NOS TEMPOS DA DITADURA

— Eu tenho consciência de minha nulidade frente às manifestações públicas.

— Realmente. Nunca presenciei seu engajamento em nenhuma causa.

— Não acredito que todos que marcham estão em sintonia reivindicatória.

— A reivindicação coletiva é a melhor arma frente aos abusos praticados contra uma nação.

— Você acredita mesmo que numa passeata todos têm o mesmo ideal?

— Existem os oportunistas que usam o ato do protesto para proveito próprio. Mas, esses que praticam atos oscilatórios são insurgentes de facções duvidosas. Crer numa causa é manter a chama da esperança. Sem mudança inexiste o novo.

— você fez parte da luta armada contra a ditadura, certo?

— com muito orgulho.

— Além de caolho por uma explosão, ter se tornado coxo devido a inúmeras torturas e várias passagens pela polícia, qual foi seu ganho?

— Não se trata de benefício próprio. Naquele momento crucial, nós cuidamos para que a geração futura tivesse direitos respeitados. Conseguimos coibir a truculência que imperava na pátria.

— Então sonhava em ser um mártir?

— Aquele que defende sua pátria, não tem rosto nem nome.

— É justamente por isso que não questiono e tampouco gravito pelos meandros negros da política. Nada contesto.

— O ócio contestatório ceifa sonhos e poda a democracia.

— Não estou nem ai.

— Devo deduzir que você concorda com a roubalheira que impera em todas as esferas administrativas atualmente.

— Também não é por ai. Se pisar no meu calo, eu viro um bicho. Não suporto a idéia de ser ludibriado.

— O imposto que você paga está sendo subtraído e você não se importa com o fato?

— Não estão me roubando diretamente.

— Não? Sei que você gosta de viajar. Quando se depara com uma estrada em péssimas condições, a quem cabe a culpa.

— Oras, do governo.

— certamente existia uma verba para a manutenção da estrada, que foi desviada para outra obra que rende votos ou simplesmente inventaram uma licitação de araque e surrupiaram o dinheiro. E você ainda diz que não estão atacando o seu bolso.

— Se acha tão trágico o fato, posso pegar outra estrada e pronto.

— Solução simples. E os outros...

— Que se danem. Quando estou com contas atrasadas, ninguém chega com nenhuma moeda para me socorrer. Então porque eu deveria ser o defensor dos injustiçados? Não tenho vocação para ser um patriota falido.

— Você sempre foi individualista. Lembro que no colégio, ao término do ano letivo, jamais doava os livros que não mais usaria no ano subseqüente!

— Comprava—os com o meu dinheiro. Em se procedendo a isto, poderia e posso fazer o que quiser com meus pertences.

— Seu ceticismo não vislumbra nenhuma claridade.

— Quem precisa de luz é penumbra.

— Se você pudesse imaginar a brutalidade do AI 5?

— AI 5?

— falo do ato inconstitucional número cinco. Uma medida que os generais ditadores inventaram para legalizar suas atrocidades contra o povo brasileiro.

— Eu com isso!

— Uma nação é feita por homens desbravadores, depois, outros homens com caráter, lutam para instituir a democracia que é sinônima de pátria livre, com plena liberdade de expressão.

— Você articula com a corriqueira eloqüência dos salvadores da pátria. Mas acho que hoje no Brasil as pessoas vivem com dignidade.

— A cada dia o povo é subtraído e ludibriado com o engodo da bolsa família e outros artifícios. Na sobrevida que assola noventa e oito por cento dos brasileiros, a cada dia, são aporreados por migalhas que os induz ao caótico sedentarismo da mente.

— A pobreza prolifera por todo o mundo. Aqui não seria diferente.

— Se todos pensarmos assim, não haverá melhoria. Engolir o menosprezo dos mandatários, é o mesmo que imputar um chip de aquiescência e retroagir à escravatura.

— Você deveria ser canonizado ainda em vida. Quanto sentimento de justiça...Em vão.

— No dia em que os governantes abolirem a ganância, certamente o mundo ira respirar o ar da liberdade e a fome será erradicada.

— Não mexendo com meu bolso, estou de acordo.

— Sem a partilha, toda medida será inconsistente frente à voracidade que habita em rancorosos corações.

— Bom...Para mim está tarde, vou dormir. Mas, em algum ponto da conversa, num pequeno detalhe que não me lembro agora, dou a maior força.

— você é daqueles que dizem: “dou a maior força, se estiver caindo eu empurro”...?

Às dez horas da noite, as luzes do manicômio judicial de Brasília foram apagadas. Desfigurado, o último preso político brasileiro ainda encarcerado estava dopado e a cada dia era anestesiado pela pílula do conformismo e lhe imputavam o sedativo da aquiescência. Era um estorvo para os corruptos e condenado ao ostracismo. Sem nome, destituído de forças, com uma mente sem lembranças, estava perdido. Precisava encontrar o seu “eu” para tentar achar-se. Mordeu o próprio braço e deliciou se com o sangue jorrado. Olhou para o espelho, agora em penumbra e despediu se:

— Até amanhã.

— Amanhã não será um novo dia — respondeu o espelho.

Amarrou a corda no alto da grade que fechava a cela e apertou o nó envolto no pescoço; certamente iria suportar o peso do corpo.

Um roedor espiava a cena com desatenção. O país estava impregnado de ratos que usavam estranhos colarinhos brancos.

Paulo Izael
Enviado por Paulo Izael em 05/02/2007
Reeditado em 21/09/2021
Código do texto: T370467