Ponta dos Dedos
Estávamos os dois dentro do carro, com as luzes apagadas, vendo os orvalhos no pára-brisa, ouvindo a chuva bater no teto, ouvindo nossa respiração já mais calma. Sentindo as lágrimas secando e os olhos ardendo. Pra variar, eu tinha posto tudo a perder. E como sempre, sairia daquela situação com a sensação plena de ter feito merda e de estar logrando a mim mesmo, de estar privando de mim mesmo alguma coisa boa e promissora. Mas já nem doía mais tanto assim. Tinha me acostumado ao meu estigma. Só não sabia me acostumar com esse negócio de formalizar o término de coisas que começaram de maneira informal. Era triste não poder abandonar o navio sem dar satisfações aos tripulantes. O pior é que tudo ficava. Quando decidimos por força maior nos livrarmos de alguém com quem convivemos, ficam os filmes, os livros, as músicas, as esquinas, os bares; sobrevive ao tempo todo um aparato, toda uma remanescente gama de reminiscências da qual não podemos nos livrar tão rápido e nem tão cedo - quiçá, nunca - e que sempre serão aquela chaga que arderá em regozijo ou desgosto. É nessa hora que eu invejo os peixes e sua memória. Me olhei no retrovisor. Os pêlos de minha sobrancelha novamente se espichavam pra fora. A lancinante lembrança do por que eu as havia raspado fez com que eu gemesse. Lágrimas intrusas brotaram nos meus olhos e eu fiz com que elas secassem rapidamente. Esquecer. Esquecer. Esquecer. Era tudo que eu tinha a me agarrar: ao esquecimento. Eu mal poderia esperar pelo conforto da tumba. Pelo elixir do esquecimento que é ser morto.
Ela era ao volante. Era o carro dela, e a chuva caía torrencial do lado de fora dos vidros.
- Me deixa em casa? - Pedi.
Ela pareceu não ouvir. Estava absorta na música que tocava, não em seus próprios pensamentos. Eu sabia.
Toquei-a na perna com a ponta do dedo. De leve. Olhou o dedo. Parou nele o olhar. Depois, olhou nos meus olhos e assentiu e deu partida e saiu. As gotas batendo violentas contra o pára-brisa.
O dirigir em silêncio. A contramão adiante. A Morte vindo reluzente, radiante, tremeluzente, transmutada no chassi de um caminhão de trinta toneladas a oitenta quilômetros por hora. Morrissey, na rádio do meu cérebro, canta que seria um prazer ser destruído por um ônibus de dois andares, caso cuja destruição ocorra ao lado de alguém que ele ama.
Entendo o que ele quer dizer.
Entendo o egoísmo do amor.
Suspiro. Fecho os olhos.
Sinto os pneus deslizando no asfalto molhado.
Recordo que havíamos nos conhecido e começado o flerte escorados num poste da Rua Augusta.
Nosso primeiro beijo foi numa madrugada de inverno; estávamos com uma sinergia tão forte que o vapor fétido que subia do bueiro que estávamos em cima não nos incomodou. Nem os mendicantes que saiam dos confins do inferno pra pedir cigarro e ficavam prostrados do nosso lado, olhando, esperando, conseguiram nos incomodar.
Abro os olhos.
O ponteiro do velocímetro vai se movendo vagarosamente no sentido horário. Nesta velocidade, uma curva mais fechada seria o nosso fim.
Conhecemos essa estrada. Ela é linear. Uma linha reta liga um ponto ao outro com mais eficácia, penso. Minha relação com a minha motorista havia sido desprovida de conturbações. De curvas. Eu nunca que poderia imaginar que a ausência de agruras pudesse causar... O fim. Era estranho. Era uma situação estranha. A catatonia mútua que ela suscitava deixava ambos perplexos. Mudos. Um acordo tácito sobre o desacordo.
Quando o carro enfim parou diante do meu portão, eu não sabia o que falar. Estava esquisito. Uma tristeza. Uma derrota complacente pra vida.
- Bom...
- Bom...
- Vou descer.
- Tudo bem.
- Tem medo de olhar nos meus olhos? - Perguntei, levemente irritadiço. Ou magoado.
Ela olhava o horizonte com as duas mãos no volante. Virou a cabeça devagar e me encarou. Olhos opacos.
- É a milésima vez seguida que essa música toca - observou, ignorando minha pergunta. No som, Mazzy Star. A habitual e melancólica e melíflua amargura que brotava da voz da Hope Sandoval servindo de plano de fundo pro nosso desenlace.
Assenti. Ela, com seus olhos já longe da opacidade de segundos antes, continuou:
- Essa música somos nós. Somos o que criamos e destruímos.
- Ah, diabo.
- É, diabo. Parece ser obra dele esse negócio de amor. De paixão. Deus ignoraria esses sentimentos ignóbeis.
- Ignora. Desde que não sejam aqueles direcionados a Ele próprio. É por isso que a razão se confunde. A paixão é nômade. Foge ao corpo. O corpo é o invólucro do espírito santo.
- Paixão é heresia.
- Troca de música?
Troca. Green Day. Redundant.
Não havia dúvida de que forças divinas conspiravam. Restava-nos saber se para o bem ou para o mal.
Abri a porta. "Speechless".
Um "a gente se fala" fez menção de saltar boca afora. De ambas as bocas. Botei uma perna pra fora.
Na minha mente, eu recolocava a perna para dentro do carro e a convidava para um último drink em casa. "Vamos subir e confabular sobre os nossos disparates", eu diria.
Na minha mente eu a agarraria pelo pescoço e lascaria um beijo suplicante, longo, intenso, imenso; pediria desculpas pelo que eu não tinha culpa; prometeria tudo o que eu não poderia cumprir; daria mil beijos em seu pescoço; seria o piegas que deveria ter sido e nunca fui durante o tempo que havíamos estado juntos.
Meu pé tocou o chão. Meu outro pé fez o mesmo.
Fiquei de pé, prostrado, sob a chuva, vendo o carro se afastar.
Demoraria dois minutos para estar dentro de casa com o som ligado ouvindo a música que gostaria. No chuveiro, com o som alto pela casa, perturbando a paz dos gatos.
Preferi botar os fones no ouvido e ficar ali na chuva. Ouvindo "Start Without Me". O carro dela já desaparecido nalguma curva.
E a chuva caindo e levando consigo minha autoestima e decência pra sarjeta que lhes eram devidas...
23/06/2012