A Fanática



Ana era uma mulher fanática por novelas. Mas não era por qualquer novela, e sim pelas novelas de Janete Clair.
Essa paixão pela dramaturgia e pela novelista começou ainda na infância, no tempo das radionovelas, as quais ela ouvia juntamente com sua mãe, dona Judith.
Ana nasceu em 1949, numa vila chamada Andrade Pinto, cortada pela antiga Estrada de Ferro entre os municípios de Vassouras e Paraíba do Sul, no Estado do Rio de Janeiro.
Os dias de Ana eram preenchidos com as aulas no Grupo Escolar na parte da manhã, as tarefas da casa, que fazia com gosto para ajudar a mãe, as lições da escola e a audição das novelas, naquela época em que a televisão ainda não fazia parte do cotidiano das famílias.
Mas havia outra coisa que também a fazia esquecer-se da vida: ficar sentada num banco da estação vendo os trens que chegavam e iam embora, levando e trazendo gente de todo canto: gente de longe, gente de perto, gente conhecida, gente desconhecida, gente simples, gente chique, gente de todo jeito. A estação era a diversão daquele lugar, não só para as crianças, mas era o ponto de encontro de todos os moradores. Encomendas das mais diversas chegavam pelos trens: os jornais da capital, as correspondências, os equipamentos utilizados nos sítios e nas fazendas, os remédios para o Posto de Saúde, os suprimentos para os armazéns. A estação era, na verdade, o coração do lugarejo.
Quando chegava da escola, Ana almoçava e, após ajudar a lavar as louças, sentava-se na cozinha ao lado de sua mãe e sintonizava a Rádio Nacional, para juntas chorarem e sorrirem com os dramas dos personagens criados por Janete Clair. A menina, então com 8 ou 9 anos, entrava no mundo dos enredos novelísticos que criaram em sua cabeça, já povoada de mil fantasias características da idade, o sonho de encontrar o grande amor, de casar, de ter meia dúzia de filhos e de “ ser feliz para sempre”.
À tardinha, depois de fazer suas lições de casa e tomar banho, Ana tinha permissão da mãe para brincar. Mas ela gostava mesmo era de ficar sentada na frente de sua casa conversando com sua amiga Ritinha. Eram da mesma idade, mas, ao contrário de Ana, Ritinha tinha outros planos para sua vida. Não sonhava em se casar. Pensava em estudar, se formar professora e ir embora da vila. As duas meninas passavam horas falando das novelas e do futuro.
Aos sábados, Ana sentia-se frustrada, pois não havia transmissão de novelas pelo rádio. Com exceção da missa dominical, celebrada pelo Frei Zeno, a que ela assistia com fervor usando um veuzinho branco sobre os cabelos louros e encaracolados, o domingo também não tinha graça para ela. A não ser quando a casa da família se enchia de parentes que vinham das redondezas para um grande almoço. Eles chegavam de vários lugares: Massambará, Fazenda da Boa Sorte, Fazenda de Ubá, Governador Portela, Paraíba, Vassouras. Era tanta gente que Ana ficava tonta. O bom é que as tias assumiam a cozinha com sua mãe e ela tinha tempo para brincar com os primos. Embora preferisse ficar lendo as revistinhas em quadrinhos que seu irmão José Antônio sempre lhe trazia da cidade, Ana procurava se enturmar com os primos para participar das brincadeiras.
A chácara era enorme, com um lindo pomar na parte de trás da casa, onde se podiam encontrar pés de todo tipo de frutas: mangueiras, abacateiros, jabuticabeiras, laranjeiras, limoeiros, mexeriqueiras, goiabeiras e muitas outras variedades. As crianças se penduravam nos galhos das árvores, corriam por todo quintal, brincavam de pique, pulavam corda e amarelinha, e inventavam tantas brincadeiras quanto a imaginação permitisse. O limite da chácara era à margem de um ribeirão, onde muitas vezes os meninos ficavam jogando pedrinhas ou colocando seus barquinhos de papel para navegar. Não podiam nadar, porque a profundidade daquelas águas era grande e a correnteza era muito forte. Só poderiam atravessar de canoa quando estivessem com um adulto. Eles obedeciam, tinham consciência do perigo.
Enquanto as tias ficavam na cozinha com dona Judith preparando galinhas, patos e carne de porco no fogão a lenha para aquela gente toda, o pai e os tios ficavam na grande varanda da frente da casa conversando sobre política, futebol e todos os assuntos chatos que homens sempre conversam ainda hoje.
Tio Arlindo, era o preferido. Quando ele podia comparecer ao almoço, aí sim, Ana ficava feliz. Ele era o maior contador de causos, e ela se divertia com as histórias engraçadas, mas nem sempre verdadeiras, que o tio contava.
À tardinha, quando todos se despediam e voltavam para suas casas - alguns de trem, outros de charrete ou a cavalo - Ana ficava na janela da sala de jantar, vendo e contando os vagões do trem que passava vindo de Minas. Eram tantos vagões que, às vezes, ela perdia a conta. Caçambas e mais caçambas de minério de ferro seguiam para a Siderúrgica de Volta Redonda, fundada pelo Presidente Getúlio Vargas havia poucos anos. Ana contava, contava, contava, até cansar. Também gostava de ver o trem de passageiros, o trem Vera Cruz, que fazia o trajeto Rio-Belo Horizonte (os trens de passageiros pararam nessa estação até 1980), sonhando em um dia poder fazer uma viagem para conhecer essas duas capitais.
À noite, às 7 horas da noite, impreterivelmente, um bom banho de banheira, um leite com angu, a reza aos pés de Nossa Senhora do Carmo e a cama. Ana era obediente, não esperava sua mãe mandar duas vezes:
- Vá dormir, Ana! Amanhã você tem de acordar cedo para ir à escola.
- Estou indo, mamãe. “Bença”. – Ana respondia.
- Deus te abençoe! Não se esqueça de rezar para seu Anjo da Guarda. – reiterava dona Judith, todas as noites.
Na manhã seguinte, antes das 6 horas, Ana já estava de pé. Assim que escutava o canto do galo no quintal, o apito do primeiro trem e sentia o cheirinho do café que vinha da cozinha, ela pulava da cama. Corria ao banheiro para lavar o rosto, antes que os irmãos entrassem. José Antônio pegava o trem das seis e meia para trabalhar em Vassouras, e João Vicente teria de abrir o armazém onde trabalhava com o pai, às 7h. Num instante Ana se arrumava, colocava o uniforme do Grupo Escolar, pegava os cadernos, lápis e borracha, e punha-se à mesa para tomar o café. Esse era sempre acompanhado de uma broa deliciosa, de um queijo fresquinho ou de pão de milho feitos por dona Judith. O leite, que chegava cedinho da Fazenda de Ubá, onde o tio Arlindo morava, era uma das coisas que Ana mais gostava. Primeiro ela tomava uma caneca de leite, ficava com aquele bigode branco, passava a língua e dizia: -“Ai que delícia!”. Depois bebia o café com um bom pedaço de broa ou um pedaço de pão de milho.

Assim começava a rotina semanal de Ana: a escola, a ajuda nas tarefas da casa, as lições que a professora mandava fazer, as radionovelas. De segunda a sexta-feira, as mesmas coisas, e Ana sentia-se feliz. Mas nenhum momento era tão esperado quanto o do horário da novela. Mesmo que gostasse imensamente de sentar-se na estação por alguns minutos, todos os dias quando voltava da escola, para ver quem chegava ou quem saía da vila, ela gostava mesmo era de grudar os ouvidos no rádio na hora da novela.
Alguns anos se passaram, começava a década de 1960, e embora Ana já fosse uma pré-adolescente, sua rotina não mudara muito. A diferença agora é que não frequentava mais a escola. Quando terminou o curso primário, não pode dar continuidade aos estudos, pois os pais não achavam necessário. Naqueles tempos, muitos pais pensavam: “Estudar para quê? Uma moça tem de se preparar para casar e cuidar da família.” Até porque, não havia curso ginasial na vila, ela teria de ir para Vassouras ou Paraíba para estudar. Aí é que seu pai não concordava mesmo e dizia:
- Filha mulher tem de ficar perto dos pais, senão se perde na vida.
Assim, Ana ficava em casa, ajudando nas tarefas, ouvindo suas novelas, aprendendo a cozinhar, a bordar, a costurar, se preparando para o casamento. Ela não contestava, achava que sua vida era como tinha de ser. E sonhava, sonhava e sonhava: “Um dia vou encontrar o homem mais bonito do mundo, vou me casar e vou ter muitos, mas muitos filhos!”.
A amiga Ritinha foi para Vassouras estudar o ginasial. Ficava no internato durante a semana e, quando vinha para casa aos sábados e domingos, contava muitas novidades. Isso fez com que Ana já não sonhasse tanto em apenas se casar e ter muitos filhos. Sentiu vontade de também poder estudar, de conhecer outras pessoas, de aprender mais sobre o mundo. Mas isso estava fora de cogitação. Os pais não queriam nem ouvir falar sobre o assunto. Ela então continuou seu aprendizado para se tornar uma boa dona de casa.
Quando Janete Clair escreveu a primeira novela para a televisão, em 1964, e que foi exibida pela TV Tupi, na casa de Ana ainda não havia o aparelho, como não havia na casa da maioria das pessoas. Em 1967, a novelista estreou na TV Globo com a novela Anastácia a Mulher Sem Destino, mas essa também não pode ser assistida por Ana e dona Judith. As dificuldades para se adquirir um televisor ainda era grande. E para tristeza das duas fiéis de “Santa Janete”, também não puderam acompanhar Sangue e Areia, Passos dos Ventos e Rosa Rebelde. Mas, nem por isso deixaram de conhecer o enredo de todas essas novelas, pois procuravam informações com as conhecidas da vila, escutavam os comentários no rádio, liam nas revistas Sétimo Céu e Capricho que Toninho (era como Ana chamava seu irmão) trazia de Vassouras. Enfim, não viram nem ouviram, mas sabiam de tudo, tudinho, que acontecia nas tramas.
Foi somente em 1970, que Seu Jacinto, pai de Ana, finalmente conseguiu comprar um aparelho de TV. Mas, ao contrário do que elas esperavam, a maquininha não funcionava com perfeição. Viam-se mais chuviscos do que outra coisa. Aquela imagem torta, a cara dos artistas desfigurada, aquele som estridente insuportável, aquele cheiro de válvula quente. Um horror!
- Que droga, Jacinto! Onde você comprou essa porcaria? – disse dona Judith.
- Comprei em Paraíba, ué! Lá na Loja Tele Rio e o vendedor garantiu que ela ia funcionar. – respondeu Seu Jacinto.
- Papai, o pai da minha amiga comprou uma igualzinha, e a dele funciona. Ele botou uma antena enorme! – falou Ana.
- Está ouvindo, Jacinto? Tem de colocar uma antena, senão não vai pegar direito. Põe uma antena logo. Quero ver minha novela!
- Calma, mulher! Onde vou arranjar uma antena à uma hora dessas?
- Amanhã você vai lá em Paraíba comprar uma antena, hein! – esbravejou dona Judith.
- O pai da Ritinha, comprou em Vassouras e o técnico veio instalar. O senhor não vai saber fazer isso, papai. Tem de chamar o técnico. – Ana comentou.
Mas, enquanto não se instalava a antena, Ana e dona Judith, ficavam lá com os olhos pregados na tela tentando enxergar alguma coisa e com os ouvidos bem aguçados para entender os diálogos dos personagens. A novela exibida era Irmãos Coragem. Ah, que novela maravilhosa! Essa história contava a saga dos irmãos João (Tarcísio Meira), Duda (Cláudio Marzo) e Jerônimo (Cláudio Cavalcante). Falava de garimpo, de diamantes, de ambição, de traições, de disputa por terras, de exploração de mão de obra, de poder, mas, sobretudo, falava de amor. A mocinha era vivida pela divina Glória Menezes, e seu par romântico era João Coragem, o líder dos garimpeiros, o irmão mais velho, o herói da fictícia cidade de Coroado.
Nessa época, Ana já era uma moça de seus 21 anos e, como toda moça dessa idade, desse tempo e, principalmente, desse lugar, estava pensando em se casar (menos a Ritinha, que havia se formado professora e estava pensando em fazer faculdade). O pretendente era um rapaz da localidade, pouco mais velho que ela, filho de um funcionário da Estrada de Ferro. A família aprovava, afinal, o moço era filho de gente conhecida, de gente honrada e trabalhadora.
O flerte que havia começado na festa de Santo Antônio, padroeiro da vila, logo virou namoro e daí para noivado foi um pulo. – “Para quê esperar? O enxoval já está pronto, o moço tem bom emprego, pode muito bem sustentar uma família.” – dizia Seu Jacinto. O moço, de nome Gilberto, trabalhava em Vassouras no escritório de uma fábrica de laticínios. Não era o homem mais bonito do mundo, como Ana sonhou, mas era simpático, educado, estava terminando o curso de Contabilidade, e ela até que estava gostando dele. E mesmo que não gostasse, casaria do mesmo jeito, pois não havia tantos rapazes disponíveis na vila ou dispostos a casar. Ela também tinha planos para voltar a estudar. Se o pai não deixou, talvez o marido deixasse.
Naquele tempo, os pais queriam ver suas filhas casadas logo. Não era somente para livrar-se da responsabilidade de sustentá-las, mas para atestarem que suas moças eram, de fato, “moças”. Casar uma filha virgem era um orgulho para as famílias, ainda mais num período em que a sociedade passava por grandes transformações. O tal do feminismo e o tal do amor livre eram uma ameaça à honra das mocinhas e de suas famílias tradicionais. Se a filha havia encontrado um bom partido - “Oh, Meu Deus, que benção!”- tratava-se de fazer o casamento rápido, antes que acontecesse algum “imprevisto”. Entenda-se que bom partido, naquela época, significava ser um homem honesto, trabalhador, com bom emprego e de boa família. Hoje talvez seja somente um homem com muito dinheiro (o resto não tem muita importância). Grande parte das vezes também era a família quem escolhia o noivo. Atualmente são as moças (nem sempre são mais “moças”) que escolhem seus pares e a maneira como se relacionam com eles. Muitas vezes, e muitas vezes mesmo, nem casam, moram junto. –“Uma pouca vergonha! No meu tempo era tudo diferente, tinha de ser tudo direitinho.” – diz dona Judith, hoje com 85 anos e morando com o filho João Vicente em Paraíba. A verdade é que Ana e Gilberto se casaram em maio de 1971, para alegria e alívio de suas famílias.
Em junho de 1972, nasceu o primeiro filho, ao qual Ana deu o nome de Tarcísio. É óbvio que foi para homenagear Tarcísio Meira, o João Coragem. Nesse mesmo ano em que seu filho nasceu, foi ao ar a novela Selva de Pedra, mais um estrondoso sucesso da autora e um recorde de audiência da emissora. Ana decidiu: quando tivesse o segundo filho daria a ele o nome de Cristiano (Francisco Cuoco). Se fosse uma menina seria Simone (Regina Duarte), é claro. Assim, em agosto de 1973, Simone chegou ao mundo, com seus cabelinhos loiros e de olhinhos azuis, assim como os da mãe.
Janete Clair continuava emplacando um sucesso atrás do outro. No ano de 1972, além de Selva de Pedra, escreveu também um Caso Especial – Meu Primeiro Baile – primeiro programa gravado e exibido em cores inteiramente. Depois vieram as novelas O Semideus (1973), Fogo sobre Terra (1974), Bravo! (1975, em parceria com Gilberto Braga), Pecado Capital (1975), Duas Vidas (1976), O Astro (1977), Pai Herói (1979), Coração Alado (1980), Sétimo Sentido (1982). É importante dizer que Duas Vidas foi a primeira novela em que Ana assistiu numa TV em cores. Depois de muitas e muitas preces, muitos e muitos pedidos, o marido comprou um televisor colorido em 1976.
A vida de Ana seguia paralelamente à carreira da autora, sempre guiada pelas histórias dos heróis e heroínas de suas novelas. Sua fidelidade à Janete era extremada, assim, novela após novela, capítulo após capítulo, lá estava ela, acompanhando tudo. Era uma dona de casa exemplar: lavava, passava, cozinhava, cuidava da casa, do marido e dos filhos com total dedicação, mas seu mundo girava em torno dos enredos criados pela novelista. Ela se realizava por meio das personagens.
A família cresceu e mais três filhos vieram: Francisco Carlos (homenagem a Francisco Cuoco e seu personagem Carlão em Pecado Capital) nasceu em 1976; André (Tony Ramos em Pai Herói) em 1989; e Luana (Regina Duarte em Sétimo Sentido) chegou em 1983.
Quando Luana nasceu, Ana já estava com quase 35 anos. Gilberto resolveu que não teriam mais filhos. Nessa época, a situação financeira do casal era bem confortável. Ele havia progredido nos negócios, não trabalhava mais com laticínios, e sim com material de construção. Possuía duas lojas na cidade e uma terceira no vizinho município de Miguel Pereira. Mesmo assim, achava que já estava de bom tamanho uma família com cinco filhos. Se dependesse de Ana, teria mais uma menina, para chamá-la de Priscilla (o segundo papel de Regina Duarte em Sétimo Sentido)
Só para lembrar, no último capítulo de Pecado Capital, naquela cena antológica em que Carlão é assassinado e morre abraçado à mala de dinheiro nas obras do metrô (e a voz de Paulinho da Viola cantando “dinheiro na mão é vendaval, é vendaval...”), Ana foi ao desespero. Chorou e sofreu como se tivesse perdido um ente querido. Aliás, acho que ela sofreu mais do que quando perdeu seu pai, em 1974, de infarto do miocárdio.
Porém, sofrimento maior ainda estava por vir.
Em 1983, Janete Clair adoeceu quando escrevia a novela Eu Prometo, em que Francisco Cuoco atuava ao lado de Dina Sfat e Marcos Paulo. Mesmo doente ainda escreveu muitos capítulos, mas veio a falecer no dia 16 de novembro, vítima de câncer de intestino. A novela foi finalizada por Glória Perez com supervisão de Dias Gomes, marido de Janete e também dramaturgo.
O mundo de Ana desabou. Sua tristeza era tão grande que passou dias chorando, sem conseguir nem se alimentar. A admiração e a devoção por Janete Clair eram tão grandes que ela não quis assistir a novela até o final. – “Agora tudo perdeu a graça, o sentido.”- dizia.
O que fazer agora? A mulher que soube como ninguém alimentar suas fantasias, realizar seus desejos mais secretos por meio de personagens tão intensos, que falava ao seu coração, que parecia ouvir suas queixas, não estava mais aqui. Ana resolveu que nunca mais assistiria a nenhuma novela, por melhor que fosse, por mais que as pessoas comentassem, por maior que fosse o ibope. –“Novelas, nunca mais!”- falou a si mesma.
Os meses foram passando e Ana nem sequer sentia vontade de ligar a TV. Às vezes, sentava-se em seu sofá, diante da televisão, e ficava olhando a tela apagada com o olhar perdido como se estivesse se lembrando das cenas memoráveis, dos beijos ardentes, dos diálogos entre seus personagens favoritos. Sentia-se um pouco melhor quando Ritinha ia visitá-la. A amiga, que agora era médica e trabalhava num hospital em Vassouras, ficava preocupada com a apatia e o desânimo de Ana. Aconselhou-a muitas vezes a procurar uma atividade diferente, fazer um trabalho comunitário, um curso qualquer, mas Ana rejeitava a ideia. E mesmo que quisesse Gilberto não consentiria. Ele, um marido às antigas, não achava certo mulher casada sair de casa para estudar ou trabalhar. Há muito tempo Ana havia desistido de convencê-lo a deixar que ela voltasse aos estudos. Seu destino era mesmo ser uma boa esposa e uma boa mãe.
Entretanto, Ana jamais abandonou o hábito de ouvir rádio. Era seu consolo. Todas as manhãs levantava-se cedo, e uma das primeiras coisas que fazia era ligar o aparelho, que ficava em cima de um móvel na cozinha. A Rádio Globo já ficava sintonizada direto e ela acompanhava toda a programação até o finalzinho da tarde. Só desligava depois de ouvir e rezar a Ave Maria, às 18h. Continuava lavando, passando, cozinhando, cuidando da casa, do marido e dos filhos, mas sem jamais desligar-se de seu companheiro, o rádio. Sentia-se íntima dos locutores. Ela “fez muitos amigos” durante todos esses anos: Haroldo de Andrade, Paulo Giovane, Paulo Barbosa, José Carlos Araújo, Francisco Barbosa, Antonio Carlos e tantos outros. Eles eram seus confidentes e conselheiros. Houve uma época em que não começava suas tarefas sem ouvir o horóscopo de Zora Yonara. As fofocas de Jussara Carioca também eram imperdíveis! Ela se divertia com a irreverência da Juju. Até porque a Jussara também contava como havia sido o capítulo anterior da novela das oito. Ana não assistia mais às novelas, mas mantinha-se “conectada” ao mundo televisivo por meio do rádio.
O tempo passou, as crianças cresceram e, pouco a pouco, foram embora de casa. Tarcísio casou-se em 1997 e foi para São Paulo, é engenheiro químico e trabalha numa grande indústria do ramo de alimentos. Simone formou-se médica, é divorciada, mora no Rio de Janeiro. Carlinhos (Francisco Carlos) seguiu a carreira militar e de tempos em tempos muda de cidade (atualmente está em Brasília). André também é casado, mora em Miguel Pereira e gerencia a filial da loja de seu pai. Finalmente, Luana, que é formada em Jornalismo, também está trabalhando no Rio de Janeiro e mora com o namorado na Tijuca. Essa situação incomoda muito dona Judith e todas as vezes que ela vai à casa da filha, diz:
- Como é que pode, Ana?! Como é que você e seu marido permitem uma coisa dessas? Isso é uma vergonha para a família!
- Os tempos são outros, mamãe! O importante é que minha filha seja feliz! –Ana responde.
Dona Judith não se conforma com essas modernidades e vive resmungando sobre o “péssimo comportamento” das netas: - “Uma, largada do marido, a outra, morando com o namorado. O mundo está perdido, Meu Deus!”
Ana não se importa muito com a implicância de sua mãe. Na verdade, não se importa muito com nada. Vai vivendo sua vidinha: de casa para a missa, da missa para casa, um bordado, um tricô, uma conversa com uma vizinha, seus programas de rádio. E o que mais foi ensinado a ela?!
De vez em quando, sente-se muito feliz com a visita dos filhos e dos netos. Continua cuidando da casa e do marido (Gilberto, agora com 65 anos, nem pensa em aposentadoria, continua cuidando dos negócios), porque outra coisa nunca soube fazer. Quando as crianças eram pequenas e precisavam dela, sentia-se mais importante. Pelo menos tinha um projeto seu: criar bem os filhos. Mas, depois que eles cresceram e cada um foi viver a própria vida, Ana não viu mais as coisas com entusiasmo.
Porém, depois de anos sem se interessar mais por novelas, de cultuar a memória de Janete Clair por mais de vinte anos, o improvável aconteceu: apaixonou-se por outro autor - Aguinaldo Silva.
Era o ano de 2004, e Aguinaldo escrevia a novela Senhora do Destino.
Nenhuma história havia mexido tanto com Ana como essa. Nem mesmo as mais emocionantes e criativas de Janete Clair. Ela nunca havia admirado tanto uma personagem como admirava Maria do Carmo, vivida brilhantemente por Suzana Vieira. -“Eu queria ter a força dessa mulher!”- dizia.
Não foi só a história em si que causou em Ana as maiores sensações e emoções. Não foi pelo fato de Maria do Carmo ter cinco filhos como ela; nem tampouco por Nazaré Tedesco (Renata Sorrah) ser diabólica, mas divertida; nem por Giovani Improta (José Wilker) ser impagável; nem por Dirceu (José Mayer) ser um amante fiel e dedicado; nem por Sebastião (Nelson Xavier) ter sido leal ao amor por sua patroa Josefa (Marília Gabriela) mesmo depois de tantos anos. Também não foi por retratar, em sua fase inicial, os pesados anos da ditadura militar no Brasil.
A trama contava realmente com um elenco de peso (também atuaram na novela Tarcísio Meira, Raul Cortês, Glória Menezes, Ítalo Rossi, Angela Vieira, Wolf Maia, Mara Manzan, Marcelo Anthony, Leonardo Vieira, Leandra Leal, Débora Falabela, Carolina Dieckman, André Mattos, André Gonçalves e tantos outros atores e atrizes importantes), além de o enredo ser comovente, pois abordava sobre o rapto de uma criança e a busca incansável de sua mãe, durante anos, para recuperá-la. Isso já seria suficiente para afirmar que, sem dúvida, foi uma grande novela, e que Ana tinha toda razão em se apaixonar pelo autor e sua história. Porém, o que mais mexeu com os sentimentos de Ana foi a música de abertura: Encontros e Despedidas.
De autoria de Milton Nascimento e Fernando Brant, e interpretada por Maria Rita, Encontros e Despedidas mexia com os sentimentos de Ana porque a reportava aos tempos de menina quando, sentada na estação de Andrade Pinto, via os trens chegando e indo embora, trazendo e levando amores, pais, filhos, amigos. Quantos sorrisos e lágrimas ela viu no rosto daquelas pessoas! Quantas alegrias e tristezas juntinhas, lado a lado, ela presenciou durante tantos anos! Quantos sonhos ela sonhou naquele banco de estação! Quantas viagens desejou fazer! Quantos lugares quis conhecer!
A música trouxe de volta todos os sonhos e as imagens que haviam ficado guardadas durante tanto tempo no fundo de sua memória. Aquela menina havia retornado, depois de tantos anos. Tudo era tão nítido, tão cristalino. As lembranças eram tão novas, como se tivessem acontecido ontem.
Mas não foi ontem, foi há mais de 50 anos. Ana não era mais uma menina. Agora ela era uma senhora que, olhando para o passado, percebeu que nunca foi senhora do seu destino.

Encontros e Despedidas
(Milton Nascimento/Fernando Brant)

Mande notícias do mundo de lá /Diz quem fica
Me dê um abraço/Venha me apertar/Tô chegando
Coisa que gosto é poder partir/Sem ter planos
Melhor ainda é poder voltar/Quando quero
Todos os dias é um vai e vem/A vida se repete na estação
Tem gente que chega pra ficar/Tem gente que vai pra nunca mais
Tem gente que vem e quer voltar/Tem gente que vai e quer ficar
Tem gente que veio só olhar/Tem gente a sorrir e a chorar
E assim chegar e partir
São só dois lados/Da mesma viagem
O trem que chega/É o mesmo trem da partida
A hora do encontro/É também despedida
A plataforma dessa estação/É a vida desse meu lugar
É a vida desse meu lugar/É a vida

Jorgenete Coelho








 
Jorgenete Pereira Coelho
Enviado por Jorgenete Pereira Coelho em 22/06/2012
Reeditado em 14/12/2012
Código do texto: T3738943
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