JOSÉ E OLIGÁRIO

José e Oligário descem a ladeira outrora da memória in concert dos tempos memorialísticos, épocas de caboclos em passos certos de suas casacas e mulheres sob sombrinhas. Inútil tapar mácula garotesca com o maior dos paralelepípedos desta ladeira. O vão desonra as pernas, mas o tempo é sempre abençoado e bom, incompatível com as desgovernanças pensamentais dos passeantes ladeira a riba e a baixo. Oligário, de fito largo alheio a tempo e enfiado nas entradas dos lugares dá o tom das idas, cabendo a José o seu acompanhar atrasado, ora por moleza natural das pernas, ora devido à falta de atitude em deitar decisões a bom colo, descondição esta que lhe confere a má alcunha Topeira ante a fatia de noventa por cento de seus detratores invisíveis, e ainda mais ora por absoluto descompasso entre si e o redor das coisas.

A amizade entre José e Oligário é de data sem dia, sendo que há no universo um bom número deste tipo, apesar de insuficiente, dado que os interesses pessoais puxam as sardinhas e nem sempre o tempo é de piracema e convergências. E como a folga do praxe de um casa com a do outro, no geral os dois lá vão numa desemparelha de três metros de atraso pelas ruas e vielas da cidade goma que os berça. E conversam muito uma conversa nada arrazoada em caminho a birutagem. No mais do centro das idéias os porquês da vida são o fundamento. Um entrado, outro retraído, ambos incomuns. É de se estranhar como naturezas assim distintas podem arranjar-se em perpétua amizade. O homem comum não chega a penetrar o fundo de quase nada em conclusivo e teima a verdade, mas o incomum penetra o raso de quase tudo, o que lhe dá o senso do fundo de sua limitação. Configura-se o semblante de um pensador em máscara de palhaço de ferro.

Ladeira, na descida em meio-dia do centro comercial operante da localidade retrógrada nos tabuleiros dos dizeres entre império e república e futurista no fazer avesso das pessoas, Oligário à frente e José a seu chamado recuado seguem pensando coisas sem pormenores, nada com o ofício de guarda-noite de José, nada com o ofício de guarda-nada de Oligário. É hábito do assim e sempre assim de os dois entrarem nos estabelecimentos commerce-publics e por cinco minutos examinarem tudo e toda gente, com o fito secreto agora por mim descoberto do estudo dos tempos e movimentos da novíssima ordem social do terceiro milênio terri-plano. E se enfiam porta pós porta, uma depois doutra em igual circunspecção.

Primeira Porta...

_____ De novo vêm vocês. Sempre a mesma cena. José e Oligário, o que os traz aqui ? Um entra no desplante de se deitar no meu chão e fica a espiar de baixo para cima enquanto o outro mal entra e colado à porta nos olha de cima para baixo. Não entendo vossas combinações, José e Oligário, já que nada dizem e em cinco minutos levam daqui nos semblantes o tom do amodorramento ajustado a escárnio. Talvez lhes saltem ira e revolução pelos olhares de fogo. Decerto desaprovam meu ambiente, mas isto nada importa. No meu salão de cabelo e unha as mulheres feias não alcançam a beleza, as belas não atingem a lindeza e as lindas não chegam ao clímax do perfeito no que tange ao ideal estético. Durante o dia firma-se cá o conceito do moderno marketing universal, pois em matéria de insatisfação as mulheres são tudo o que existe. Se enrola querem esticar, se alisa querem encrespar, e a cabeleira toma tal jeito de parafernália que é o diabo. Eu por ser do ramo não compreendo tanta peteca e tinta para ocasiões de noite e festa. Parte do público feminino é como um copo de iniqüidade largado sobre sepulcro caiado. Há muito de estranho em tudo, mas é assim que a coisa vai e funciona o mundo.

Segunda Porta...

_____ De novo vêm vocês. José e Oligário, o que vem a ser esta ronda ? Um entra, deita-se e resmunga algo consigo enquanto o outro pára à porta e cruza os braços. Em cinco minutos os dois absorvem a criteriedade do espaço. A minha benevolência no aceite deste jeito dos senhores já se faz digna de clamor em ato sacro. Todas vezes levam amodorramento e escárnio. Só não os mando prender, José e Oligário, porque o desacato é mudo e não falado, embora duplo. Isto aqui não é a casa da sogra da mãe da Joana e sim uma delegacia. Aqui a justiça é minha e delego sobre justos e injustos. O que é a lei ? Um quase nada. O que a jurisprudência manda a idiossincrasia rebate, inverte ou cancela. Ganha o numerário graúdo que acoberta os crimes e recheia os bolsos. A gente desforra e faz pesar uma necessidade de ordem e legalidade sobre os ombros de um ladrão de galinheiro. Agora mesmo meti lá dentro um rapado sem voz de fora para soltura. Roubou um de comer e talvez arrependido vire mestre em parábolas e decore salmos com exatidão. Discordo de parte do meu método. Também sou ator na vida e faço parte do processo. Há muito de estranho em tudo, mas é assim que a coisa vai e funciona o mundo.

Terceira Porta...

_____ De novo vêm vocês. José e Oligário, para que esta freqüência ? Nada falam. Um se deita e no rabo olhado apreende a movimentação dos vultos desta grande sala e o outro estaca no batente num cruza bolsos, imprimindo no olhar igual zanga ao que se estende na minha solada sem pedir licença. Em cinco minutos chispam com amodorramento somado a escárnio. Parece que meu ambiente não lhes cai bem. O que importa ? Imaginem um antiquário de peças vivas ou no fio da existência. Alojo velhas roupas coloridas em total desbotamento, envergadas por gente velha esquecida de seus. No mundo moderno há também uma corrente de destruição criativa de almas em final de carne. Os velhos não servem mais. Pessoas robustas e até de estica trazem para cá mãe, avô e pai, e seguem depois para suas casas de campo ou seus negócios. José e Oligário, vejam, olhem bem estes trinta leitos disformes do meu asilo. O odor de urina de um casa com a rouquidão pneumática de outro e tudo assim num combinado de doença e nostalgia caminha para o fim. Não adianta dizer trinta e três porque o médico não vem. Abaixo o pneumotórax. Com este processo social faço bom saldo no banco, os velhos “entendem” e os parentes sempre voltam para resgatar os obituários. Confesso que um terço do meu íntimo contraria minha própria administração. Há muito de estranho em tudo, mas é assim que a coisa vai e funciona o mundo.

Quarta Porta...

_____ De novo vêm vocês. José e Oligário, quais ventos agourados os fazem vir aqui? É a glória da assiduidade muda e contemplativa. Um deita-se sobre meu tapete carmim e num olho puro foca o embaixa-saia de duas das minhas moças enquanto o outro, esguinchado à porta, toca a medir o decoro do meu negócio. Em cinco minutos saem com amodorramento seguido de escárnio nas caras. O cenário não deve lhes figurar ideal. Tanto me faz. Trato mulheres que tratam homens, um velho tratado universal de humanossistema vindo da era mais remota. Tenham olhos de ver. Os lustres meia cor e os espelhos combinam otimamente com estas moças em fragrância de Espanha, distendidas aos cantos e ao centro do meu bordel. As idéias extravagantes destas mulheres remontam ao amor livre falanstérico. Nunca se vira tamanha harmonia na desassociação amor-

-corpo. É uma espécie de libertação subversiva no maior grau dissoluto, bastante convencional embora inconveniente à ordem moral. Olhem bem aquela morena deitada ao centro, de saia vip fitando o nada no tragar de seu batom com fumo.Aos vinte anos perdeu a conta dos homens passados por sobre e sob si, mas ao raiar do dia chora em cima da foto de um amor perdido no mesmo momento em que uma nossa vizinha de igual idade e “de família” deita sobre a cabeceira o porta-retrato do marido para melhor absorver o amante. Qual a conta da moral ? Vivamos a teoria dos relativos. Na esfera dos atenuantes, sentimento e instinto partilham o indivíduo em desigual por cento. Não por isso louvo de toda a libertinagem oficial que coordeno. Há muito de estranho em tudo, mas é assim que a coisa vai e funciona o mundo.

Quinta Porta...

_____ De novo vêm vocês. José e Oligário, acaso querem duas pastas ? Percebe-se que não, pois um deita-se logo aí num desrespeito completo e o outro, grudado à porta, faz que não pisca, e ao cabo de cinco minutos vão embora com amodorramento montado num escárnio assentado aos lábios. Talvez repudiem meus estatutos. O que é isto ? Os vossos olhos são bons porque sou mau ? Aqui faço executar a ordem e o desmando da cidade a meu gosto e conluio com a vereança. Se o filósofo do contrato social dizia que o homem nasce bom e a sociedade o corrompe, digo, como prefeito, que o político nasce mau e a sociedade o sanciona. Em tudo há exceção para mais ou para menos, mas o fato é que também há em moda uma forma oficial de inquérito para apuração dos mecanismos políticos corruptos. Neste curralzinho de vila sou ninharia e ninguém me pede depoimento. Não se zangam com cinco secretários invisíveis que criei e para os quais faço o bom favor de receber os salários em minha conta. Na sede do governo central a mágica é mais completa, virtual e tridimensional. Lá o circo é de lona grossa e há grandes mestres rotativos atuando no ciclo universal da invenção, articulação, intervenção e reinvenção política. Tomem o povo como grande macaco ajuizado e dêem-lhe todas as pipocas e todos os galhos tortos, pois é de pão e circo que sempre se susteve o mundo. Aos homens extraordinários tudo pode e aos comuns meia palavra abafa e cala. Bato-me duas noites por semana com minha consciência recondicionada pela politicagem. O que importa ? Há muito de estranho em tudo, mas é assim que a coisa vai e funciona o mundo.

Na subida do meio-dia e meia, José e Oligário seguem para a casa onde habitam em comunhão de irmandade. Outras portas mais existem, observações para novos dias na ladeira paralelepípeda da ordem social. Por sobre o muro da escola, vizinha ao asilo, algumas crianças já podem antever seu futuro clarividente. Atrás do bordel funciona a igreja matriz para onde as “moças” escapolem a rezar nas ausências do padre, da missa e dos fiéis de cartilha. E são justamente todos estes contrastes, desajustes e entrelaçamentos de instituições sociais que perturbam os espíritos de José e Oligário, lançando-os em reflexões muito pouco compreendidas.

_____ Caro Oligário, quando saímos atrás de essências de gente e lugares sempre trazemos algumas verdades ditas emboladas em nosso amodorramento ajustado a escárnio. Sabe de uma coisa, companheiro, as pessoas nos toleram por cinco minutos em seus locais de comércio por dois motivos. Primeiro porque a consciência de seus ofícios requer desabafos. E segundo porque ganhei da cidade o respeito, o temor e a patente de louco desde aquele dia que em praça cheia lhe botei o nome Oligário e o elevei à condição humana, juntando e jurando com seus quatro pés que de um cachorro se faz um grande homem. Shi, amigo, esqueci-me de tua ração. Sente-se cá à mesa e dividamos este bife a cavalo.

Eduardo Marçal Silva
Enviado por Eduardo Marçal Silva em 24/06/2012
Código do texto: T3742249
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