TINHÃO CANHÃO
Tinhão Canhão era mesmo bruto de botar medo. Isso vai tempo. Quem, dentre os mais ousados, seria estúrdio o bastante para cismar em levar folga com ele diante de olho de povo? Ninguém. Ver-se-ia com quantos paus se faz uma paulada bem completa no cocuruto da cabeça de um cidadão. Tinhão não vinha de Sebastião, que de nome era João. Tinhão vinha de tinhoso, de tinhudo. Canhão era devido a permanência museológica de um tal canhão de aço e osso plantado no meio do terreiro do Tinhão Canhão. Conta-se, verossímil, que tal armamento lhe foi cedido pelo exército como prêmio por ocasião de uma disparada triunfal manejada por ele enquanto sargento numa batalha de Canudos. Na história nada consta, mas nesta estória afirmo que Tinhão Canhão fora enviado a Canudos a modo de frear o Conselheiro e seus prosélitos. Contudo, a exemplo dos dragões que se bandearam para os lados dos Canjicas, Tinhão Canhão lançou um bolotão que dispersou nonas partes dos quadros militares, o que viria a enfraquecer por momentos a intifada aos míseros. Quando percebeu que morrer peneirado e sem bóia para nadar em rio de sangue não era bom negócio voltou para o seu agreste mineiro, uma porção de terra numa cidadezinha sem nome na divisa com a Bahia e sem figuração em mapa algum. Adiante recebeu em casa o tal canhão, símbolo do seu arrojo, audácia e despeito, e do caráter incontestavelmente descarado e duplo do exército brasileiro. Isto há cem, cento e poucos anos atrás.
Embora a alcunha lhe caísse extraordinariamente bem e fosse sujeito com grande corpo de idéias, antes “ estrapafalhosas” e inconseqüentes que propriamente más, Tinhão Canhão, franzináceo, era casado com uma mulher macha para chuchu que ordenava nele e na casa. E dizem que Tinhão encerava um chão que era um gosto e um lustro só. Os senhores vão vendo a multifacetagem humana, obra dos tempos, das atuações e dos lugares. Dona de condição remediada e daquele sitiozinho, Leonor casou-se com Tinhão por amor à farda, prospecção de gemadas e estrelas. Mas nosso ilustre militar reformou-se sem sequer uma estrelinha vazada. Bem, naquele tempo a perfídia feminina era menor. Sem filhos, viviam alternando rabos sem motivos para arrancas e paz sem faz. Viveriam bem e tão somente de pensão, ovos, caldos e verdes não fossem as proezas do Tinhão...
Numa manhã normal, tomando café no alpendre e de olho mais afundado no canhão, certas eram as mil cogitações mentais de Tinhão, pois quem pensa que homem do campo não reflete devido a boa da vida que leva, engana-se: matuta. E quando um caboclo pega a matutar assim de modo viciado, de chapéu ou sem chapéu, com palha ou sem palha, cachaçado ou são, vem coisa, sempre vem coisa.
___ Leonor, tomei uma decisão e estou bem decidido dela! Sabe, mulher, na vida a gente tem de decidir firme umas duas ou três vezes. Pelo menos uma. Falo dessas decisões de mudar mesmo o nosso rumo. Senão, se a gente acoxambrar, a vaca atola e nóis vai junto. Aí nem reza brava ou boa pra gente se arribar de novo. É, Leonor, minha segunda grande decisão...
___ Endoideceu, Tinhão?
____ Nós dois, com noventa anos igualmente repartidos, temos vivido para comer. É hora de dar um balangandam na vida e sair desta apatia rítmica. Você, Leonor, que é mulher que criou opinião própria, vê se arruma logo os trem e vem comigo. É para o nosso bem. Eu andei ouvindo no rádio que hoje em dia é moda e dá moral ir entrando assim com tudo num monte de terras que a gente nem não sabe de quem é. Se for de algum abotoado manda-chuva tanto melhor. Vale a zombada, a posse súbita, um agito, um barulhão danado. Já vi muita arruaça desse tipo e tem um bando deles que vai passar por aqui entre hoje e amanhã. Dizem que o movimento é pela reforma agrária, pedem terras, assentam gente em terras, levantam bandeiras e acampamentos. Coisa moderna. Há discursos, base alfa, base gama. Precisa de ver. E nem é preciso muita carga na cangalha para seguir com eles. A fuzilada é de primeira ordem. Pois vou embora com esta turma que se achega. Vou e vou mesmo! Vem comigo, Leonor! Vai ser uma pororoca dos diachos!
___ Tu é besta, Tinhão? Já não chega Canudos? Olhe, não quero discutir. O que eu tenho de opinião você tem em dobro de cismas. Cabeção encasquetado assim está para existir outro. Vá! Vá! Ponho luto desde já e me enviúvo de antemão. Ara, homi! Tu inventas tuas modas e eu ainda tenho de agüentar as caçoadas. Deixe estar...
Leonor entrou numa enorme zanga casa adentro falando alto quantos nomes feios e desarvorecendo toda a genealogia de Tinhão Canhão. Nisso, assoma lá na porteira o amigo infanciado dele, Nestor Trancoso, agora topeira de homem e bate-paus. Aliás, em matéria de bate-paus há muito não havia na região um melhor deles. Nestor Trancoso agia a mando e contra-mando pela maior das ofertas dos senhores, dos grandes senhores daqueles matos. Executava serviços vários, de cata às cabeças por assuntos políticos e honra a furtos de carroças e pequenos bichos. Bem sabido que era sujeito imoral e, despeitado, excedia com mais rigor na função não se limitando a capanguear. Ultrajado por não servir a um só senhor e sim ao que mais lhe enquadrava na ocasião e situação, defendia-se, alegando que uma vez dentro da porcaria melhor é lambuzar-se do mais mal-feito. Assim, quanto mais se suja, mais certeira e completa é a purificação posterior. São idéias. E o gordo do homem lá vinha em direção a Tinhão montado no seu burrico, que de tão surrado estava perrengue de tudo.
____ Licença nossa, meu compadre! Venho saber se aquela tua palavra é firme mesmo. Os homens estão chegando. Mulheres e crianças, todo mundo junto. É povo unido, por volta de sessenta cabeças. Contam com uma parafernália aguda de coisas, meios e idéias, principalmente idéias. Coisa linda, coisa linda. Nem falo mais, que ocê vem vindo ouvindo isto no rádio há um bocado de espaço. Então, a gente vai se embora com o bando? A comadre também vai? Para maior força vou pedir para o Gervásio e o Costinha irem junto mais a gente. Os dois andam desacoçoados da vida sem ter que fazer. Mas de trabalho são os da última das horas, ávidos por uma zirimbiboca de fuzuê. Nem carece motivo. É pô-los na roda para o pripocó crescer de fôlego e ganhar causa.
____ Quando chega o bando, compadre Nestor?
____ Amanhã cedinho. Sem falta. Agora já vêm em marcha lá pelo bambuzal do Osório. Na passada bem contada estarão por estas cercas as seis da manhã de amanhã, que é domingo.
____ Se eu lhe pedir dois favores, o meu compadre sustenta?
____ Três iria pelo abuso, um é obrigação de cristão e dois pela nossa irmandade. Solta o verbo, irmão!
____ Pegue a minha égua Clara e vá de encontro à turma. Diga que é para eles estacarem aqui no terreiro bem compostos ao lado do canhão. Eu gosto de festejos e pretendo cerimoniar a nossa adesão. Seguiremos depois. Aliás, como imortal combatente militar que sou, será de grande honraria para este bando me ter entre suas fileiras. E tu, que nunca foi nada mas é porreta será grande também. Outra coisa, fale da minha parte ao Gervásio e ao Costinha que é para eles irem pro inferno. Cambada de dois sem-vergonhas! Nada entendem de terras e apropriações indébitas. A gente arruaça de modo pensado, por justeza mesmo. Eles não. Não são trabalhadores nem da última nem de hora nenhuma. Enquanto o compadre vai, vou eu pedir pro padre Bento benzer o bando aqui mesmo, que é pra gente ir embora mais completado de poder. Certinho assim?
Sem palavras, com acenos de cabeça e polegar e prestação de continência, Nestor Trancoso acata, assume a bronca, monta n’égua e sai a galope. Tinhão Canhão sorri e entra de soslaio pela sala.
____ Como é, Leonor, meu benzinho de coco, ocê vai ou não vai? Partiremos amanhã. Vê direito amor, ganhar terras, boiadas, dar entrevistas, falar no rádio amor! Fora a zorra, novenas, cavalhadas! Eu caudilho itinerante amor! Imagine eu caudilho amor! Tiroteios, bang-
-bang à italiana! Que aventura amor! Vamos vai! Vem pra festa da nossa glória!
____ Tu tem formiga na idéia, homi? Te falta alguma coisa? Não vive, come, bebe? E a pescadinha? A cachacinha? A caçadinha? O carteado que ocê joga com o Zé Mongol todo sábado não tá bom? E eu? Não encho o teu tempo não, Tinhão? Está bem. Se quiser pode ir. Eu não tomo parte nessa doideira.
É, gente, Leonor era de pulso firme, mas mulher de convenção. Trazia em si uma certa nebulosidade mental que lhe conferia um caráter duvidoso, talvez múltiplo. Se era destituída do impulso de conquista, não por isso deixava de ser egoísta em seu limitado campo de ação. Ela gostava do Tinhão utilitário. Jamais mexeria um pauzinho de sacrifício por sua causa. Enfim, não iria e não foi mesmo.
Na raiada do domingo, tudo ajeitado e pela ordem, chovia. Não aquela triste chuvinha de resignação, mas uma ralíssima, mansa e contínua chuva de prelúdio. Sim, havia algo para acontecer de sério e a natureza vinha cooperar na anunciação. Às seis horas da manhã o cenário era precisamente este: Costinha e Gervásio dados aos diabos; Leonor em beiço estático e ranger de dentes, estatelada impassível no sofá da sala; Nestor Trancoso perfilando os sessenta sem-terras, que de tão ordenados no terreiro só lhes faltavam os implementos brancos para se compor uma companhia em forma para cerimonial militar; Tinhão Canhão com a ordem do dia em púlpito improvisado no alpendre, tendo a seu lado o velho padre Bento vestindo uma rota batina de ralo.
Antes de qualquer pronunciamento, vejamos no que consistia o bando dos sem-terras: seis cachorros em fim de carreira, sete crianças mofinas e três robustas, dez casais oficiais, cinco casais de ocasião, dez homens largados, cinco mulheres à-toa e cinco velhas meio bruxas curandeiras. Dentre estas sessenta e seis cabeças de gente, um dos homens largados ia na testa, o Zé-arroela chamado “Jairsu”. Há mais de ano liderava o grupo num sistema completamente isento de métodos e técnicas adequados aos objetivos visados. Até na competência política a anta era falha, pois eram constantes os conflitos diversos entre os membros do movimento pela reforma. Este quadro típico da desordem de um levante aparentemente levado nas coxas poderia mudar a idéia de Tinhão Canhão. Base alfa, base gama, discursos modernos. Entretanto, se o sistema pecava pela ineficiência, surpreendia pela eficácia das ações, e este bando zureta já havia assentado muita gente em terras alheias e feito um bom barulho na imprensa. Cá para nós, esse povo é da minhoca mesmo hein? Quase todos deixam seus remansos em troca de aventuras desbaratadas, arriscando-se e riscando suas navalhas em porteiras privadas. Assim como o nosso Tinhão, a maioria possui seus grãos de chão donde podem extrair a vida. Pois, então, aquele que não cultiva o campo que o trabalho de seu pai lhe ganhou e o qual ele herda, vê esse campo se cobrir de ervas parasitas. Não, senhores, o homem não deve acusar o Estado por sua falta de produção, conseqüência natural do desleixo e da má-vontade geral.
____ Ôh povão animado e destemido!!! Alguém aqui já ouviu falar de Tinhão Canhão??? (Era o nosso Tinhão penetrando a massa e rompendo a expectativa).
A turma era só algazarra, braços estendidos, assovios, a cãozada latindo, chapéus voando por riba das carecas, um farfalhar de saias, serpentinas e tiros de festim. Efetivamente, Tinhão nunca imaginara tamanho conhecimento e tamanha aceitação de sua pessoa por parte da irmandade buscapé dos campos gerais sem cercas nem cancelas. Encurtando a coisa, Tinhão falou pouco, mas disse tudo da vontade de
seguir com o bando, enumerando todas as vantagens daquele sistema de vida e, até porque não dizer, santificando a conquista de terras por vias escusas. Via-se em Tinhão um líder nato que além de militar era capiau e comunista (que mistura mais excelente!). E firmou-se ali mesmo um plebiscito instantâneo para a designação do novo mandato de liderança (a se perder de vista), proposto pelo então líder em fragmentação Jairsu. Sujeito esperto esse. Quando viu que o trem da sua história achou de descarrilar na entrada da nova estação, deu-lhe pressa em sair pela tangente e assegurar o fio da sua moral.
Tinhão Canhão foi eleito unanimemente e a sua popularidade já ia saindo da órbita terrestre. O padre Bento, cuja figura fora reduzida à mera expectação, não fez mais que pôr amém naquilo tudo e ir embora. Àquela hora, quase meio-dia, após os vais e vens alvoroçais, a chuva tinha amainado e amainou tanto que deu lugar a um sol esplendoroso que iluminava o terreiro do Tinhão Canhão, que era só prosa, cachaça, anedotas, causos, sarrilhos, comedeiras e trocas de distinções honoríficas. Assim foi até o crepúsculo. Afora o que não interessa (isso compreende Leonor que não saiu para sequer uma espiadela) ficou estabelecido, ao comando de Tinhão, que a tropa (sim, agora o contingente possuía uma feição militar) faria bivaque ali mesmo logo após a ceia e a parada do pernoite às vinte e uma horas como versa o famoso RISG. Não faltaram voluntários para o revezamento do plantão. Nesta escalada, vai Nestor Trancoso como comandante da guarda e Tinhão Canhão oficial-de-dia. Êita nóis...
Na segunda cedo a média turba bem composta rumou para os lados da “Guardinha” amassando os barros remanescentes de outras torrentes de águas que caíram faz pouco na região. Sob ordem direta de Tinhão, o objetivo era invadir uma fazenda, uma mega-fazenda de propriedade política e donos valorosos distando uns trinta quilômetros dali. A idéia central era de se montar campana nas proximidades por sete, quinze, vinte, trinta ou o número mais conforme de dias até a ocasião propícia a triunfal entrada.
Depois, que viessem autoridades, blocos de notas, polícia, repórteres e microfones.
____ Com o circo armado e o discurso na algibeira, vamos pedir terras minha gente!!!
O povo cismou do risco porque o latifúndio era de gente séria mesmo. Porém, nada mais sério havia do que o sistema de Tinhão Canhão. Muito cheio de ideologia, o homem logo implantou com a turma uma tal força-tarefa, secundada pelos princípios gerais da “Infantaria Socialista Rural”, a ofensiva militar criada imediatamente à sua posse, cujo fundamento resumia-se na quadrilha abaixo:
“A terra vem do chão
O chão e o ar vêm de Deus
Se somos todos irmãos
Ôpa! A terra é toda nossa!”
Os homens da bagunça agrária foram caminhando a marche-
-lente entoando a quadrilha mãe e muitas outras quadrilhas e jargões cômico-militar-revolucionários pelos trinta quilômetros que separavam o terreiro de Tinhão e a região da Guardinha, da fazenda Guardinha. Isso num espaço de cinco dias com tempo sobrando para discursos, carnavais, estratégias, consolidação do plano de invasão e, sobretudo, muita farofada. Tinhão Canhão, perspicaz como só ele, achou por bem montar campana a duzentos metros da entrada principal da fazenda e dali estabeleceu laboratório de olho e ouvido. Era a sondagem oficial dos movimentos de entra e sai da propriedade, uma mega estupenda fazenda de tantos mil alqueires e de posse exclusiva do poder público. O grande problema para se acercar do momento mais azado de invadir residia no fato de que, sendo de trocentos donos políticos, não se sabia hora e motivo de aviãozinho descer ou subir, carros com madames luxuriosas passarem, trem de ferro resolver aportar, uma mula oficial com um legislativíssimo na lomba empacar ou, generalizando, se a casa grande sem senzala estava, está ou estaria para festejos, ordens de despachos gerais, projetos secretos de execuções suprapartidárias ou refinamento branco.
Todas as suposições acima demonstraram logo a total nulidade da campana promovida e ao cabo de seis dias sem grandes coisas observadas, exceto a movimentação de meia dúzia de colonos (que na hora do pau quebrar não valeriam para nada) e um jatinho que decolou provavelmente para nunca mais, tudo na Guardinha respirava marasmo. Era o momento da primeira grande invasão e conquista de terras do ex-movimento dos sem-terras, agora denominado Infantaria Socialista Rural, sob a liderança de Tinhão Canhão.
Vai que agora é quinta-feira da outra semana e faz sol de rachar mamona bem no meio do dia. Um bloco coeso de quinze homens mais Tinhão em formação CDC (controle de distúrbio civil) fracamente armados (seis fuzis e o resto porrete) rompe o lacre da porteira principal da fazenda Guardinha, tendo na meia retaguarda outros dez infantes (só na baioneta) em formação similar, e na retaguarda das retaguardas vêm as crianças mofinas carregadas por mulheres à-toa, as robustas arrastando algum trambolho, as outras mulheres trazendo uma porção de coisas e as velhas resmungando lá umas rezas avulsas, uma delas bem na conta do terço. A cachorrada vindo com a fidelidade de sempre, meio de qualquer jeito e sem atinar direito com a importância do caso.
Devemos observar que além de sem-terras, a turma era sem montaria, mas isso a propósito de se evitar que um asno mais desavisado viesse a relinchar num momento inoportuno, alarmando a rapaziada dona do lugar e denunciando os invasores. E por tocar nesse negócio de asno, vamos encontrar Tinhão Canhão tal qual o de Buridan a poucos metros depois da entrada. É que havia uma resolução a tomar, determinante sobre a escolha de uma das duas veredas que talvez os levariam para o pátio central e a casa grande da fazenda. Aqui vale aquela conversa de Tinhão com Leonor, aquela coisa de ter de decidir firme na vida. Sem meios de comunicação à distância, descartada foi a hipótese de separar o grupo em meia banda para cá e meia banda para lá. A grande verdade é que ninguém
possuía clara idéia de onde iam dar aqueles caminhos, qual era a extensão daquilo, que tipo de terreno e o quê e quem encontrariam pela frente, por cima e pelos lados (até ali barrancos íngremes sem escalonamentos). No mais, chão batido, pó, suores nas faces e incertezas.
____ Companheiros! Peguemos a esquerda! Somos da esquerda! Soi ombre, mas a minha intuição não moleja. Avante!!! – A decisão de Tinhão Canhão.
Cinqüenta metros percorridos sem sombras de olheiros nem visão de casa. A limpeza da área e o sossego eram tão gerais que a turma se deu ao luxo de estacar para uma rodada de merenda e comemoração dos sucessos da investida até então. Vinte minutos disso e após cem metros na retidão uma curva bem tombada à esquerda dando para uma reteza de via alargada em rasteira gramínea florificada de flores de todas as flores do mundo por ambos os flancos. Seria aquele cenário uma colônia espiritual de relativo avanço não fosse o povo do Tinhão avizinhar em felicíssima perspectiva um ponto lá longe, o magnífico casarão da Guardinha, idêntico ao da foto que um dos integrantes levava consigo. E numa sorvição medonha de ar de posse, em inefável contentamento, o pelotão de Tinhão Canhão não quis saber de mais nada. Nenhuma resistência. Nada. Nenhum brucutu pau-mandado com goma no topete viera da parte de alguém saber que zorra era aquela. A cantarola “A terra vem do chão, o chão e o ar vêm de Deus...” retumbava em ecoada consoante com as leis e vozes dos pássaros que guirilavam por ali aos montes.
Assim foi que, passado mais um tanto muito bom de caminho, numa pendência mais amena à esquerda, depois de riacho e mata-burro, houve uma parada de tropa. Mas uma senhora parada de anágua da tropa (senhores, um estancamento súbito da tropa mesmo, não tem nada com a anágua de alguma velha da patota), de pasmo, gelo e branquidão de terror. Aquela expressão implícita no semblante de todos de “ai todos os santos do universo que Deus nos acuda!”.
A tropa não podia mesmo acabar de crer que uma massa bem cinzenta de uns cinqüenta heterogêneos e bem nutridos índios avançava em direção a ela num espaço de um hectômetro. Não havia nos anais rurais menção da existência de tão esquisita tribo por aquelas bandas. Era um mix de ancestralismo e prelúdio do terceiro milênio, índios beiçolas arco-flecha nus em tinta misturados a mais alta elite diplomática silvícola, dotada de um aparelhamento tão estranho, resumido a uma espécie de coisa de se pôr na zoreba e falar depois, e também um trenzinho assim baixo, quadrado, de abrir, dedilhar e ver imagem. Sei lá qual a disposição dos indígenas para com o bando do Tinhão. Seriam eles invasores mais antigos ou estavam de passagem? Fariam pacto com a política? Ou seriam eles os verdadeiros donos daquele império? E de onde vinham? Dali por perto? Do setentrião ou do meio-dia?
Num achego para exame, fuça com fuça na medição das forças, ficaram bem assim os dois grupos sem ousar palavra a cinco metros de separo, um esperando a inclinação do outro para início de atitude. Nisso, Tinhão Canhão, protagonista que era, rumou de queixo com o caboclo índio maluco beiçola engravatado por julgar ser este o chefe deles. Acertou na cheia porque Mister Tupi Ali Joseph comandava efetivamente as facções do velho e do novo sistema indígena internacional. Era mesmo o princípio da fusão do mundo.
____ Senhor índio e comunidade da Índia, mil respeitos! Somos de paz, não esquente antes da hora, que nóis é jeca mais é jóia. Sendo ou não sendo vocês os donos disto aqui, lhe agaranto que a nossa idéia é ficar um tempo bem bom. Se o amigo for de prosa explico o projeto todo, adentro na política, no social e no religioso. É no mínimo conversa para umas quatro horas. Mas se quiser bronquear nem te dou tempo de preparo porque vai voar índio por esta estrada agora mesmo!
____ Índio chegou primeiro! Índio dono de terra! Índio globalizado não briga, senta à mesa e dialoga com cúpula branca! Antes do padre e do Cabral, índio já fazia carnaval! ...
Mister Tupi Ali Joseph continuou com isso e mais aquilo outro, entrosando alguns dados relevantes e coerentes da antropologia indígena e curiosidades místicas da recenteza da raça. E como era bom de gogó o índio, decerto dava para a política e dentre os políticos o demagogo-dogmático. Tinhão Canhão nada queria saber dessas coisas de índio, a que tudo ouviu feito um surdo-mudão. Na sua cabeça mineira havia só a consciência de que o palavratório do homem indiciava uma não arreliação com a presença da turma da Infantaria Socialista Rural, que já projetava melhores chances de sucessos. Por fim, o índio esperto disse que há um mês comprara aquelas terras cuja pertencência real ficara anos sob as barbas de um ex-general de brigada, muito velho, casulo e sem parte alguma com a imprensa. E a tribo de Tupi Ali Joseph ergueria na fazenda Guardinha um tal laboratório social destinado aos estudos e mudanças nas ordens das coisas da vida...
O nosso Tinhão Canhão tinha uma idéia atabalhoada, porém unilateral, e não conseguiu enquadramento para a compreensão da pluri-excentricidade daquele beiçola finess. Note-se que a banda branca e a banda índia passaram a caminhar de permeada num zorozozó total em direção a casa grande. Nestor Trancoso (como esquecer Nestor Trancoso) ia de bate-boca sadia com um bate-pau índio, conversa de bate-paus, enquanto Tinhão Canhão e Tupi Ali Joseph, já meio acompadrados em bambeada e escoramento de ombros, em virtude do sol que estava mais sol e da cachaçada pró-amiga hospitaleira iniciada, iam deixando implícito pelo caminho uma certa afinidade entre eles.
A grande verdade é que Mister Tupi Ali Joseph não era dono da Guardinha coisa nenhuma. O que ele fez foi de uma ultra-
-modernidade jamais prevista em qualquer aldeia deste mundo. Seis meses antes, um projeto meticuloso o fez descobrir os donos da fazenda, de fato todos políticos, precisamente oito. Contratou um
aeromoço metido a piloto que com seu aviãozinho levou os parlamentares, já devidamente seqüestrados, para uma clareira da floresta amazônica sem sombra de mapeamento. Ali havia um moderníssimo laboratório semelhante àquele que seria construído na Guardinha, mas com o propósito único de ensinar político a fazer política. Coitado do aviãozinho, tantas viagens...
Nesse interim, vamos derradeirando esta narrativa em leve arremate de males. Fica-se sabendo que a turma política seqüestrada fora obrigada pelos índios a alternar o estudo com o cultivo da chamada abóbora da mata, uma especiaria desconhecida pelos brancos e de aplicações múltiplas, sendo dela extraídos o tradicional prato boi com abóbora, uma pasta vesicatória para o trato muscular e o caldo Abóbora Tônica, um excelente elixir rejuvenescedor, dentre outros aproveitamentos aqui dispensáveis. Mas, ao tempo dos sucessos da tribo da Guardinha, a matriz deu mole na selva e a politicalha executou fuga fantástica no breu da noite. E lá vinha vindo de volta o aviãozinho com seus políticos trazendo lotação completa. Era um abarrotamento de abóboras dentro da nave que o bicho mal conseguia altura. Contudo, a transfusão daquela cultura era necessária ao progresso do país.
Foi então, por força do destino, um estrondoso rumor rasante no céu fez parar infantes e índios a cinqüenta metros da casa grande. A idéia que ia na cabeça dos homens do aviãozinho quando viram a fazenda tomada por aquele coloramento de raças não permitiu meio tempo nem meio termo. O espetáculo foi circense. Mister Tupi Ali Joseph, que não imaginara nada, pois seu aparelhamento remetia um tudo pela ordem, ficou sabendo tudo pelo bombardeio das abóboras. Abobronas e abobrinhas desciam cruzadas numa velocidade tão tamanha que o menor impacto poderia ser fatal. Uma rajada colossal, uma chuva meteórica de abóboras, uma coisa doida que só contando mesmo. Quem pôde cavou trincheira no susto e se escafedeu. Outros não tiveram a mesma sorte.
Terminada aquela tragi-cômica incursão, os homens do aviãozinho enquadraram bem de perto a tragédia lá embaixo e num consenso pleno decidiram vôo contínuo para a garantia da imunidade parlamentar. Danem-se a fazenda e o plenário. O aviãozinho perdeu-se para sempre na linha do horizonte.
Dos feridos, praticamente todos. Alguns apenas na pele e a maioria na moral. Já dentro da casa grande, em posse efetiva e co-
-habitada por índios e brancos, as mulheres faziam curativos, as crianças choravam de espanto, os homens procuravam pelo mato talas para arranjo de torniquetes, as velhas enchiam bacias d’água e vinham com toalhas quentes. É escusado dizer que a própria munição descarregada fora depois utilizada nas terapias. Das baixas, três índios e três brancos, dentre os quais viemos encontrar Tinhão Canhão. Uma abóbora delgada bateu-lhe ao peito acabando imediatamente
com toda a sua reserva de ar. Perda muito sentida pela Infantaria Socialista Rural que, através de um processo muito bem elaborado de fusão, passou a chamar-se “Associação Indígena Internacionalista Socialista Rural”, sob a égide de Mister Tupi Ali Joseph, tendo este como primeiro-secretário o senhor Nestor Trancoso, cabra bom que além de porreta viria mesmo a ser um grande homem.
Vamos merecer aqui pequena nota, mas de capital importância, ou no mínimo objeto de curiosidade aos iniciados em estudos metafísicos, experimentos místicos e àqueles homens e mulheres de ciência que se debulham ante a “maravilha” da fisiologia humana, esta podre carcaça. Não, isso não é bonito. Todavia, convém contar. Mister Tupi Ali Joseph surpreendeu a todos quando solicitou ao indiozinho curumim-mirim a providência de um escalpelo, instrumento para dissecar o restinho de idéia do Tinhão Canhão, logo após a sua celestial partida. Vejam até onde vai o critério científico de um eminente índio. Era pura ciência, puro método. A intenção foi coletar elementos físicos cerebrais que justificassem os fundamentos do pensamento do líder branco. Assim, poder-se-ia, por exemplo, transplantar algo de gênio
para a cabeça de um índio tapado, o que melhoraria a sua
parcela de contribuição na vida. Embora sem êxito patente neste intento, caracterizou-se o espírito modernista antropofágico do índio. Provavelmente os homens das vanguardas botaram olho neste singular caso de “devoração”.
Tudo consumado, mortos enterrados com esmerada honraria, feridos curados e grandes projetos em andamento, a fazenda Guardinha transformou-se em laboratório social e abrigo fixo daquela miscelânea de gente desbravadora de terras alheias. As lutas e as conquistas continuaram desmensuradamente. Agora são mamelucos, cafuzos, pardos de matizes várias, mulheres ainda mais à-toa, velhas já em estado de estrelas-guia, cachorrada reformulada, jovens casais, novos filhos (os mais velhos vão gastando um tal “english” nas reuniões). Enfim, tudo aquilo prosseguiu, modernizado, base alfa, base gama, acampamentos, assentamentos, bandeiras...
Lá na casa do Tinhão tudo normal. Logo após a sua saída e, portanto, antes mesmo da sua viagem etérea, Leonor unira-se ao desmilinguido do Costinha. Não perdeu a macheza de mulher seguindo pelos anos afora mais bronca de Caxias. Há rumores de que seu caso com o tal Costinha vinha de tempos anteriores, numa sem-
-vergonhice cuidadosamente dissimulada. De fato, ela nunca serviu mesmo para acompanhar Tinhão Canhão, que saiu na boa e não perdeu nada desta vida.