Fizemos de seu corpo nosso alimento quando nos faltara salvação

O corpo de Henri jazia em um canto do meu quarto com os braços abertos e extremamente magro, a semelhanças com a imagem de Cristo não me deixavam nenhuma dúvida, ele havia sido crucificado. Eu não tive força pra ir até seu corpo e muito menos arranjei palavras para avisar Tia Ana que seu filho apareceu morto misteriosamente, mas nem sempre a falta de força e de palavras é suficiente para nos impedir de fazer o que nos é destinado, especialmente em tempos como estes.

Em baixo do corpo, seminu e ensangüentado havia um bilhete “um anjo me disse que se morresse como Cristo salvaria a todos, mas ao término do terceiro dia, o céu continuou nublado e tudo permaneceu como sempre”, ao meu grito Tia Ana e Beatriz entraram porta a dentro, com os olhos petrificados no corpo estendido no chão

Tia Ana era uma mulher pequena e morena, ela não derrubou nenhuma lágrima, nos seus olhos não se viam tristeza, apenas um leve pesar; em tempos como esses, um filho morto não representa nenhuma surpresa para uma mãe. Ela pegou-o em seus braços, beijou-lhe o rosto e cobriu com o meu lençol

-Vamos, vocês duas, me ajudem a carregá-lo até a despensa.Eu queria tanto enterra-lo no lugar que repousa meu marido e colocar flores em seu túmulo, mas meu Deus, em que pontos chegamos em que não se pode sair na rua nem para enterrar um filho morto?

Carregamos mudas o corpo; Beatriz chorava em silêncio. a morte perturbava a todas, embora nenhuma palavra parecia adequada para ser pronunciada.

Morávamos em um pequeno prédio abandonado, quer dizer que todos acreditavam estar abandonado, caso contrário seria impossível de se morar lá. Conosco moravam algumas poucas famílias e grupos de pessoas que de sua forma tentavam se abrigar e se alimentar. A cada dia era mais difícil encontrar comida, não havia muita coisa viva na cidade e corríamos muito risco ao sairmos escondidos pelas ruas, ademais, a vaca e as poucas galinhas que conseguíamos criar no quintal estavam cada dia mais magras. Tia Ana as vezes comentava que chegaria o dia em que teríamos que comer nossos mortos , o que me fazia questionar se já não era melhor começar a conservá-los desde já, mas obviamente, eu não questionei isso ao ver o corpo de Henri jogado no chão.

Nienhum de nós sabia exatamente o que ocorria em nossas terras, alguns padres diziam que era o apocalipse , outros que era apenas mais uma guerra entre tantas do nosso mundo, embora não se soubesse exatamente o que cada um dos lados queria ou se algum deles por nós lutavam, afinal, estar na guerra nunca significou estar em guerra, e independente de quem estivesse no poder a única coisa que nos interessava era sobreviver.

Graças a resposta mística ao nosso conflito e a grande quantidade de gente que conosco morava, os boatos da morte de Henri atraíram todo o prédio e até pessoas da rua ao nosso apartamento, acreditavam ser ele a reencarnação do salvador e queriam tocar seus braços e receber suas bênçãos. A nossa tragédia era a esperança de todos,b eijavamm e abraçavam sua face, lhe faziam pedidos, e havia os que queriam se benzer com seu sangue e arrancavam pedaços de sua carne para devorar como uma hóstia. Em todo o tempo de silencio após a morte de Henri, foi a primeira vez que vi Tia Ana sucumbir, ela se ajoelhou e gritou ao lado do filho morto

-Vocês são burros? Não há salvação,vocês na lêem? há apenas dor pra mim e vocês canibais de meu filho que nem enterrado poder ser

Ela pegou um machado e passou a deferir golpes no ar enquanto chorava, mas a ninguém isso comoveu, eles continuaram se debruçando e se matando por cima do morto.Já não era só a destruição do corpo que nos preocupava mas sim sermos descobertos diante do barulho que aquelas pessoas faziam, porém ao gritarmos isso pros visitantes ouvimos como resposta “ não temos porque se preocupar, os dias de salvação chegaram”. A multidão só se afastou quando Beatriz deu três tiros no ar e continuou mirando outros nas pessoas

Quanto tudo havia terminadoe o corpo parecia ainda mais destruído e sujo que já estava, um braço se encontrava fora do corpo e havia vários pedaços dele faltando, em silêncio ficamos nós sentadas em circulo ao seu redor

- Por que o meu quarto?Ele me amava, se ele quis ser crucificado ele queria que eu o visse assim?- desabafei as pequenas questões que me perturbavam a cabeça

- Cala boca, suas perguntas também devoram o corpo de meu filho. Saia logo daqui.

Ao passar pela porta, notei que havia ainda um intruso em nosso apartamento, era o Senhor Luís, possuía uns 70 anos, poucos dentes e queria fazer sexo comigo. Há quem dissesse que em períodos de guerra devemos ser caridosos uns com os outros e que negar os desejos de um velho era de grande egoísmo e não nego que muitas vezes cheguei a pensar nisso, porém a vontade que tive foi de cortar-lhe a garganta quando me fez um comentário obsceno, felizmente ele se retirou antes de eu deferir o golpe

Naquela noite, fui dar uma última olhada no corpo de Henri, ele também quisera fazer sexo comigo, ele me amara , e isso me devorava as entranhas e a mente e tudo que havia em mim que poderia ser devorado. “Por que eu não o amara também e me recusei a ser a sua Madalena? Por que o desamor me dói tanto?” Beijei-lhe a face três vezes e fui me deitar.

Na tarde seguinte ouvia-se sirene do outro lado do prédio, e um pavoroso sussurro nos alertava que bombas ou homens logo chegariam, o prédio gritava e por ele escorriam pessoas por todos os cantos possíveis, parecíamos um monte de rato, um monte de inseto.Ouvia-se tiros que não sabíamos se era dos nossos ou deles e enquanto isso ainda estávamos nós três sentadas no chão sem discutir o assunto

- Vamos mãe, chegou a hora de fugirmos também – disse Beatriz segurando a mão de Ana

-Eu vou ficar onde está o corpo do nosso filho

-O seu filho ta morto , sua filha , não

-Tanto faz, aqui dentro ou lá fora, sempre foi questão de tempo para morrermos

-Pense o que quiser, a mim, eles terão que olhar na cara antes de matar

-Não há face no seu rosto pra eles, mas você é jovem, pode sonhar com isso, dou-lhe a liberdade de escolher a morte que lhe convém.Agora vá

Beatriz não se despediu, e não quis nos olhar duas vezes , apenaa desceu as escadas correndo enquanto nós orávamos por dentro pra que nenhuma bala que ouvíamos se destinasse a ela, embora soubéssemos que sim

-Acho que eu irei fazer um bolo, temos restos de ovo, de farinha e de leite.Há anos que eu não como um.Você irá fazer o que?-Tia Ana me perguntou, com os olhos me fitando e um sorriso que não via a muitos anos nos lábios

De certo , eu mesmo não sabia, nunca fui brava como Beatriz e muito menos forte como Tia Ana, me levantei e esperei o bolo ficar pronto deitada ao lado de Henri após reescrever seu epitáfio colocado na cruz “ A morte não foi vã, os anjos que tem um diferente conceito de salvação”