imgagem: Gare de l'Est - Paris (fonte: google)


Nota: Desculpem, sei que é longo, mas não consegui reduzir mais. 




RETORNO A PARIS
- Bonanza Bomtempo
 
     Bonanza, Na verdade, não tinha estômago para violência. Havia entrado para a arte da espionagem por força das circunstâncias. De todas as pessoas que havia eliminado, sempre fora de forma justa, no calor do momento, num confronto direto. Talvez até fosse capaz de eliminar um alvo a sangue frio, sem que este tivesse qualquer chance de defesa. Apesar de todo treinamento e do tempo de experiência naquela profissão, esse era um dos recursos a que Bonanza não havia chegado e sempre fizera o possível para evitá-lo. Não sabia qual seria sua reação quando chegasse o momento em que fosse realmente necessário tal recurso.
     Olhando pela janela do trem em movimento, Annette vê as primeiras edificações de Paris se aproximando. A viagem transcorrera tranquila. O único momento que trouxera alguma tenção fora no trecho entre Calais e Lille, onde ouve uma inspeção da milícia, polícia formada for franceses, coniventes com a ocupação alemã. Annette Fontaine havia mostrado, pela primeira vez os passes falsificados, juntamente com o de Charlton Fontaine, seu suposto marido.  O policial verifica os passes, olha para os dois, devolvendo-os em seguida. O sistema de passe havia sido implantado para controlar o fluxo de pessoas dentro do território francês, principalmente ao norte, onde havia toque de recolher e era mais intensa a circulação espiões de forças inimigas do Terceiro Reich. Esse controle por meio de passes era administrado pelas forças de Hitler ou mesmo da milícia francesa. Era similar ao passaporte, implantado alguns anos antes, após a Primeira Grande Guerra. Antes os habitantes tinham transito livre através das fronteiras, sem nenhum controle de quem entrava ou saia.
     O resto da viagem transcorre normalmente. Agora, ali, chegando a Paris, Annette sente um pouco de alívio. Segundo suas informações, ali a fiscalização não era tão intensa como em Calais. A dificuldade estaria nas condições de vida dos parisienses, com escassez de alimentos e de vestuário, que sempre fora orgulho dos franceses.
     Ao desembarcarem na Gare Du Nord, tudo transcorre na maior tranqüilidade. Para sair pelo portão é necessário passar por um posto de controle de tráfego de passageiros, onde são vistoriados quem chega e quem parte, naquela estação.  Annette e Charlton Fontaine teriam que apresentarem seus passes falsificados novamente. Mantiveram a calma e, após enfrentarem uma das três filas que se formaram com o desembarque de passageiros, passam pela identificação tendo sua bagagem vistoriada, uma mala e uma nécessaire e são liberados sem problemas. Saem da estação e se dirigem a um taxi e embarcam dando um endereço ao motorista.
     Ao chegarem ao destino, Charlton, mais uma vez, olha pra trás e dá uma olhada ao redor, constatando estar tudo em ordem. Charlton paga o motorista e desembarcam com a bagagem. A viatura parte e assim que dobra a esquina, os dois pegam suas bagagens e retornam a pé, virando à direita na segunda rua e novamente à esquerda na primeira. Na próxima esquina param novamente, ele olha pra trás. Tudo em ordem. Olha pro prédio à sua frente de dois andares, de esquina, tendo na parte de baixo um bar, e na parte de cima duas quitinetes. Annette e Charlton passam por uma entrada lateral e sobem uma escada externa até o segundo andar, onde são recebidos por Jean Pierre, dono da quitinete e do bar, logo abaixo. Após os cumprimentos, são instalados na segunda quitinete, com Jean Pierre prometendo voltar em meia hora, para buscá-los para um lanche e conversarem.
     Cerca de uma hora depois, estão os três no apartamento de Jean conversando sobre a possibilidade de buscarem as informações que necessitam, ainda aquela noite.
     - ... e sentem-se tão seguros que a porta da frente não fica trancada, apenas constantemente vigiada por um guarda. Mas segundo pude apurar, há uma falha na segurança aqui – diz Jean apontando para uma parte do desenho, feito de forma tosca, sobre a mesa, representando o prédio de escritórios ocupado pela Gestapo – É um ponto cego... mas ainda assim é arriscado tentar entrar lá sem nenhum apoio.
     - Não se preocupe, diz Charlton. Vamos conseguir. Temos que conseguir. Precisamos daquela documentação, e mais, saber o paradeiro daquele agente alemão.
     - De qualquer forma não contem comigo pra entrar lá. Eu lhes darei total apoio fora, ou mesmo lhes dando abrigo, mas não posso entrar lá com vocês.
     - Não se preocupe. Quanto menos pessoas melhor. Dará menos na vista.
     Jean Pierre dá mais detalhes sobre o local, rotinas dos guardas de serviço do prédio. Decidem entrar lá ainda naquela noite.
     Charlton e Annete passam o restante da tarde revendo o plano de ação. Logo no início da noite, os três se deslocam para um prédio residencial, de três andares, situado a duas quadras do prédio de escritórios burocráticos da Gestapo em Paris. Alcançaram o segundo andar pelas escadas e entraram discretamente no primeiro apartamento, com janelas pra rua, de onde podiam ter uma ampla visão da mesma e uma vista parcial da torre da igreja Saint Nicholas des Champs. Os antigos moradores eram judeus e numa manhã após a ocupação alemã, a milice, a polícia especial francesa, que era temida e odiada pelos próprios franceses, bateu à porta insistentemente. Ao abrirem a porta, seus ocupantes foram arrastados como animais para a rua e levados dali, sem que os vizinhos soubessem o destino. Jean Pierre era amigo do filho do casal.
     - Sabe-se que o destino dos que são levados daqui são os campos de concentração – diz Pierre – São trancafiados como bichos, sem nenhuma condição de sobrevivência. Muitos morrem de fome, ou espancados.
     - Há outras famílias habitando este prédio? – quis saber Annete.
     - Sim. A maioria mulheres, algum idoso. Grande parte de suas famílias foram recrutados para trabalharem em fábricas bélicas alemãs, no chamado “Serviço de Travail Obligatoire”, ou seja, trabalho forçado. Eu tenho evitado encontros com esse pessoal, fugindo de alguma “convocação”. Pra ser sincero, não sei o que é pior, se por aqui o que se vê são pessoas sem ter o que comer; mal conseguem comprar um pão com o que tem.
     - Soube foi uma das condições impostas por Hitler, o pagamento exorbitante, para uma saída menos traumática para os franceses.
     - Menos traumática fica por sua conta. Praticamente tudo que a França produz é confiscado pela tropas de Hitler. Alexey, um russo que morava aqui neste prédio, logo acima, também foi levado no mesmo dia que levaram a família deste apartamento. Também nunca mais foram vistos.
     - E enquanto ficamos aqui não há possibilidade de sermos vistos e denunciados?
     - Não creio. Conheço todos do prédio. Todos detestam a milícia e os alemães. Em todo caso é melhor ficarmos discretos até a hora de agir.
     Jean Pierre acha desnecessário falar sobre famílias que escondem judeus, como aqueles, em dois apartamentos no andar superior, que por pura sorte não foram encontrados pela milícia.
     Às 3:20 da madrugada, três pessoas se aproximam do prédio onde funcionava os escritórios da Gestapo, e também as salas de interrogação de prisioneiros.
     Aguardam escondidos entre as folhagens do jardim em frente.
     - Daqui a pouco ele entra, e cerca de dois minutos seu substituto retorna pra ocupar seu lugar, só saindo dali às quatro horas pra ronda, quando já deverão estar de volta ao primeiro escritório aproveitando pra saírem sem serem vistos.
     - Relaxa, Jean. Temos tudo sob controle.
     Alguns minutos depois o guarda se levanta e se dirige ao interior do prédio.
     - Agora! – balbucia, Jean.
     Annete e Charlton atravessam rapidamente a rua e passam pela porta, que como esperado estava destrancada. Conseguem alcançar um dos escritórios. Alguns minutos depois ouvem os passos do guarda substituto se dirigindo ao seu posto. Aguardam um momento e saem dali, indo para os fundos do prédio. As escadas ficavam à esquerda, escondida pra quem olha lá de fora. Sobem pelas escadas alcançando o primeiro andar. Seguem num corredor, entrando na última porta à esquerda.
     - É neste aqui – diz Charlton acendendo uma lanterna, analisando o local.
     Ao fundo, encostado na parede, cinco armários de aço. Annete vai até eles.
     - Trancados! E agora? Impossível abrir sem fazer barulho.
     Charlton sorri. Calmamente enfia os dedos num dos bolsos do colete e retira uma chave, mostrando a Annete.
     - Que tal isso?
     - Como...? Você tem a chave desses armários? Como!?
     - Melhor você nem saber...
     Com cuidado pra não fazer barulho, Charlton abre todos eles, e calmamente começam a procurar entre os arquivos.
     Pouco depois Annete balbucia:
     - Achei!
     Era uma pasta de capa preta, que Annete folheava. Nele constava registros de espiões alemães em solo britânico. Registros completos, com nomes, fotos, endereços... tudo.
     - Será que estão todos aqui? Se estiverem nem precisaremos ir em solo alemão.
     - Sabe que independente de estarem todos aí, teremos que ir.
     Annete consente. Passa a mão por mais alguns arquivos. Se detém diante do próximo. Na capa dizia: Mata Hari. Folheia-o rapidamente.
     - Vou levar esse também.
     - Pra quê?
     - Gosto de boa leitura – responde com um sorriso irônico.
     Fecham os armários, arrumam tudo pra que não descubram logo que alguém esteve ali, e preparam-se pra sair. Annete ilumina ao redor, conferindo tudo. Ao iluminar sobre a escrivaninha, lê num envelope, um nome que lhe chama a atenção. Olhando mais atentamente consegue ler melhor: “Para Lisenbröder. Em mãos. Confidencial”. Ali estava, naquele envelope, o nome do homem que deveriam caçar em solo alemão. Charlton tinha uma descrição dele, mas era muito pouco. Annete o conhecia, já o vira antes. Por isso fora escolhida para aquela missão. Ao ver aquele nome Annete se lembra de Beni, seu único amor que fora sequestrado e morto por aquela pessoa. Um pouco atônita, se afasta batendo com o pé na lixeira, que naquele silêncio soou como uma banda marcial.
     - Ssshhh! Cuidado! Espero que não tenham ouvido.
     Permanecem em silêncio mais algum tempo. Ouvem passos lá fora. Portas se abrindo. Cada vez mais próximo. Os dois se posicionam atrás da porta. Pouco depois ela se abre e as luzes são acessas, ofuscando a visão dos dois. Ao perceber uma mão armada avançando, passando por ele, Charlton entende que deveria agir depressa e a golpeia com a lanterna, derrubando a arma no chão. Aproveitando-se do susto causado se atira sobre o guarda. Enquanto lutam, tentando dominar o outro, Annete pega a arma e dá uma coronhada na cabeça do guarda.
     - E agora? – pergunta Annete.
     - Agora...? Agora ele viu nossos rostos. E este não é o que estava lá na frente.  Talvez consiga nos reconhecer mais tarde. O trem parte de Paris às sete horas da manhã e nós devemos estar nele.
     - Não há como amarrá-lo aqui, e mesmo que pudéssemos ele poderia ser descoberto assim que o outro guarda fizer a ronda e der por falta dele.
     - Exato. E ele não pode falar. Entende o que quero dizer?
     - Mas porque eu e não você?
     Charlton é pego de surpresa pela pergunta. Meio desconcertado, responde:
     - Porque tem que ser assim. E alguém tem que cuidar do outro guarda. Pode ser que tenha ouvido algo e acredito estar melhor preparado pra isso. Não podemos perder tempo. Apenas execute a ordem. Mas espera eu descer as escadas e me preparar pra neutralizar o outro guarda. Pegue a almofada pra abafar o barulho.
     Bonanza Bontempo se vê diante de seu grande temor. Mas não havia tempo a perder com sentimentalismo ou outro tipo de convenção. Não havia tempo pra pensar. Tinha que ser feito e pronto.
     Charlton pega um peso de papel sobre a mesa e sai. Quando está descendo as escadas ouve um barulho abafado, ainda assim alto. O suficiente pra ser ouvido lá embaixo.
     - Droga! Pedi pra esperar eu chegar lá embaixo. Tomara o outro guarda não tenha ouvido.
     Mal chega embaixo e percebe a vinda do outro guarda. Estava escuro. Conseguiria neutralizá-lo sem ter que eliminá-lo. Quando o segundo guarda se aproxima da escada, Charlton consegue atingi-lo com o peso de papel, deixando-o desacordado. “Melhor assim...” – pensou.
     Pouco depois Annete o alcança.
     - Vamos sair logo daqui!
     Saem dali, se encontrando com Jean Pierre. Seguem direto pro bar, sempre com o cuidado pra não encontrarem quem quer que fosse pela rua.
     Assim que chegam ao apartamento:
     - Jean – diz Charlton – Teremos que partir daqui a pouco. Tem certeza que o mensageiro dará conta do recado? Isto tem que chegar ao destino o mais rápido possível.
     - Não se preocupe. Ele estará aqui logo bem cedo. Eu mesmo lhe darei as instruções. Deverá entregar isso a Gustave. Ele saberá o que fazer. E vocês?
     - Sairemos daqui a pouco pra Gare de l’Est. Estaremos no próximo trem.
     Charlton pega seus antigos passes e os rasga. Confere o novos documentos.
     Cerca de uma hora depois, quando o dia ameaça nascer, duas figuras seguem pela rua levando apenas uma valise e uma nécessaire.
 





Walter Peixoto
03/06/2012






OUTROS ARQUIVOS BONANZA BOMTEMPO

(anterior)
INSÂNOS
http://www.recantodasletras.com.br/contos/3640182


(próximo)
OLHA DA MANHÃ
http://www.recantodasletras.com.br/contos/3804249 






Walter Peixoto
Enviado por Walter Peixoto em 27/06/2012
Reeditado em 30/07/2012
Código do texto: T3747822
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.