais além da minha partida também. Escondida no meio das malas e despedidas há minha esperança num mundo melhor. Em vidas melhores. Em você melhor o bastante para que eu possa te amar a partir das seis da manhã todos os dias. Que você sinta e veja, que eu espere e não te supere. Como queira o destino, enfim.

Leo Freitas
Enviado por Leo Freitas em 30/06/2012
Reeditado em 30/06/2012
Código do texto: T3752461
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