O cravo remanescente

“Os espinhos que me feriram foram
produzidos pelo arbusto que plantei”


George (Lord) Byron

     O homem vivia insólito, à mercê das intempéries, das feras... Era predador do mais fraco e presa do mais forte, do desconhecido. Nômade nas vontades, nas ações. Era preciso migrar do ambiente mais conhecido em busca da sobrevivência. Os olhos horizontais sempre à procura de companhia, perigo. E o abandono se fez a principal solução para os seus problemas. Se não houvesse água, abandonava. Se não houvesse alimento, abandonava. Se não houvesse sombra, abandonava. Aprendeu já naqueles tempos a abandonar. Abandonar as situações que não lhe agradassem, satisfizessem.
     O nômade homem viu uma caverna, abundante de sombra, um lugar para repousar. O homem nômade que abandonava precisou de uma noite somente para que, dos olhos horizontais, estafados, “evoluísse”... E por uma noite, na tempestade lá fora, na escura caverna, no medo, na solidão, encontrou abrigo, encontrou o homem. Pela manhã, o dia extasiado de si mesmo iniciava. O homem, cerrando os olhos pelo sol nascente, mimetizava a desconfiança no segundo seguinte. Não foi muito longe, mas perto o bastante para tropeçar nas feras e presas, estendidas, atoladas, vítimas. Sedento, bebeu da presa. Silvícola impulsivo, engoliu a fera. Esbanjou-se do banquete e elevou os olhos. O sol escaldava. A carcaça fedia. O mundo já girava.
     O véu laranja-azulado não encobria duas estrelas anunciantes. À gélida noite não se intimidava a vespertina sincronia. E o homem farto não se deixou subjugar. A caverna que o salvara o acolheu novamente. Dos segundos às horas, o homem aquecido esperava. A espera, a canseira. O cansaço o ninou... O silêncio da monotonia dos tons e dos ruídos não o incomodava ainda. Arreganhado do lado de fora, o ambiente necrópsico que o amordaçava. A segurança na caverna seguramente o fez “evoluir”. E o homem arrivista deu o seu primeiro passo.
     O animal homem deixou sua primeira lágrima cair pelo puro contentamento. Às horas nem sempre o pranto suplica, que passem rápidas e prenunciem o raiar do sol. Mas eram implacáveis as inspirações do impolido homem. Naquele tempo, não pensava o que fazia... Longe de fazer o que pensava. Saboreava a madrugada que o privara do mau tempo. Não adormeceu. Mas a curiosidade, inexoravelmente cruel. O momento emudecido pelo enfadonho ambiente, que não dissonava. Pelas frestas esculpidas na pedra, o luar convidativo. Não houvera ainda filosofia que o fizesse recusar... Sem que pudesse pensar e repensar, o homem irracional agiu por reflexo. Caminhou a passos ansiosos por espiar a aurora da noite e não havia perspectiva do que encontrar. Lembranças não existiam na inércia de seus pensamentos indisciplinados, e isto bastasse para que o consideremos do auge de nossa “antropolatria arrogante”, xucro. Talvez porque zombemos da indumentária chula que vestia, da anulação de sua vida “sem propósito”, do sexualismo selvagem com que alfineta o redomado amor da contemporaneidade, ou simplesmente porque não precisava despertar-se às seis da manhã, embarcar um metrô abarrotado de semelhantes “competidores”, trabalhar e merecer a devida remuneração por esta jornada disciplinada, para que no final de semana esteja apto a “comprar” minutos de amor, lazer, alimento, descanso, felicidade, paz... Mas a chulice, a xucrice de nossas palavras nos impede de aprender com nossos antepassados e resgatar deles o que finalmente deificaria a nossa existência: a naturalidade. É no instinto que a intuição comparece.
     O instintivo homem da caverna era tranqüilo porque não cria que lhe faltava algo. A força da necessidade regia suas ações em busca de alimento, sombra, sexo. Não havia justificativa maior para suas atitudes do que o impulso da sede, da fome, do frio, da dor e do instinto sexual. O destemido homem se viu, pois, recuado pela primeira vez, ao deixar a caverna, naquela madrugada constelada. Experimentou o medo do futuro.
     Haverá sol ao alvorecer? Haverá alimento quando no dia seguinte sentir fome? Ainda noite, o convite estava feito... No alto da montanha, a caverna pequena vista do alto, a solidão, o frio, o ar rarefeito. As estrelas compunham uma canção para a lua. As nuvens se foram, o silêncio imperfeito de vozes mudas que ocupavam a mente. É possível que o homem da caverna sentisse frio e calor ao mesmo tempo? Duas folhas caíram da árvore, uma de encontro ao seu peito, a outra penhasco abaixo. O topo, pequeno. Seus olhos, na folha orvalhada, opacos, pesados, molhados. Uma lágrima descia atravessada, na folha seca suspensa. Mas ergueu a cabeça em desafio ao imenso crepúsculo. Cresceu... Permitiu que a brisa o secasse a face e sorriu. A lua abraçando as estrelas, gratidão. É possível àquele novo homem da caverna sentir um calor tão intenso e não se queimar? Se sim ou não, decidiu ficar...
     O ciganismo do homem enfraqueceu quando questionou o ir e vir. Aborreceu-se de viver à revelia. A semeadura de uma marcante característica do “ser humano”. Um aprendizado influente e que perdurou no decorrer dos milênios é oriundo aqui deste momento. Optar por deixar a ação do presente ser a principal maneira de prever o que ocorrerá no futuro, ou mais que isso, criar um ambiente menos susceptível a intercorrências e surpresas. Sobretudo, o homem determinado determinou a necessidade de fazer previsões.
     Pela manhã, o homem da caverna, na caverna do homem, jurou um propósito. Não iria sob qualquer pretexto abandonar ou, caso contrário, asseverado, um cravo remanescente das ossadas do banquete seria transpassado em sua pele. E lapidou vários e os amontoou em um canto na caverna para que deles recordasse, uma lembrança da promessa. E quando os esculpia se sentia determinado, forte, irredutível. Nem sequer imaginava algo capaz de remetê-lo novamente aos orvalhos da noite nos olhos... Mas imaginar também era uma faculdade que não lhe pertencia na sua totalidade. E não abandonar era um propósito pouco definido naquele intróito de racionalidade. Abandonar a quê? À caverna que o acolhera, ao horizonte do alto da montanha que o fizera enxergar, aos cravos lembretes que o esculpiam, a si mesmo? Um pouco de cada. Afinal, sua motivação, mais intuitiva que dialética, não se surpreendia com um só minuto de reflexão. Persuadia-se de humanização a se transformar em um homem compassional. E fez da sua maior carência o seu maior predicado: o zelo. “Não irei abandonar, porque hei de melhorar-lhe, cuidar-lhe, proteger-lhe...” Em sua retórica insistiu em uma missão sabidamente humanizante, mas faltou-lhe a coragem de assumir a inversão que fizera do sujeito com o objeto supostamente abandonado. A decisão de zelar por essa realidade “criação” ou por essa realidade “presente”, em que os deuses humanos criam ou presenteiam, é fruto de um único medo: afirmar-se só. Na solidão, porém, ainda não havia enxergado a possibilidade de encontrar-se nos outros.
     Há de imaginar agora, homem humano, a sua solidão? Ou ainda teme o abandono, a exclusão por proclamar-se só? Talvez a limitação de sua linguagem proibisse uma resposta alternativa: abandonar a caverna, o horizonte, os cravos, a si próprio é impossível, visto que necessita de tudo isso para existir. Há de negar a própria existência? Pode ainda trocar a caverna e logo iludir-se, porém, que houve escolha. Há de prosseguir com a escolha iludida? Mais absurdo que um objeto sem sujeito é a existência de um sujeito sem qualquer objeto, os quais já o tenham renunciado.
     O homem caçador-coletor se reproduziu. Semeou o solo. Cercou animais. De posse das suas crias, enfrentou as estações, impôs condições e sorriu quando suas expectativas foram satisfeitas. Sedentarizou-se, corrompeu o ambiente ao seu redor e contaminou-o de regras. E, na tentativa de domesticar o caos, seduziu-se do poder.

 Trecho do Livro "O Vício de Mnemosyne"
 Leonardo Faria


*Visite-nos no mindasks.blogspot.com
mindasks
Enviado por mindasks em 21/06/2012
Reeditado em 21/06/2012
Código do texto: T3735825