Reencontro cor de café

Era um café grande, vermelho e marrom, com janelas lindas, mesas de madeira escura e, de praxe, cheiro forte de café em todo canto. Fizesse frio na rua molhada, inverno justificado, me apressei a entrar e me livrar do recomeço da chuva sorrateira que varria as ruas de pedras quadradas naquela vila pequena. Fora, chovia desde cedo. Dentro, chovia há meses. Tempesteou no começo, assim que você decidiu que não era certo, depois choveu bastante, com fatos me inundando. Fatos como você namorando outra pessoa, sem deixar a cidade, e o medo de virar cada esquina e entrar em cada livraria e encontrar vocês dois, prontos pra me atacarem com um soco no estômago apenas sorrindo e sendo felizes. Fatos que eu precisamente jurava serem rumores maldosos. E por fim, virei garoa. Agora garoa eu sou, entrei no café pra fugir de mais chuva, já bastava a minha. Sentei quieto numa mesa de dois lugares, sem olhar demais em volta. Porque embora já fizessem meses do nosso término, eu ainda andava nas sombras do medo de qualquer sinal que poderia me causar mais tristeza. Eu estava relativamente vivo, trabalho, estudo, trânsito, padaria, fila de banco, pessoas, céu cinza, calçadas molhadas, roupas amassadas, a casa sem pintura, a vida também. Mas eu ainda vivia, eu sentia, eu escrevia, e não fosse meu estado em eterna atividade, eu teria sucumbido. E depois de você saí com muitas pessoas, experimentei qualquer promessa que me fizesse te superar. Virei garoa, talvez esteja funcionando. Mas mesmo assim tenho medo de encontrar você. Mas meu outro lado, mais idiota e inspirado em cenas de filmes americanos, queria loucamente saber como você andava, se tinha o mesmo visual, se teu ipod tocava nossas músicas uma hora ou outra e se você pensava em mim, ou se lembrava das coisas boas, ou se realmente houve coisas boas porque eu já nem sei mais o que fizemos de nós... Me perdi no meu diário psicológico e só voltei à realidade quando a garçonete, moça bonita, morena, mascando chiclete insolentemente me perguntou o que eu desejava. Ia pedir você, contive meu senso incomum, pedi café com leite bem quente, por favor. E enquanto aguardava meu pedido chegar, e estudava logo a maldita porta de entrada pra me distrair de não pensar em você, ela abriu. E como se medos se materializassem e você entrou com ele no café, na minha frente, na minha cabeça, rasgando as paredes das minhas expectativas e de todas as esperanças que eu alimentava, como você ter terminado comigo só pra poder ficar sozinho e não com uma pessoa melhor que eu. Embora eu achasse francamente que ele nunca seria melhor que eu. Eu que sempre amei minha aparência quis então aparentar ser uma daquelas paredes, sumir, me camuflar, qualquer coisa pra não ter que falar contigo. E não foi preciso. Você vasculhou o lugar com os olhos logo que entrou, e encontrou os meus olhos afundados em um mar de meses de espera pelo reencontro, e então, depois de uns segundos me olhando, simplesmente leu minha mente e resolveu fingir que eu era realmente uma parede. Segurou a mão dele, arrastou-o para três mesas atrás de mim e eu sugiro que tenham sentado, ouvi o barulho das cadeiras se arrastando. E risos, e suas vozes. E a tua voz. Ridículos, pensei. Que se fodam, pensei também. E quis gritar, mas nem voz de repente eu tinha mais. Meu coração estava num estado deplorável, minha garoa virou tornado, eu queria sair correndo dali, destruindo aquele lugar e aquele amor fajuto e superficial cheirando chiclete que emanava de vocês. Porque pra mim, não haveria amor melhor que o meu, o resto era feio, chato, piegas. Mesmo morrendo de vontade de bancar um fingimento de superação e ir falar com você, decidi nem fazer isso, nem ir embora. Me contentei com uns minutos de reflexão no banheiro. Levantei quase sem fazer por barulho, embora, por dentro, eu fosse um show de rock’n roll e fui até o banheiro do café. Era limpo, ainda bem, pensei. Se fosse uma mulher fracassada, escreveria teu nome e uma ameaça no espelho, bem baixa, escandalosa, frustrada. Eu não era uma mulherzinha. Era uma pessoa. Louca pra ser baixa, escandalosa, frustrada, mas eu não podia. Eu não podia jogar no lixo todo o teatro de meses de que havia te superado e tudo ia bem, claro. Te confesso que chorei sentado na privada do banheiro do café, feito um adolescente não correspondido e cheio de medo de voltar pro salão de madeira e te ver segurando as mãos de outra pessoa, tão terno, carinhoso, cavalheiro. E ainda chorando ali, esfregando minha fraqueza e minha paixão sem data de validade nas paredes brancas e acusadoras daquele banheiro silencioso, lembrei de todos nossos momentos. Momentos que eu poderia descrever com extrema precisão, mas me machucaria mais e por isso sempre me contentei em apenas lembrar e depois jogar tudo na privada e dar descarga sem saber que a merda estava eternamente gravada na minha mente fraca. Abri a porta da cabine devagar, sem fazer um ruído sequer e espiei o lado de fora. Vazio. Ironicamente como eu. Corri até a torneira mais próxima e lavei meu rosto. Sequei com a manga do casaco e parei um instante pra me avaliar no espelho minuciosamente limpo. Tinha aparência exata de escritor que vive em cafés e em chuvas interiores eternas. Queria bem naquele momento um ar esportista e um peito estufado cheio de orgulho e auto-estima que eu nunca tive porque nunca fui bonito. Mas pensei em você, que eu sempre achei lindo sem avaliar. Você que tinha uma barriga desproporcional ao corpo, um jeito esquisito de se vestir, uns amigos chatos e umas ideias entediantes, e atitudes complicadas. Tudo muito complexo. E mesmo assim eu não suportava perder você pra outra pessoa, sem nem saber os porquês. E foi com um pesar enorme que eu percebi que gostava de você pelo seu recheio, não pela sua cobertura. Soquei a pia, sequei as mãos. Abri a porta, ergui a cabeça e sem pensar se eu era melhor, menor, pior, maior do que vocês dois infames ridículos e o escambau de xingamentos que se possa imaginar, passei de nariz empinado por vocês. Se minha indiferença era falsa e superficial, só eu sabia. Ao menor vestígio de que você tinha percebido com certeza eu teria virado o pé no sapatênis velho, engasgado ou algo do tipo, mas não, você não percebeu. Pior que isso, você não me percebeu. Você nunca me percebeu. Voltei a sentar cuidadoso na minha mesa e logo a garçonete me trouxe o pedido. Tomei devagar, de olhos fechados, aguados, acuados. Café, leite e lágrima. Nosso não amor tinha um gosto bom. Com o coração então calmo e sereno, concentrado numa matéria sobre concursos teatrais na cidade estampada no jornal, consegui me distrair da tua presença incômoda no mesmo cômodo que eu. Por alguns minutos, até teu amor ir saltitante para o banheiro e você ficar sozinho na mesa. Bichinha, pensei. Meu coração que então tinha tirado um cochilo merecido saltou e começou a correr em órbitas quando eu ouvi o barulho da tua cadeira arrastar. Ouvi teus passos chegando perto da minha nuca e me senti vulnerável, como se você viesse com uma faca empunhada, pronto pra me matar. Tentei manter a calma e olhei para a maior janela do café, do meu lado direito, enquanto você chegava manso e debochado do meu lado esquerdo. Você contornou minha mesa e parou na minha frente, apoiando as duas mãos na minha frente, e se inclinando pra mim. Sussurrou que não acreditava que era eu, que eu estava tão... Tão... E suspirou. Continuei olhando para a janela imensa que mostrava senhoras de guarda-chuva correndo delicadas para algum abrigo. Não sabia o que falar e não ia arriscar uma frase errada, porque tudo que eu falava era sempre do avesso. E como nunca soube me segurar, disse que eu era mais que aquele suspiro ridículo, e levantei brutalmente pronto para gritar e enfiar minha mão no teu rosto perfeitamente desenhado. Mas teus olhos de café me amansaram e eu só fingi que levantei pra ir embora, pra aliviar as batidas do coração com passos errados até o caixa e depois até a porta de saída. Eu havia esperado por meses pra te dizer tantas coisas, e não estava nos meus planos calar meus discursos ensaiados quando te encontrasse. Mas foi o que fiz. Não conseguia dizer uma palavra sequer e é por isso que agora tô aqui, dias depois no mesmo café, na mesma mesa com a mesma chuva... Tomando café, leite e lágrimas outra vez, escrevendo cartas que nunca vou lhe entregar, contando sobre nosso reencontro para ouvidos surdos. Reencontro perturbado, pesado, simples pra você e destruidor pra mim. E teus olhos de café, imagem permanente na minha cabeça. Olhos de café, cabelo cor de café e reencontro. Reencontro cor de café também. E amargo.

Leo Freitas
Enviado por Leo Freitas em 30/06/2012
Reeditado em 02/07/2012
Código do texto: T3752458
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