Pedra no sapato
Ela se lembrava dele todo ano, no dia de seu aniversário. Acompanhava mentalmente sua idade há muitos anos, toda uma vida, e pra quê? Era uma pedra no sapato aquela lembrança, inútil como fritar gelo. Nunca mais o vira, nunca mais se falaram, então por que ainda sentia a presença daquele fantasma anual?
Naquele ano não foi diferente: acordou pela manhã, olhou o céu de outono e lembrou-se da data. Sorriu, entre divertida e melancólica, e tentou adivinhar como ele estaria – mais velho, com menos cabelos, mais rugas... Ah, a pedra no sapato, um incômodo do qual ela queria (será que queria?) se livrar.
Caminhou olhando para o chão, que a luz deitada do outono a incomodava. Pisou nas folhas escutando o barulho que faziam, apenas para ter com que ocupar sua mente absorvida com aquela data. Já nem eram reminiscências, pois o tempo havia sido tão longo que desbotara todas as cores, mesmo as mais vivas. Agora era mais um hábito, um ritual, uma pedra no sapato à qual o calcanhar já se havia até acostumado.
De repente, olhando para os próprios pés enquanto se arrastava sobre a calçada com folhas por varrer, percebeu que não era bem uma pedra. Havia sim uma ferida não cicatrizada naquele calcanhar que tanto caminhara; mas a lembrança dele, ainda que apenas naquele dia, funcionava como um curativo. Na verdade, pensar nele era conscientizar-se de que havia um bandaid no calcanhar ferido: não podia esquecer-se já que estava grudado (corpo estranho ao pé), mas, ao mesmo tempo, protegia a pele machucada por tantos anos de distanciamento. A pedra já havia feito o estrago, agora o bandaid incômodo evitava a dor maior.
Aliviada por saber que amanhã àquela hora já haveria se esquecido dele e da ferida, conformou-se em passar o dia claudicando. E imaginou que, ao chegar à casa de noite, tiraria o sapato de salto alto, arrancaria fora o bandaid e, para comemorar a data, se embriagaria de uísque com guaraná.
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Este texto faz parte do Exercício Criativo (EC) "E o bandaid no calcanhar"
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