Insetos em teia singular
A casa era meio comprida, nem grande ou pequena, nem alta, nem baixa, com as águas do telhado velho em duas e opostas; caiada de branco, com amplos alpendres e janelas estreitas – que pareceriam seis possantes olhos em círculo, se abertas – e sem enfeites, senão um pé de ipê roxo num lado, no outro, uma roseira brava, feito brincos incongruentes em orelhas longe demais da face; estaria banhada do escuro mais escuro – o de antes do alvorecer – não fosse a lua ainda plena.
O homem veio pela estradinha reta da porteira ao terreiro, em madrugada rara, mesmo de equinócio; adentrou degraus e porta sentindo que encontraria um destino – mesmo sem saber direito como. Sonhara com a casa e o bicho tantas vezes que era como se os conhecesse. Viera sem vontade, sem coragem ou medo. Viera. Então, a simplicidade de estar ali – quase prazer – finalmente...
O monstro sabia que um homem viria. Era tempo de libertação, ciclo que se cumpriria se não tivesse escrúpulos, como não houve para ele. Não houvera perdão, também. Mas um ente mais poderoso e infinitamente cruel prometera alívio, e o monstro acreditava em jugo e objetividade. Da última vez a agonia fora intensa; não suportaria esconder-se novamente, indefinidamente esperando, esperando, se contendo no desvão por baixo do oratório. A percepção da ironia pregou um ricto à face sem cor, desfigurada de tristeza, ódio, dor.
Chegavam já as primeiras claridades do sol, trêmulas e frágeis, e às réstias do luar se misturaram; penetrando pelos fiapos de espaços entre paredes e madeiras e telhas, nas frestas das janelas e portas e caibros, formaram molduras, jogos de luz e altar para algumas sombras. “Preparando labirintos...”, imaginou o homem – e sorriu da própria fantasia. Na criatura, o ricto se desfez.
O interior da casa nada continha além do monstro e do homem – entre impávido e precavido – e muito mais quando pensava na casa com poder de deter o horror – e de forma a restringir e guiar, mantendo-o, consolando-o...
Na última curva do corredor, homem e monstro se depararam e tensamente se reconheceram. Mas a conversa foi rápida e tranquila: o homem tinha dúvidas, o monstro as esclareceu; o monstro tinha ilusões, o homem as dirimiu.
Findo o motivo de estar ali, o homem se foi, e a criatura, também... dissolvendo-se, se entranhando na argamassa, no cimento frio, nas linhas de aroeira, pelos tabiques de pau-marfim, subindo pela calha do fogão à lenha, soprando o resto de si mesma ao ar e ao sol, tornando-se prisma...
Para saber, o homem não tivera opção senão vir.
A criatura não sabia que tinha uma escolha – soube, ao fazê-la.
Mas na casa cujas janelas parecem olhos de aranha, um ser perverso sofreu uma derrota; pacientemente, aguarda outros passantes: os que sonham demais.