Que tinha fumaça, nem se fala. E mais pigarro, tosse, cheiro forte de fumo,
    cigarro barato. Até um tomador de pó. Naquele cômodo de três por quatro havia pra
    mais de trinta pessoas, os olhos vermelhos, as mãos tesas, a respiração ofegante,
    os ouvidos limpos, amontoados sobre uma mesa ensebada e comprida, alguns de
    pé, cartão numa mão, milho na outra e na boca; outrs sentados no chão fazendo de
    um caixote apoio e a voz do cantador berrando forte, apressada, acelerada, Jogava-
    a víspora.
  __ Vinteeumsetentaequatrocomeçouojogovinteesetequarentaequatro...
  __ Bica pro degas aqui...
  Duque não valia pois vinha de cara. Nem terno nem quadra. Só cartão cheio.
  __ Dezebodeoitentaecincotrintaedoisaquatrouxa...
  __ Sacode o saco...
  __ Canta a boa..
  __ TrêsidadedeCristodezopitoputaquepariu...
  __  Deu aqui...
  __  Aqui também..
  Pausa momentânea.
  __ Outra vez ,dotô. Tá cum ele hoje, né?
  __ Tirando de hoje é todo dia..
  O cantador recolhe os cartões. Confere.Copnfirma.Pergunta:
  __ Pedra maior?
  Entreolharam-se o doutor e o Negão. Depois para o montante.
  __ Eu tiro primeiro...
  Enfiou a mão no saco de uma vezada só e bateu com a pedra na mesa, barulho
  vencedor.
  __ Setenta e nove...
  Negão coçou a cabeça luzidia. Pitou o fumo fedorento. Baforou. Soltou fumaça
  pelas orelha, quando berrou:
  __ Oitenta...
  O doutor nem discutiu. O jogo tinha dessas coisas de louco. Virou-se pro Xico:
  __ Cadê a pinga?
  __ Entornou, dotô, vô buscá mais.
  E foi. Havia um buraco na parede que dava pro fundo do quintal. Puri encaminhou- 
  se até ele tropeçando e torrando, pisando calos. Desabotoou a barguilha, folgou o
  aperto. Por cima do buraco tava escrito que ¨num dianta balançá qui o úrtimo pin-
  go é da cueca ¨, por isso nem se deu ao trabalho. Retornou ao caixote, esticou as
  pernas, pagou a rodada, encheu o copo com a cerveja quente, bebeu de vez. Tor-
  nou a encher e pôs-se a esperar.
  __ Vamos gente que o tempo passa e a sorte vai embora.
  Bateram na porta o sinal combinado. Três toques leves, dois fortes, outro leve. A-
  briram. Entraram o Xico com a pinga e torresmo, o Corujão e um rapaz magro,
  rosto chupado.
  __ O dotô taí?
  __ Tô cá...
  __ É a véia, dotô... aquela dor de novo, o sinhô pricisa i lá...
  __  Agora num dá, tô começando a me esquentar...
  __  Mas dotô...
  O doutor mirou a mesa, o jogo pra começar. Tirou um maço de cigarros do bolso,
  rasgou pra fazer folha, receitou uns remédios, assinou embaixo, botou o CRM.
  __ Saão aquelas mesmas dores?
  __ Sim...
  __ Leva essa receita na farmácia, dá de duas em duas horas...
  __ Brigado, dotô.
  O Corujão apanhou os seus cartões. Jogava com o E2 e E3. Sentou-se num canto
  calado, perto do doutor. Dividiram o torresmo com a pinga e a coisa começou
  quente.
  __ Fimdejogosetenteecincodoismachadosempéolhaoviadotrezemeiadúziaqua-
  renta...
  __ ô Xico...
  __ Fala...
  __ Esse torresmo tá bom não... tá cum cheiro de churanha
  __ Intão tá mais do qui bão ...
  O Corujão resmungou qualquer coisa e o jogo recomeçou. Todo mundo tinha me-
  do dele. O homem era bravo, ignorante. Tinha morte nas costas. Mais de uma.
  __ Quinzedoisvintesessentaduzôto...
  __ Sacode esse saco...
  __ Ei, vamo manerá nus peido, gente...
  __ Puta merda, coopera aí gente, num tem ventilação aqui não...
  __ Ô Puri, manera sô...
  __ Vai pra merda...
  __ É isso mesmo, tá parecendo qui tem alguém borrado, aí...
  __ Desessetevinteecincooitotrintaetrês... quebra o galho, gente, tá fedendo pra
  burro... setentaeumoitentaenovetrinta... pô, assim vou parar de cantar.
  __ É o torresmo, bem qui falei...
  __ Torresmo nada, eu num tô sentindo nada e comi bastante...
  __ Deve ser alguma mistura aí, continue a cantar.
  __ Setentaecincoaetevintesete... ah, de novo...
  O Corujão enfiou a mão por baixo do paletó e troxe de lá um trabucão, trintaoitão,
  carga dupla. Todo mundo se apavorou. O cantador parou e ficou indeciso. Corujão
  puxou o cão do gatilho, mirou na testa do peidorreiro e ordenou:
  __ Ô pára de peidá ou morre...
  O doutor ficou amarelo, vermelho, azul, tuti-fruti. Respirou fundo três vezes e borrou
  a calça toda. 


  Observação: Do livro O Doido e Outras Maluquices - Robergom
 Edição: 1967