Quatro Queijos

     Saiu do drive-thru da pizzaria com um sorriso matreiro: iria fazer uma surpresa ao maridão.
     Lecionava história, mas um blackout obrigou a diretora a liberar mais cedo os professores e alunos. Então teve a ideia: “vou chegar com uma deliciosa quatro queijos e um Cabernet  na mão”.
     Ela, que geralmente retornava do trabalho às onze da noite, chegaria às oito e o pegaria acordado, assistindo ao jornal. Então o surpreenderia com a pizza gigante e a garrafa de vinho. Os dois ririam muito, pegariam as fatias com queijos derretidos e morderiam os longos fios de mussarela, gorgonzola, provolone e parmesão, envolvendo com os lábios centímetro por centímetro até que as bocas se encontrassem em beijo ardente. Depois embriagados de alegria e tesão, fariam amor como há muito tempo não acontecia, quando ele a envolvia com seus braços peludos e possuía seu corpo sem pressa, sussurando ao seu ouvido declarações picantes...
     Ultimamente, ele andava tão cansado que os beijos migraram da boca para a testa e culminavam com um “boa-noite-querida-estou-exausto” ou uma variação disso. Mas ela compreendia e não cobrava. Sabia que as raras vezes em que ele a procurava e a rapidez com que chegava ao orgasmo, com um ganido seco e um solavanco de quadril, se devia à pressão no trabalho. A cobrança de metas  na empresa gerou um estresse cujo efeito se percebia há mais de um ano: dores de cabeça, azias, lombalgias e até mesmo uma variação de humor que repentinamente o fazia tratá-la com um sibilante Beatriz em vez da doçura do Bia. Ela sempre o chamava de Bem.
       Mas naquela noite tudo seria diferente, pois teriam tempo de se inebriarem com o cheiro afrodisíaco do orégano e das uvas. Estacionou o carro, sem acionar o alarme para não dar qualquer pista da sua presença. Subiu os degraus até o segundo andar, tirou as sandálias e abriu a porta do apartamento com a sutileza dos grandes arrombadores de cofre. A adrenalina da peraltice deixou-a mais excitada. Deixou a pizza e a o vinho sobre a mesa e, cuidadosamente, foi andando pé por pé pelo corredor até o quarto entreaberto de onde se podia ouvir um som indecifrável: “Deve ser a TV”, pensou. Mais perto, aguçou os ouvidos e entendeu claramente o significado dos sons: eram gemidos. Nem precisou que algum diabinho invisível a cutucasse com o tridente da dúvida: pela aresta, ela viu, no grande espelho penteadera, a cena que foi mais surpreendente do que a surpresa que queria fazer ao marido: as nádegas dele ondulando freneticamente entre duas pernas calçadas por uma par de saltos vermelhos.
     E embora o erotismo animalesco em sua frente emita ruídos de colchões, molas, ancas e gargantas, ela se tornou uma mulher catatônica. As pupilas contraídas e os ouvidos insensíveis. Como se seu corpo estivesse despencando em um precípio. Enquanto se deixava afundar cada vez mais no oco da escuridão, lembranças nebulosas tomavam formas fílmicas: seu dedo delicado recebendo a aliança dourada com as cursivas letras que formavam o nome Antônio... o buquê rubro envolvido pelo papel com garantias de amor eterno... os versos de Vinícius sempre espalhados pelos cômodos... 
     De repente caiu em Si.
     Intensa, pálida e convicta.

     E ela viu que, mesmo não sendo uma mulher que acreditasse no amor romântico, aos poucos foi se cardiometaforseando e se sucumbindo àquele homem que lhe jurava constantemente uma fidelidade monástica. Ela, uma professora de História, se via agora como uma criança imbecil que acreditou em fábulas, nas quais ela desempanhava o papel de burra. Mas agora vinha a Ironia e dizia “Fiat Luz” e graças a um blackout tudo se esclareceu, focando o holofote naquele ator cujo personagem foi exposto muito além das cortinas. Mas ela não ficaria chorando sozinha na platéia, pelo contrário, subiria ao palco e faria daquela história um stand-up comedy para dar boas risadas.       
     O insight brilhou justamente em meio as divagações teatrais: a vingança seria servida mais seca e intensa que o Sauvignon. 
     Lembrou-se do cafofo da esquina:  uma mistura de  vídeo-locadora,  lan house  e bar onde rapazes se reuniam em algazarra, fumaça e álcool. Dentre eles havia um burguesinho de academia e tatuagens que resmungava cantadas chulas toda vez que ela passava em frente à loja. Ela sempre se esforçava em o desprezar, não mais do que a forte ansiedade que lhe brotava no peito e a fazia caminhar em  passos rápidos, fugindo da imagem daquele jeans surrado e da camiseta branca que retinha bíceps e peitorais.
     Ela refez todo o trajeto do corredor à porta do apartamento. Porém, agora, em câmera lenta, em passos milimétricos de leoa que ronda a caça. Ofegante, com as pálpebras semicerradas desceu a rua desabotoando a blusa, aumentando o decote, expondo o colo moreno claro. Ergueu os braços sobre a nuca e liberou a cabeleira negra presa em rabo de cavalo. Balançou a cabeça e saiu galopando como potranca.
     O rapaz estava lá. Era o que mais gesticulava entre os outros jovens. Parecia que narrava um movimento de luta contra um rival  invisível enquanto os companheiros riam e vaiavam. Aparentava, no máximo, vinte e dois anos. Tinha todos os sinais de que seria o macho alfa do grupo. Os outros o observavam admirados e invejosos.  Ela se aproximou, afastou dois rapazes do círculo e parou, encarando-o. Abruptamente se fez silêncio, como se tivessem desligado uma tomada. Ela, então, esfregando os pequenos dedos entre o encontro dos seios que se apresentavam exuberantes, disse:
     - E aí, garanhão! Hoje é seu dia de sorte. Não quer brigar comigo no meu apartamento?
     Todos se entreolharam apalermados e depois se viraram para o líder. Ele fez um movimento rápido com a cabeça, despertando-se da surpresa:
     - Ei, tá falando sério, dona? Olha que eu vô, heim!
     - Seríssimo, garotão. Meu marido viajou. Vamos?
     E ele foi. Mais para garantir sua macheza diante dos outros colegas do bando do que pela tesão que sentiu, pois a oferta inesperada da fêmea o deixou desarmado.
     Os dois foram caminhando em silêncio. Aos poucos a brisa feromônica que exalava dela o foi despertando e, mal ela abriu a porta da sala, ele a agarrou sofregamente e a jogou no sofá. Depois lançou-se sobre ela beijando-a, engolindo-a, arrancando o sutiã com os dentes, rasgando a calcinha quase ao mesmo tempo em que abria o zíper e a possuía. Ela começou interpretando uma personagem cujo papel desconhecia, mas, em pouco tempo, encarnou o prazer que encenava e soltava gritos tão felinos que assustaram o marido e a mulher no quarto.
     O esposo e a amante apareceram pasmos. Ele vestindo a calça enquanto a outra retornava em pânico ao quarto e saia correndo do apartamento carregando algumas peças de roupa e os saltos na mão. O tatuado ao perceber a presença do outro, soltou um urro de pânico e orgasmo entre as pernas da mulher. Depois se levantou rapidamente, ajuntou os jeans e camiseta como as parreiras de uva em Adão e saiu gritando:
     - Tu é louca, mulher. Olha, véi, ela disse que você estava viajando...
     E a professora de História Helena se levantou, foi até a mesa, puxou a cadeira, abriu a garrafa de vinho, despejou um pouco na taça, sentiu o aroma movendo a bebida de cor intensa sob o nariz, provou um gole, disse "hummmm...." pegou uma fatia de pizza e falou:
     - Houve um blackout na escola. A diretora liberou todo mundo. Quis fazer uma surpresa a você. Trouxe uma garrafa de vinho e uma quatro queijos.
Aceita um pedaço?

Well Coelho
Enviado por Well Coelho em 30/05/2012
Reeditado em 02/06/2012
Código do texto: T3697101
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