OS MORTOS NÃO FALAM

OS MORTOS NÃO FALAM

Nem viu a mudança. Vozes estranhas, vizinhos novos.

— Teu nome?

— Jorge, e o teu?

— Valdeci.

Risos. Chegou mais perto, revirando os olhos.

— Quando chegou?

— Ontem à noite.

Duas brasas negras fumegavam na blusa. O pezinho de anjo riscou o chão. Sentiu os gatos uivarem na virilha.

— Quer conhecer meu ingazeiro?

— Quero.

— Teu pai?

— Morreu.

— Tua mãe.

— Foi na venda.

Lembrou a conversa com o irmão mais velho. A viúva do carvão estava seca. Segurou meu pau. Viúva é ótimo. Mortos não falam. Donzelo é o cara que ainda não comeu.

O ingazeiro podia esperar.

— Posso entrar?

— Mamãe pode chegar. Mais tarde ela vai sair de novo. Eu te chamo.

— Como?

— Boto a canária pra cantar.

— Canária?

— Meu pai me deixou uma canária que toda tarde ela canta.

— Tá bom. Vou subir no ingazeiro.

— Posso ir também?

— Pode se puder.

Os gatos voltaram a uivar com a visão da calcinha encardida. Chegou junto. Mordeu-lhe o cangote. Cheiro de óleo de comida.

— Tá é duro!

— Desce e entra no aparelho!

— É melhor lá em casa.

Foi pra casa. Ele ficou ali, nas galhas empurrando o sol com o sopro do seu desejo.

— Esse menino não come nada! Magro desse jeito qualquer dia desse o vento vai levá-lo.

E o vento levou.

Estava lá em cima, nos galhos cercado de beija-flores e mariposas. O vento chegou de mansinho como as sombras da noite. Aos poucos foi engrossando. O ingazeiro resistiu como pode, mas acabou arrastado para dentro do vale. Ele foi junto.

Caiu na casa de Jorge.

— Cadê a canária?

— O gato comeu.

— E agora como vai fazer pra me chamar? Gato não canta.

— Mas uiva. Quando ouvires o uivo do gato é a minha canária que está cantando.

— Nem come e ainda fica com esse riso idiota!

— Mais tarde eu como mãe.

A tarde veio silenciosa, sem canto, sem uivos.

— Minha mãe não saiu. Cobri minha canária pra abafar o canto.

— Não precisava.

— Precisava sim por causa do Lula.

— Quem é Lula?

— É o meu padrasto. Chato. Em vez de a mãe sair ele chegou de repente. Sempre que minha canária canta, ele se embriaga e fica violento.

Silêncio. Gatos em alerta.

— Que foi?

— Nada.

— E o aparelho?

— O vento levou.

—?

Luz na casa da viúva. Os mortos não falam.

henrique ponttopidan
Enviado por henrique ponttopidan em 18/06/2012
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