O EXÍLIO

Naquela minha primeira noite de exílio fez frio do brejo. Nada digo de data porque o que se deu comigo no processo de isolamento pode ser compreendido como atemporal e universalizante. Apenas registro cá que em dado momento da existência, período este de rumores de febre, fome e falácia, com o inimigo oculto nos acordando em pingos e feixes e rastros de sangue, meti-me por certo tempo em caráter de hóspede induzido num casarão de aspecto elitista burgo-barroquino, todavia possuindo nos contornos e linhas sutis esboços da arquitetura futurista de uma ascendente decrépita alta sociedade. Na verdade não me exilei por gosto tampouco por obrigação direta de terceiros. Que tenha lá sido espécie de fuga ou retiro consciencioso das funestas implicações do meu dia-a-dia, se assim ficar de claro expresso e exposto.

Quando enfurnado no aposento a mim concedido para o exercício exilístico, um dos dez médios quartos instalados do necessário, sentado num dos cantos tendo o saco de minhas roupas como recosto antes da parede, pensei que a coisa logo viria brava. E dentre as bravezas a que um homem na minha condição supostamente deveria suportar, logo se me afigurou e instalou-se na cachola a onça doida da solidão, a fera que me cheiraria em reverso e arreganharia suas presas num apetite tão medonho que em pouco tempo me remeteria ao inferno numa feroz mastigação. Era apenas a minha primeira noite de exílio e já neste primeiro tormento reflexivo nem dei conta do frio do brejo que lá fora mais fazia que dentro. Num ímpeto instintivo escancarei a janela verde amadeirada para nesga de liberdade. O vento zunia forte em ecoada contínua e capaz de fazer bom transeunte ou meliante fechar capote acima da orelha para não baratinar a idéia e dar azo a constipação. Mas lá embaixo na rua nem vulto ou semi-vulto de gente deste mundo.

Casado ao meu primeiro tormento da onça de presas arreganhadas estava o erro da minha crença em habitar de exclusivo o casarão. Eis o pecado da ansiedade humana. Faz-se mister que reformemos este ruim costume de antecipar os acontecimentos da perfeita ordem divina e pintar de modo muito mal borrado uma realidade negra que quiçá jamais virá. Se vier, Deus do céu, que seja com todos os atenuantes possíveis. Então, deste jeito, depois de curto sono enrolado em rala manta, no meio desta minha primeira noite de exílio percebi que não me encontrava só no casarão. Postado no parapeito da janela, feito sentinela do segundo quarto de hora, um pequeno gato marreta de cor preta examinava-me criterioso. Digo marreta porque as feições do felino eram de tal modo descompostas no geral que um meu amigo pernambucano mineiro diria: “ uai sô, que bicho feio da peste ! ”. Embora de aspecto noviço, os seus olhos seguiam pelo embaço estilo catarata. A orelha direita, tesa e alongada, possivelmente era capaz de captar sinais do planeta dos gatos enquanto a esquerda pendia capenga inerte esquecida de si. O pêlo preto, ralo e falho de anormal, dava a impressão de que o animal ganhara sova recente de um destes homens imbecis que existem vários de forma muita no mundo a maltratar os inocentes. Nada dilson. O bichinho saiu assim mesmo, em nascença aberrada no tento de viver sua natureza. Em compensação, o quadrilátero ferrífero das patas era de bom sustento, de modo que no andar não bambeava coxo carente de alinhamentos.

Senhores, nunca ao certo eu soube da proveniência e pertencência daquele esquisito gato da minha primeira noite de exílio me olhando embaçado e fundo daquele jeito porque lá fora fazia um frio do brejo e nenhum meliante, vulto, bom transeunte ou semi-vulto de gente deste mundo passou de capote levantado para depois parar embaixo da minha janela verde amadeirada de um dos dez quartos médios a mim concedido ao exercício exilístico para dizer: como está você ? o que lhe passa agora ? quem tu és e o que pensas da vida ? De maneira até paternal recolhi o negro gato sem objeções de sua parte, meti-lhe o nome Solidônio em concordância com a minha solidão, encerrei a janela e me fui deitar ao recosto do saco de minhas roupas, visto que Solidônio já ia a ronco no rodapé da cama. Deixemos o sono dos justos aos puros nesta minha primeira noite de exílio.

A manhã nascera manhosa e cântica para todos os que são livres. Um sol danado de esquentado irradiava santa energia às almas dos guris e velhos, dos bons e maus, dos pudicos e dissolutos e a toda sorte de mais extremos contrastes desta e daquelas vidas, deste e daqueles mundos, pois há muitas moradas habitadas na casa do Pai. E como o dia sucede a noite, esta era a minha primeira manhã de exílio. Nilson, de tão triste que eu estava, até a minha gramática do pensamento embaralhava, de forma nisso ser nilson, isso virar ilson e deixar disso dava no mesmo que largar dilson. Nilson, num ronroncar expectórico de abafado angustioso resolvi sair do quarto, daquele meu cômodo, para olhar mais de amiúde toda a instalação do casarão, dado que para ilston me era liberado, levando-se ainda em conta que na noite anterior cheguei já de tudo escuro.

Deus do céu, santos diabos angelinos! Notem que mal eu havia transpassado a solada dei de cara com um gordo meio velho enfiado em bom linho, bonachão rosado bigodudo de uma careca espetacular que reluzia como o primeiro mundo dos aeroportos de mosquitos. Era--me lícito cumprimentar outro além de mim no tempo de exílio? Ninguém disse que o exílio não era só meu. Haveria dono ou mandatário naquele lugar? Não, não me quedaria para fora do exercício e decidi não manter contato com outras pessoas por ali. Também sei lá que gordo era aquele que me olhou de soslaio e com a repulsa de um absoluto desdém. Ele atravessou extenso corredor e enfiou-se noutra parte. Mais um passo e avistei uma senhora de débil aparência instalada no último canto da sala gigantesca. O seu olhar míope inquisidor atravessou-me o espírito feito dardo e vexatoriamente constrangido venci o ambiente em meia volta a ver, quase que num rastejar impulsivo. De volta ao meu médio cômodo, com o pensamento nauseante por conta de inflexões mentais retro-recolhidas no mais dentro eu, daria milho aos pombos pelo resto de minha vida com o só fito de saber quem eram aqueles personagens da sala de visitas. Por que me queriam tão mal se não me conheciam? Ou será que eu era por eles conhecido? Como e de onde?

Quando acabara a manhã, a primeira manhã do meu exílio, uma tristeza sem precedência na minha história fez que veio de crescente. Sentia-me aprisionado de toda consciência e o desastre me era tal que ninguém entenderia. Neste ponto deu-se início a maior de minhas crises intimistas, e num relâmpago lúcido percebi que este meu exílio era um tratado universal firmado com a eternidade. De tempo em tempo, quando as santas sagradas epístolas escrituras e todas as leis e vozes dos evangelistas e profetas não encontram mais eco na cera de meus ouvidos de carne, num influxo involuntário remeto-me

em parcial espírito a algures para despesar o peso da vida. E foi nesta demorada percepção que a tarde já se tinha ido findada no breu.

Alguns procedimentos de ajeito no cômodo tomei por necessários naquela minha segunda noite de exílio. Procedimentos estes por conta de dois sentimentos naturais àquela minha condição de exilado: medo e segurança. É certo que o medo é uma grande cagada decorrente da nossa limitação e falta de fé, e a segurança em demasia nos fecha as portas às boas obras. O fato é que a solidão já me era dona e no fim das contas havia em mim um certo prazer nostálgico na isenção do mundo. Solidônio ainda não tinha aparecido naquela noite. Mas voltemos aos arranjos. Dentro do saco de minhas roupas havia mais do que minhas roupas, e nesse haver mais lembrei-me de que ainda não havia me alimentado desde a chegada. Saquei uns pacotes de comes salgados, pão, água e básico. O saco também continha ferramental e após o forro estomacal meti a cacetada na porta, logo lhe fazendo furo de atravesso, o passaporte para a minha visão da grande sala do casarão. Ninguém se incomodou com a barulhada, o que foi tanto melhor assim.

Amigos, se há males na vida que vêm para o bem, há bem na vida que vai para o fim. Eu, no afã insipiente da libertação visionária, julguei encontrar neste observatório contínuo da sala de visitas uma espécie de sonrisal para os olhos, uma co-participação nas vidas daquele careca que me olhou tão me aprofundando no nada, daquela velha que me mediu com a fita do diabo e de quem mais se me afigurasse em franco movimento. Enfim, seria a glória do imperceptível envolvimento, uma meia fuga sutil desta solidão que já roçava a dentição nos meus calcanhares nus. Coloquei-me continuamente no negócio de pregar o olho na porta feito biruta e, convenhamos, os ilustres adoidados da Casa Verde de Machado de Assis provavelmente não tomariam diversa atitude.

Deus, a alucinação...na sala vejo três carecas idênticos e três velhas iguais de par em par numa dança Oxalá, xaxado arretado ao som de quatro cancioneiros de cantigas de escárnio e maldizer (dos tempos de outrora bocageanos). Troco o olho e um próprio morto se levanta de seu ataúde a pedir as clássicas de Mozart para amaneirarem a sua alma prestes a volitar em ascendência aos céus. Eu tomado em todo perplexo alienante. Como pude fugir à vida neste exílio e o senso do natural me fugir às vistas cansadas? Que embaralhada era aquela que me assaltava o juízo? Por quais torrentes de desassossegos hei de me encharcar até o reencontro de mim para comigo? E que diabos de túnicas azuis são estes numa ciranda frenética no centro da sala a promoverem a desentabulação das tábuas da lei pregadas no planeta com o fito de desdizerem os santos mandamentos? Teatros de vampiros, beatitudes e horrores em formidável mescla, donde a razão e os sentidos não mais influem nem absorvem. O coração pede retorno, mas a realidade alucinógena cola-me a face outra vez. Troco o olho e do outro lado as capas dos doutores da lei tocam sozinhas a retórica de um palavreado dogmático convulsivo enquanto seus donos passam por pacientes noutra esfera moralística.

As alucinações causaram-me certo frêmito cerebral. Enquanto a massa fervia recolhi-me em medo doido e frio aberto sob a cama, vão intento auto-protecionista. De forma absolutamente incompreensível percebi que todos os olhos da sala de visitas fundiram-se num só e as capas, os diabos azuis, as velhas, o morto, os cancioneiros, os carecas e até Mozart, todos num único e terrível olho em mim cravado através do furo daquela porta desnudavam-me mortalmente a individualidade. Encolhido debaixo da cama nem ao menos eu

sentia minhas vestes. Corpo e alma nus perderam definitivamente a consciência, a liberdade e o sentido geral. Já era noite quase dia e, na janela, Solidônio apareceu a modo de demonstrar toda a sua compaixão. Os seus olhos pareciam em embaço ainda maior, talvez por conta das lágrimas que vertiam. O gato chorou meu desespero e dormiu no rodapé. Também ele perdera o fuso-horário.

A segunda manhã do meu exílio nasceu morta. O tempo fechado de pré-chuva casava com tudo. E morto estava eu para a continuidade do exercício exilístico. O que mais me consumia não era o emplacamento da solidão tampouco as imprecações dos espectros da sala de visitas. Sob a cama, em corpo colado, retorcido e agonizante no chão cru, indaguei de mim se ainda vivia e se viver era justo e por qual medida de justeza se fazia a mensuração. Nesse ínterim, mediante um turbilhão de ruminações desconexas, um acontecido insólito veio por arrematar a ordem dos meus males plus-internos. Ainda debaixo da cama, a minha visão avistou Solidônio janela afora ao mesmo tempo em que uma barata lusca-fusca adentrava o recinto, empavonada numa franca avoação. O inseto não fez conta de sua própria repugnância encetando vôo, sobrevôo e piruetagem intranqüila. Talvez esta barata levasse gravada em seu dorso a letra K, o que dignificaria em santo ofício toda manobra acrobática. Salvo este caso, como pode um inseto nojento ter a pachorra de voar? E preso neste pensamento percebi que no canto oposto do médio quarto outro bicho de avoada rápida clareava no alto. A luminosidade do inseto bonito fez o inseto feio aterrissar em sua mais recôndita vergonha. Então fiquei por certo tempo a penetrar os domínios das personalidades inseticidas. Quando o vaga-lume foi embora a barata já não dava passo e suas asas fecharam-se para quase todo o sempre. Por notar a presença deste monstro maior cá sob a cama e pensar que eu também rastejava, a barata rumou em minha direção.

Uma semana passara-se sem novidades. Acostumei-me ao exercício exilístico. Na maior parte do tempo permaneci embaixo da cama, entre o céu e a terra e os mistérios de todas as filosofias. Solidônio vinha à noite, mas a barata entrou numa combinação ininterrupta comigo. Os meus suprimentos estavam no último. Também deixo registrado que uma latrina fora improvisada no outro canto do cômodo (como tem cantos este quarto...). De mais a mais, a solidão me mastigava com cautela, sem aquele voraz apetite antes imaginado. Eu não mais coloquei os olhos na sala de visitas e aquela turma toda desgovernada de minha idéia havia me deixado em paz.

Do episódio “A barata e o Vaga-lume” tracei um paralelo com o suposto meu habitat original, que me vinha à mente em tênues e vagas lembranças. E foi nesta tocada mental que chamei a barata a um particular: “Escute aqui nega, tu pensas que é bonito ser feia? Você é apenas uma barata, não um condor. Cumpra teu caminho ao solo para adiar a morte.” A bicha rodopiou e por entre o vão da porta lá se foi para a sala de visitas. Por não ter voltado creio que me teve em má conta por causa da sinceridade. Mas que o vaga-lume, onde quer que lampeje, não se imagine a companhia de força e luz, pois errou em ofuscar a parente. Um dia também ele deixará de brilhar.

No décimo dia do meu exílio a fome me batia mais do que a solidão e o cheiro fétido da latrina incomodava um bom bocado. Eu estava muito cansado, porém houve considerável subtração no fardo dos meus desassossegos durante aquele período. Era o fim do exercício que se avizinhava e, embora eu não tenha alcançado plena compreensão de mim mesmo, este alheamento trouxe-me a evidência da necessidade de que todos nós temos de aprender a conviver com o paradoxo paz e tormento. Deve-se encontrar uma mediania aceitável na formatação do espírito para as práticas da vida.

Naquela minha última noite de exílio fazia frio do brejo. Lá embaixo nenhum meliante ou bom transeunte de capote levantado. Em dado momento um som melodioso passou a adentrar a janela verde amadeirada. Prontamente saí de debaixo da cama e colei-me ao parapeito. Era o meu amigo Solidônio, na rua em extraordinário miado transcendental, uma espécie de chamamento divino ao recomeço, pois sem duvidamente eu jamais seria o mesmo após o exercício exilístico. Então, lancei o saco de minhas roupas pela janela e me atirei atrás. O meu corpo desceu rápido, rompeu o calçamento, passou por muitas camadas de terras e pedras, atingiu lençóis aquáticos, saiu de órbita, rolou no vácuo e acordou no quarto de alguma casa n’alguma cidade. Eu sou um cidadão comum, não barata nem vaga-lume, com asas e luz para voar em boa medida e não ofuscar ninguém.

Eduardo Marçal Silva
Enviado por Eduardo Marçal Silva em 24/06/2012
Código do texto: T3742245
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