O pescador

O pescador sentou-se na proa do barco. O chapéu de palha na cabeça protegia do sol, amigo que lhe acompanhara por esses longos anos de mar, a pele queimada e envelhecida demonstrava que esse amigo assim como o tempo, não havia sido gentil. A fumaça que saía do cigarro acesso no canto da boca, fazia piruetas no ar e subia quase verticalmente, não havia nem brisa. O mar de água barrenta estava calmo, mas ele bem sabia que ali não era mar. A doutora lá da universidade que fazia pesquisa nos peixes, havia dito que era um estuário. Mas estuário era um nome feio. Feio demais. Para ele, aquele era o mar. Um mar escuro e misterioso que escondia milhares de peixes e que transbordava de vida. Peixes que só ele sabia onde encontrar. Aprendera há muito tempo com seu pai, e ele com o seu avô e seu avô com seu bisavô e assim a perder de vista. Mas agora, o pescador dava-se ao luxo de filosofar, como eles aprenderam tudo isso? Ninguém sabe explicar, dizem que Deus ensinou o homem a pescar, Jesus pescou. Mas ele não acredita muito nisso. Teria sido o boto? Ora boto vira homem e quem melhor do que o boto que é esperto e rouba peixe da rede pra saber onde tem peixe e ensinar o homem a pescar. Até aquela doutora, ela disse que ele deveria colocar GPS, Sonda e radar se equipar, modernizar que assim iria encontrar o peixe. Ela também queria saber como ele aprendera a encontrar peixe, como o primeiro pescador aprendeu a pescar. Ele contou do boto. Sim, provavelmente foi o boto. Ô bicho maldito. Só que ela riu e falou que ele não sabia de nada, que era muito inocente. Será que ela teria razão? No entanto, isso não nos importa. O barco tem que andar se não ele não chega no pesqueiro. E esse negócio de pensar dá muito trabalho é melhor navegar que a noite já vem vindo.

Nada melhor que a companhia de uma boa cachaça para se passar a noite, o vento começa a soprar de leve, tímido como se não conhecesse aquele homem que se esquenta com uma dose de água ardente. Hora de lançar a rede. Mas primeiro é bom benzer-se, não gosta de passar a noite sozinho, dentro do barco, faz é tempo que sofre agouro de boto. Justo no dia da pescaria, o filho tem que estudar pra prova da escola, mas deixa o menino estudar. O pensamento que povoa a cabeça do pescador é apenas esse. Quando era criança não deu certo com os estudos. Preferia ir pro mar com o pai do que estudar era melhor ajudar a criar os irmãos. Hoje, quer que o filho estude e possa ser doutor. Já imaginou: doutor Roberto Carlos, filho do seu Arimilton com D. Maria Conceição. Doutor! Sem precisar se tostar no sol e nem sofrer travessura de boto.

Para Roberto Carlos ser doutor, ele tem que lançar a rede, e lança, acostumado a trabalhar sozinho não se enrola nem se atrapalha. Rindo enquanto lembra os “mininos” da universidade que vieram pescar com ele. Pescaram nada. Só fizeram marear. E a pescaria deles era tirar os peixes da rede depois que ele “despescava”. Iam estudar os bichos no laboratório da capital. Saber se os bichos estavam doentes. Mas aqueles meninos ficariam espantados se o vissem agora, sozinho e habilidoso ao lançar a rede. Tinha amigos que já tinham perdido um ou outro dedo lançado rede sozinho. No entanto, ele sabia o que fazer, tinha mais medo do boto nessas horas do que de perder o dedo.

Com a rede na água, á deriva. Era hora de deitar e esperar. É claro que com umas boas doses da cachaça. Até por que não se atrevia a dormir no barco. Não, havia muitos piratas na região e acima de tudo tinha o boto, o boto que sempre ia atrás dele, ele tinha que ficar acordado.

As estrelas piscavam e a lua começava a aparecer, era lua cheia, ia ser água grande e a pesca tinha tudo pra ser boa. As águas balançavam suavemente e embalavam o sono que começava a cair sobre o pescador, lembrou das maldades de juventude, quando matava boto sem pena, se viesse roubar peixe da rede matava mesmo, tinha uma espingarda que era do pai, velha, surrada, mas que ainda atirava. Com o tempo passou a matar boto por diversão, por tédio. Até a noite em que já casado, quando chegava de uma longa pescaria encontrou a mulher aos prantos, dizendo que já não agüentava mais a perseguição do boto, era só ela está “borrifada” que os botos ficavam a nadar na beira da praia em frente à casa do pescador. Ah, foi um desespero só, tiveram que sair da pequena e tranquila ilha em que moravam e mudar para a cidade em frente. Parece que na cidade o boto não se atreve, por que será? Será que tem medo de carro, de luz elétrica? Ou porque não gostava das pessoas incrédulas? Mas, é por causa disso que a doutora e os “mininos” da universidade não acreditavam nele, só por que o boto não se arriscava na cidade.

Mas ali no meio do mar, ele sempre aparecia, teve uma noite logo depois que se mudou com a mulher para a cidade, que ele saiu para pescar, sozinho assim como hoje, e quando foi dormir já tarde da noite, sentiu alguma coisa deitar do lado dele dentro da rede. Na mesma hora todos os pêlos do corpo se arrepiaram, e ele sentiu como se não conseguisse sequer abrir os olhos. Era o boto. Perseguindo esse amaldiçoado pescador. Era vingança. Boto é bicho família e vingativo. Ele lembra as vezes que ele matava um dos botos e os outros ficavam a chorar o corpo. Claro, boto era bicho, mas também era homem. Naquela noite ele pensou que terminaria virando boto. Que aquela coisa ali deitada na rede iria transformá-lo em boto para que ele fosse morto por outro pescador. E esse seria o seu castigo, essa seria sua punição. Só o que lhe restava fazer era rezar o pai-nosso e a ave-maria. Mas não conseguia falar. Apenas em pensamentos rogou misericórdia aos céus. E passou a madrugada assim a rezar em pensamentos sem saber o que aconteceria. Mas quando os primeiros raios de sol tingiram o amanhecer com suas cores. Aquela coisa levantou-se da rede e ele apenas pôde ouvir o barulho de algo pulando do barco e mergulhando nas profundezas daquele mar barrento. E, só então conseguiu se mexer.

E agora, a noite também terminava, passará a madrugada a pensar no boto, mas ele não apareceu. Era hora de puxar a rede.

Puxando a rede, lembrou-se do dia que contará isso aqueles estudantes e a doutora riu-se demais, dizendo ser bela a credulidade e ingenuidade de um pescador. Somente uma mocinha o escutará atenciosamente. E quando a doutora perguntou se ela acreditava, ela respondeu com um sorriso curioso: “Quem sou eu pra dizer se ele viu ou não? Acreditar nessas coisas eu não acredito, mas ah, professora, que existem elas existem!”.

Depois disso, a pesquisa terminou e nunca mais viu os estudantes incrédulos. E a doutora que em nada acreditava, com certeza aquela ali nem em Deus acreditava. Mas é melhor assim, deixar os doutores com suas pesquisas nos peixes e eu aqui com meu agouro de boto e minha pescaria. Só espero que eles nunca cruzem com o boto. Pois o boto não vai perguntar se eles acreditam ou não. Exceto aquela mocinha, ela com certeza vai lembrar de rezar o pai nosso e a ave Maria. Ah, era uma boa moça, ela bem poderia casar com o Roberto Carlos, assim que ele virar doutor.

E em pensamentos de pescador, a rede era puxada para fora da água, enquanto cantarolava aquela música: “... O boto não dorme, no fundo do rio seu dom é enorme quem quer que o viu, que diga que informe se ele resistiu, o boto não dorme no fundo do rio...”