No alto desta torre

Aqui estou eu, velho e doente, sentindo já o bafo gelado da morte no pescoço. Ouço lá embaixo o murmúrio do rio que corre largo por entre árvores e montanhas até o mar. Não o vejo levar os corpos dos últimos índios que habitaram estas terras e que pelas lanças e espadas de meus patrícios morreram sem socorro em suas águas, ontem mesmo, pela manhã. Atacados quando se banhavam... Homens, mulheres, velhos e crianças, todos nus, limpos, brilhando ao sol, em comunhão com a natureza, mãe sábia e generosa... Todos mortos.

Fecho a janela, estou muito cansado. Meu coração bate lento e descompassado. O tempo está bom. Céu nublado, vento frio e úmido, mas sem chuva.

Preparo-me para ver o mar pela última vez. Eu, que há sessenta anos entreguei minha vida a ele, percorrendo-o sem brasões, estandartes ou bandeiras, de costa a costa, com um único propósito: defender os índios – eu, que agora sinto a proximidade da morte, volto à sua imensidão para me entregar de novo, desta vez minha alma, obra finda, mas não concluída.

É que esta obra não é minha. Fui apenas um instrumento dela ou de algo muito maior, incomensurável. Fracassei? Não. De colônia em colônia lutei bravamente. Perdi a maioria das batalhas, mas Deus me manteve vivo para continuar com a espada firme em punho, defendendo as vidas desses pobres nativos, dos mais pacíficos aos mais bravios e terríveis, e também de seu habitat: as florestas, os rios... Era essa a minha missão, que eu cumpri, sobrevivendo a duras provações...

E aqui estou, no alto desta torre, neste pequeno quarto, escrevendo, revivendo o que vivi...

Se eu sobrevivi ao massacre de ontem, foi porque tive a ajuda destes nobres frades, que me trouxeram para cá às escondidas, arrastando-me para longe da fúria das tropas de Dom Lourenço. Não há o que lamentar. Foi o que tinha que ser.

Deixo este mundo com a consciência tranquila. Meus escritos serão publicados. Confiei esta tarefa hoje pela manhã a um noviço deste mosteiro, que se afeiçoou a mim, leu as cópias das cartas que enviei aos monarcas de Lisboa, Madri, Paris e Londres, denunciando a crueldade de seus súditos no ultramar, meus ensaios e relatos... Ele os publicará na Europa, talvez na Suíça, onde a perseguição dos inimigos desta causa é menor.

E já está bom. Afinal, sou apenas um viajante que, embora tenha viajado a vida toda por este vasto mundo, viajou e viveu pouco, muito pouco, possuindo só o que realmente importa – amor, coragem, compaixão, generosidade, humildade –, e nada do que é supérfluo e efêmero, a começar pelas honras e faustos das cortes, onde sempre recebi por meus atos e escritos nada mais que uma indiferença fria, quando não a perseguição, a violência.

Estou sozinho, sempre fui sozinho, eu comigo no mundo, cumprindo minha missão. Nunca me importei com isso. Trago sempre meus livros, amigos de longa data – Rabelais, Ariosto, Aristóteles, Heródoto, Voltaire... –, e a fé em Deus, que me acompanha sempre.

Estou só? Não, não estou só... Não morrerei só...

Elogios, honras, homenagens, reconhecimento? Isso não me importa. Como é bom sentir o pouco que sou no universo, o pouco que é meu deste vasto mundo de histórias milenares, e imaginar o que nunca, nunca terei do que ainda virá...

Abro de novo a janela e respiro o ar frio e úmido desta tarde prateada. O pequeno barco me aguarda lá embaixo, às margens do rio de sangue.

No alto desta torre, sinto o mar que me chama para a imensidão iluminada e escura, para o tempo, para tudo...

Para Deus.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 27/05/2012
Código do texto: T3690944
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