O Bar
Era uma ruela afluente de uma avenida. Na avenida, super urbanizada, a cidade palpitava uma madrugada de cores e sons agressivos. Muito movimento, diferentes estímulos, zunidos metálicos, holofotes, um vozerio histérico, cheiro de fumaça, asfalto e comida, batidas que retumbavam na caixa toráxica. Já passava de uma da manhã. Ao longo da larga via havia carros de luxo, ônibus populares, bicicletas, moradores de rua dormindo em calçadas, garotas de programa, alguém voltando de um culto religioso com uma bíblia na bolsa, alguém indo a um shopping center assistir à sessão de arte da madrugada, um casal em crise, alguém se sentindo a pessoa mais feliz do mundo por ter descoberto uma gravidez sonhada, alguém pensando em se suicidar, alguém esperando que o semáforo indicasse o verde pra que o caminho até a casa, a cama e o descanso parecesse mais curto... no segundo quarteirão sentido sertão-praia, havia, insistente, a ruela, com um único poste de iluminação pública (localizado em sua esquina, o que garantia uma luz amarelada, incandescente, até uns dois metros esquina adentro, abandonando o restante da pequena rua em penumbra e névoa do frio da manhã que pelejava para nascer). Já na área escurecida, havia outro foco de luz: uma lamparina que balançava ao vento, pendurada por um gancho enferrujado na porta de entrada de um bar ancião, meio reumático, com a aparência generosa de um vovô que viu muita coisa atravessar sua entrada, chacoalhando a lamparina. Possuía apenas uma única janela, bem larga, de madeira pesada, com um pára-peito de mármore escurecido pelo tempo e marcado pelas pontas de cigarro clandestinamente nele apagadas. Por dentro tinha cheiro de mofo, que era disfarçado pelos vários incensos acesos espalhados pelas mesas de madeira, arrodeadas por banquinhos de acentos redondos. Um balcão longo, alguém enxugando canecões de chope, uma copa forrada de azulejos, paredes cobertas por quadros provenientes de todos os lugares do mundo (o dono do bar era um holandês aposentado, que veio à Buenos Aires apaixonado por uma moça, que o trocou por cocaína). Era um local aconchegante, mas que não sabia ser simpático.
O bar estava sem movimento. Tranquilo, com apenas duas pessoas dentro, que à primeira impressão pareceriam não existir. Escondiam-se ao fundo, na última mesa, encostada da parede forrada por uma cortina de renda francesa. Estavam com a metade do corpo sobre a mesa, ambas mergulhadas num sono profundo, o qual só é possível atingir com a ajuda de um longo dia de trabalho e algumas cervejas demais. Não era possível distinguir quem eram ou identificar o quê lhes levou até ali. Rompendo a superficial calmaria do lugar, repentinamente, entrou um homem, contando uns 60 anos – ou menos. Parecia ser um homem jovem, mas desses cuja vida levou o brilho muito cedo. Tinha cabelo branco e desgrenhado, caminhava cambaleando. Quando lembrava, puxava de uma perna. Os que já estavam dentro do bar, se perceberam sua chegada, ignoraram. Tudo continuou inabalado: a fumaça cheirando a lótus se entranhando nos tampos de madeira das mesas. Desesperado, o recém-chegado desatou a agachar-se, mesa por mesa, correndo um olhar aflito pelas prateleiras empanturradas de garrafas de bebida e souvenirs europeus. Com o cenho franzido, sustentava nos olhos quase-lágrimas. Tentou colocar a maior atenção possível em cada recanto do local, mas seu estado não lhe permitia enxergar a mais de um par de centímetros do próprio rosto. Cheirava a cachaça e urina. Fungava violentamente e esfregava os dedos sujos pelos nariz. A ruela onde se localizava o bar, a nível de informação, por ser basicamente um beco escuro próximo a uma avenida central, era utilizada por traficantes locais como ponto de venda de cocaína – motivo pelo qual a noiva do holandês infeliz saiu numa tarde qualquer para fazer as compras de casa (faltava sabão em pó, cebola e canela) e nunca mais voltou. Foi encontrada por um garoto que andava de skate, jogada por baixo de uma ponte, a algumas quadras dali, nua, com o rosto ensangüentado e o nariz coberto de pó.
O visitante desesperado continuava insistindo na sua missão de resgate. Viu quadros. Bonecas de porcelana. Bandeiras. Discos. Copos. Cinzeiros. Não... não era isso... Bebidas. Talheres. Ainda não... Vasculhou por cima das mesas, por baixo delas também. Levava as mãos à cabeça, onde estaria o que procurava? Começou a imaginar todos os problemas que teria se tivesse realmente perdido. Para sempre. Quanto mais nervoso ficava, mais rudes eram seus fungados. Tinha olhos ferozes, altivos, avermelhados. Cutucou os bêbados adormecidos e os perguntou qualquer coisa sobre o que queria, mas nenhum deu uma resposta de utilidade. Então sentou-se. Cabeça baixa, sendo suspensa pelas mãos. Sua preocupação aumentava a cada instante. Suava. O que a sua mulher iria lhe dizer? Não conseguiria trabalhar. Com que cara voltaria para casa? Nem sabia se devia voltar. Era bem possível que fosse demitido. Seria a vergonha dos seus netos. Estaria mal falado na rua. Não sabia se seria capaz de se perdoar. Mergulhado em aflição, respirou fundo. Não adiantava mais. Era isso, então. Decidiu acalmar-se e deixar que o nível de substâncias químicas que carregava no sangue diminuísse, para só então resolver o que faria da vida. A luz do local transmitia calidez e a tonalidade das paredes envelhecidas começou a oferecê-lo harmonia. Por fim, sorriu, pensando que já tinha perdido a conta de quantas vezes tinha ido a esse bar somente na última semana. Onde diabos iria parar?, perguntou a si mesmo... levando essa vidinha de marginal, caindo em sarjetas, enchendo a cara, se envenenando, tentando acreditar...
O holandês viúvo, gordo e ruivo, apareceu de algum lugar no interior do recinto e o perguntou:
-Quer beber o de sempre?
-Não... hoje já bebi... mas preciso encontrar...
O outro o interrompeu, sua cara rosada parecendo mais larga e os olhinhos verdes menores quando espremidos por um sorriso de dentes amarelos:
-Deixa eu adivinhar... um par de botas?
-Isso! – o homem respondeu eufórico - um pouco sujas e velhas, de couro, pretas, o cadarço do pé esquerdo está assim desfiado na ponta!
-Sei onde estão – respondeu o dono do estabelecimento, calmo e paciente.
-Onde? Por favor me diga... – outro falava, arfando, nervoso, na eminência de conseguir o que tanto precisava – é que preciso delas para trabalhar, do contrário irão me demitir! A patroa, lá em casa, ficará chateada... sabe como é, né? Temos os nossos netos...
-Sei bem – interrompeu o outro, com um sorriso paternal – dois meninos, gêmeos, Lucas e Mateus, nomes de apóstolos de Cristo.
-Isso, esses mesmo! São tão lindos os meninos...
-Já com sete anos cada um! – completou o holandês.
-Exatamente! – o homem transbordava alegria – Meu senhor, por favor, onde estariam minhas botas???
-Nos seus pés! – exclamou, alto o suficiente para assustar os par de embriagados que ainda dormiam na mesa ao fundo do bar.
-Como...? - olhou para baixo e um sorriso preencheu seu rosto - as procurei o dia inteiro, não sei como foram parar aí! – levantou-se, entusiasmado, e deu um abraço caloroso no dono do bar - Isso merece ser comemorado com uma cerveja!
-Ótima ideia! – alegou o outro, e se encaminhou para o balcão, pensando em que todos os dias o seu cliente mais fiel fazia o mesmo teatrinho, com as mesmas palavras. Mas pelo menos, esta vez não ficou falando sobre sua filha já morta, que foi quem lhe presenteou o par de botas. Último presente antes de morrer.