Caffe Bordeaux - Parte Final
Pénelope mudou-se para a minha casa três dias depois. Até arrumar as coisas em casa, levou mais dois dias.
- Ainda bem que a gente tá junto, Pê...
- Pois é... Digo, preciso te revelar uma coisa...
- Qual, me diz...
- Eu não me chamo Penélope.
- Peraí... será que eu fui enganado...- disse, meio exaltado.
- Calma Digo, eu vou te contar tudo...
- Vai, conta...
- Mas pra compreender tudo isso, acho melhor contar a minha história de vida... Eu nasci em Criciúma, com o nome de Suellen Franchitti. Minha família tinha dinheiro, era dona de mina de carvão. Pra mim grana não faltava. Até que veio o Plano Collor. Minha família perdeu tudo por causa daquele filho-da-puta. Daí eu me mudei pra Curitiba com os meus pais. Tinha oito anos. Tivemos que começar do zero. Meu pai abriu uma loja de ração na Barreirinha, onde a gente morava. Em três anos a gente conseguiu se estabilizar. Enquanto isso eu ia crescendo e me tornando uma menina linda. Daí, quando eu tinha 15 anos, conheci o Plínio, um cara rico lá de Prudentópolis...
- Seria o Plínio Kovalenko...
- Sim, Digo. Ele parecia ser um bom cara, com um bom coração. Nos apaixonamos e em seis meses, eu fugi de casa e fui com ele pra Prudentópolis. Mas quando eu cheguei lá, fiquei surpresa: ele era casado! E tinha duas filhas da minha idade! Sem ter o que fazer, eu tive que começar a me prostituir, porque o Plínio não fazia nada por mim. Quando ele foi eleito deputado, ele me levou de volta pra Curitiba, e me colocou lá no Caffe Bordeaux, adulterando a minha carteira de identidade, já que eu ainda era de menor.
Eu acompanhava a narrativa dela perplexo, ansioso.
- Daí ele me contou um segredo que eu só vou contar pra você.
- Vai, pode contar.
- Ele me contou que foi ele quem mandou matar o Armando Slaviero.
- Não acredito... Foi ele... Mas foi por causa do quê...
- Ele matou o Slaviero porque ele tinha prometido que ia trazer uma fábrica da Schincariol pra Prudentópolis, mas no final a fábrica foi parar em Irati. Daí o Plínio ficou puto e mandou matar ele.
- Eu não acredito, Pê... o Plínio não pode ficar impune... a gente tinha que fazer algum jeito dele ficar na cadeia por um bom tempo...
- Esquece isso, Digo, isso já passou, vamos viver a nossa vida...
No mês seguinte, nós abrimos a nossa lojinha de 1,99. Ela estava muito feliz, com a perspectiva de finalmente viver a sua vida em paz. A lojinha vendia razoavelmente bem, o movimento era bom. Parecia que finalmente vivíamos um bom momento. Um mês depois, veio a melhor notícia para nós dois: a Pê descobriu que estava grávida. Simplesmente a melhor notícia que poderíamos esperar.
Mas parece que a partir daí, as coisas começaram a conspirar mal. Todo dia, à noite, uma moto ficava vigiando nossa casa durante umas duas horas, e depois saía. Isso parecia meio estranho. Tentei anotar a placa, mas eu não consegui. Quando eu ia pegar o número, a moto fugia vorazmente rua afora.
Um dia, quando eu voltava da pizzaria, onde eu tinha pegado uma pizza pra nós comermos, vi a Pê chorando.
- O que é que aconeteceu...
- Digo, você não vai acreditar! – disse ela, ainda aos prantos.
- Vai, diga!
- Ligaram pra cá ameaçando a gente de morte!
- O quê!
- Isso mesmo... ameaçaram a gente de morte... se eu não voltar pro Caffe, eles matam a gente!
- Quem disse isso...
- Ele se identificou como Sombra. Deve ser algum capanga do Plínio.
- Pê, a gente tem que prestar queixa na delegacia, logo!
- É isso que a gente tinha que fazer... mas o homem deu até as onze e meia pra eu voltar pro Caffe Bordeaux
Eu não tinha pensado naquilo. O Plínio poderia muito bem matar a Pê por queima de arquivo, pois a polícia ainda estava investigando o assassinato do Slaviero. Eu tinha que tomar uma atitude o mais rápido possível. Daí veio uma idéia:
- Pê, eu tive uma idéia.
- Qual...
- Infelizmente vamos ter que fugir daqui. Prepara as malas, só vamos levar as nossas roupas. Vamos fugir pra um lugar onde o Plínio não possa nos achar.
- Mas qual...
- A chácara do meu pai, lá em Tamandaré. Lá eles não vão nos achar.
- Então, tá bom...
Tínhamos que ser rápidos. Em meia hora colocamos toda a nossa roupa e a maioria dos nossos pertences no nosso carro, um Kadett GSI 92. As 23h12, saímos de casa. Pegamos a São Salvador e fomos rumo a chácara do meu pai. A chácara era quase nos limites do município, quase lá em Tranqueira. Tínhamos muito chão pela frente. De repente, passamos pelo Rio Barigüi e adentramos em Almirante Tamandaré. Sinto que, de repente, um carro está perseguindo o nosso. Mas não dava para perceber, os faróis não estavam ligados. Só a minha intuição dizia. Na altura da favela, meu medo, minha intuição estava certa. O veículo acendeu os seus faróis, em luz baixa. Faróis de xenônio. Mais 400 metros e o primeiro susto. Um tiro acerta um dos retrovisores, do lado do passageiro. Suellen, em estado de choque, pede:
- Corre com esse carro!
Essa era a única opção. Engatei a Quarta e sentei o pé no acelerador, que aos poucos ia atingindo os 120km/h no ponteiro do velocímetro. Mas não adiantou. O carro detrás alcançou a nossa balada. Ficamos dois quilômetros na mesma balada. Na altura das primeiras chácaras, o velocímetro indicava o pior. O combustível estava no fim. Entrei numa rua a fim de despistar o carro. Não adiantou. E pior, a rua era sem saída. Tivemos que parar. Do meu retrovisor, vi dois homens saírem do carro, armados.
- Sai do carro agora! Senão é chumbo! – gritou um dos homens
Não tínhamos outra saída. Saímos.
- Ajoelha no chão! Os dois!
Ajoelhamos. Um dos homens pega um celular e disca para alguém. Naquela hora eu já sabia. Os homens eram do Plínio. “Quais são as ordens, patrão...”, diz o outro no celular. “Então tá bom. O serviço vai ser feito.”, e termina a ligação.
- O que é que o patrão mandou...
- Pisca, o patrão mandou fazer o serviço agora.
- Então, tá.
Um dos homens pega uma 9mm e coloca sob a nuca de Suellen. E atira. No momento do tiro, fechei os olhos. Era uma parte da minha vida, da minha alma indo embora. Não agüentei, e chorei. Mas um dos homens gritou:
- Por acaso você quer levar também! Então fica quieto! E entra no carro!
Entrei no carro chocado pela morte de Suellen e também por não saber o que aconteceria comigo. Será que eu ia ser executado... Não sabia. Em dez minutos chegamos perto de um colégio no Abranches. O colégio ficava do lado de uma igreja bem bonita. Estava tonto e com sono.
- O patrão pediu pra dar um fim nele ou não...
- Não, o patrão não pediu pra atirar nele, mas pediu outra coisa. – disse um dos bandidos.
- Qual...
- Pediu pra dar uma boa surra no moleque.
- Ah, tá. Podemos dar a surra aqui mesmo...
- Claro! E agora! – e esbravejou pra mim – desce do carro agora!
Num canteiro de grama, eles pediram pra me ajoelhar. E começaram a me espancar. Me espancaram até eu ficar inconsciente, até sair sangue. Quando eu acordei, vi que eu não estava mais perto da igreja. Estava numa ruazinha tranqüila, de um bairro pacato. Parecia ser o Taboão. Eles podiam ter me espancado, mas esqueceram de uma coisa: não pegaram o meu celular. Liguei imediatamente para o meu pai, que veio e me levou para um hospital. Lá ele me perdoa por tudo que ele tinha feito contra mim e chora pelo assassinato de Suellen. Ele sabia que Kovalenko tinha mandado matá-la, e tinha provas comprometedoras de que Plínio tinha mandado matar Kovalenko e muito mais. Além de assassinato, ele tinha denúncias de desvio de dinheiro público quando ele era vice-prefeito e lavagem de dinheiro, já que o dinheiro desviado tinha sido mandado para uma conta ilegal na Ilha Maurício, paraíso fiscal. Meu pai fez as denúncias num discurso na Assembléia duas semanas depois.
Nesse meio tempo, voltei para casa do meu pai. Daí descobriram que o assassino da Suellen era o mesmo de Armando Slaviero, e prenderam o cara. Plínio teve seu mandato cassado dois meses depois, e finalmente foi julgado pela justiça comum, onde pegou mais de 30 anos de prisão por assassinato, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e tráfico de drogas. A justiça brasileira concordou em extradita-lo para a França, onde ele atualmente está sendo julgado por pedofilia, tráfico de drogas e falsidade ideológica. Vi ele numa reportagem do Le Monde há poucos dias.
Mas eu jamais seria o mesmo. Até hoje eu não me recuperei do choque, da dor. Está sendo muito difícil, mas um dia eu vou me recuperar. Cedo ou tarde.