Raposas, lobos e feras
Jorge Luiz da Silva Alves




     Tinha um orgulho (aqui, entra um cabeludíssimo palavrão acerca de 'mãe') daquela prima, penalizava-se sinceramente pelo ponto em que a coisa chegara. Mas também precisava pensar no todo. Tempos lindos, só para quem lidava com petróleo e gás, banqueiros e governos, paralelos, paramilitares e similares. Tempo lindo, quando constituíra seu escritório após à faculdade, extorquira pais e parentes para que seu sonho alçasse asas e jamais reclamara de nada, pulara de pública p'rá privada e vira seus mais auspiciosos augúrios descerem privada abaixo; acompanhara também o crescimento da prima temporã, rosada, jovial e fogosa, mas no seio dum lar desestruturado, com a mãe-porra-louca apostando em tudo que lho surgia nariz adiante como se fosse as patas de Pégaso no hipódromo de Júpiter, o deus da boa fortuna. Cabeludíssimas besteiras fizera a mãe da priminha rosada, quase cedendo-a à cruza dum quase-padrasto canalha, este sem mesmo saber o porquê de tanto auê (“Eu não queria magoar você”, foi o que o cabeludíssimo justificara à mãe-porra-louca e à metade da rua, desejosa em pendurar alhos e bugalhos do sacripanta na porta do bar da favela) e, como a genitora não tinha juízo para prover os meios de subsistência e decência da rebentinha, parou no seu colo por decisão judicial a responsabilidade (?!) em cuidar do problema-vivo. Claro. Daria em - aqui, palavrão fedorento.


      Tinha um orgulho (pobre mãe, mas é o cabeludíssimo novamente) da priminha jovial e rosada da outra banda da via férrea: possuía uma queda para matemática, biologia, física e geografia; firme na argumentação tanto quanto os seios que desafiavam a lei da gravidade e a fome dos meninotes do seu condomínio, doidos para cravar esporas na eguinha nervosa, pocotava(*) um a um com os coices do desprezo. Mesmo sabendo-se durindana-da-silva, ainda enfiada em rolos estratosféricos após topar malsucedida sociedade com um terratenente emergente da agiotagem, percebera bem a tempo que o grandão era chegado em vitelas rosadas. Mas a priminha não precisaria saber de nada: conversara antes com o transgresso plutocrata sobre os cuidados com a moça, já escaldada de traumas em família, família esta que sequer poderia reclamar da sorte apresentada pela vida, quanto mais aquela que lhes oferecia. Chance para a mocinha sabida, graças a bons contatos de rápidas subidas; chance para ela, que já acertara metade de seus débitos com o terratenente com rombos na dignidade; chance para a ( baixo calão materno), que dera o pontapé inicial das desgraças com a rebentinha. Precisava, como sempre, pensar no todo. Mas, principalmente, na sua hipoteca, no seu IPVA, na sua pose de profissional liberal mais o seu nome na praça...


      No Beluga's do West Shopping, Plutocrata jogou pesado – enquanto veiculava suave e matreiro olhar para ela, a vitelinha e a mãe-porra-louca: bancaria tudo e todas depois da viagem. Viagem?, pensou o trio ternura; pois sim, reafirmou o terratenente, que insistiu em soltar a grana a fundo perdido após um proveitoso passeio pelo litoral, em seu recém-adquirido iate fundeado em Muriqui. Ela pensou: já mostrara ser de 'confiança', e quanto às duas, nada a perder. O que capturassem pagaria mil estragos. Mãe-songa-monga sequer esboçou protesto, por mais tímido que fosse; e a priminha, estava encantada com a delicadeza dos gestos e atenções do que deveria ser um rude miliciano. Fechado – em vinte e quatro horas, após um cruzeiro de saborosas emoções, todos os corações do mundo estariam batendo num só compasso. Sentira-se orgulhosa, como jamais imaginara, mesmo nos melhores (e tumultuados) tempos da faculdade, quando pagara caro, inclusive na pele, por gabaritos.

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      Tinha um orgulho – agora, não tinha mais nada. Tinha um esboço de vida e, agora, não possuía sequer um pedaço de tijolo para riscar a parede com tracinhos que lhe permitisse contar o tanto que já definhava ali, no meio de tanta gente estranha, hostil e desgraçada. Tinha saúde: mas encontrava-se cada dia mais adoentada pelo tanto de entradas e saídas de suas vísceras inferiores, de tipos inferiores que se sobressaíam muito mais pela paga que apresentavam ao patrão-do-dia, pelo cruzeiro saboroso em seus contornos.


      Teve uma família: mas, quando chegavam ali, naquele canto (baixo calão geográfico) que sabia com certeza ser do Oriente Médio, Telaviv talvez, a principal providência era separar a parentada, para que não criassem esperanças. Era assim que escravas brancas eram tratadas, pois embora ainda possuíssem um esboço de almas, os seus corpos já não lhes pertenciam. A mãe-porra-louca (lembrava-se ainda muito bem, após tanto tempo) fora cambiada para um iate adjunto no meio do oceano, e ela fora para um cargueiro enferrujado horas depois de apanhar com gosto do terratenente e dos seus mais novos sócios, gente de força e grana que comerciava carne, tanto rosada, quanto negra, quanto parda, etc. Teve médico, alimentação e roupas limpas, até chegar num porto de gente estranha, turbantes e balbucios idênticos aos dos noticiários das tevês por assinatura. E numa tevê de língua estranha, em meio às peças de ganho dos novos haréns e suas perdidas odaliscas para sultões profanos, ela tomou conhecimento da ascenção dum certo político brasileiro emergido supostamente do submundo mas sem que provassem patavinas, e sua partner, ricamente adornada de Valentino Garavani e Louis Vuitton... e aquela expressão tanto vaga, sabidamente ingênua no passado, mas que agora destilava uma certeza do inexplicável carinho que tecera pelo seu patrono, agora dono. Certeza de que os brutos também possuem um misterioso senso de justiça e paixão, além das hipocrisias e cobiças sociais. Cabeludamente além de qualquer senso comum.


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Jorge Luiz da Silva Alves
Enviado por Jorge Luiz da Silva Alves em 18/06/2012
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