NOITE E DIA

Maria Luiza, ou Malú, para os familiares e amigos, não sabia o que estava procurando naquele local. Foi a convite de uma amiga e acabou gostando de ouvir aquelas palestras. Afinal era gente como ela, que passava pelas mesmas dúvidas, mesmas dificuldades e mesma vontade de procurar por respostas. Agradecia por ninguém a conhecer naquele lugar. Não estava com vontade de encontrar amigos ou conhecidos. Queria passar mesmo despercebida. Assim poderia analisar melhor o local sem que lhe cobrassem nada e também sem ter que se comprometer em dar alguma resposta por que estava ali. Apesar de seu porte sempre chamar a atenção por onde passava pois lembrava as mulheres do sul do Brasil, descendentes de italianas, de corpo mais para cheio do que magra, tanto que ela vivia de dieta para não engordar mais do que seus ossos largos já a faziam parecer um pouco acima do peso. Os longos cabelos negros e bastos caindo sobre os ombros. A pele rósea e olhos grandes e expressivos.

Mas, sem que Malú percebesse, havia alguém que já havia notado sua presença. Alguém que já lhe vira na empresa onde ela trabalhava e desejava saber porque uma mulher tão bonita, aparentemente tão bem sucedida profissional e socialmente tinha muitas vezes o rosto com expressões de profunda tristeza.

Este homem quase podia ler seus pensamentos e via que ela lutava para tentar ficar equilibrada mesmo sentindo-se perdida, sem saber para onde ir, ou onde iria chegar.

Seus sentidos lhe diziam que ela achava que o mundo lhe cobrava mais do que podia dar. Ele queria ajudá-la. Mas sabia que precisava ter cuidado para que ela não fugisse apressada como uma pássaro que voa ao sentir a aproximação de alguém. Queria lhe ajudar incondicionalmente. Este era Maurício.

Durante conversas com outros homens ele sempre era diferente, pois não falava das mulheres com o mesmo deboche ou contando vantagens de conquistas entre o sexo feminino. Sempre as tratava com respeito e extrema educação, o que o fazia destoar-se entre seus amigos. Maurício conseguiu um alto cargo na empresa onde trabalhava devido à sua integridade moral e ética, além de sua aguçada inteligência em vários campos do conhecimento humano. Era muito respeitado pelos colegas de trabalho que reconheciam sua superioridade apesar dele mesmo tratar a todos com humildade e consideração.

Assim, naquela noite, quando viu Malú na Fundação Homem Total, local onde mais gostava de estar, sentiu-se tomado de uma extrema felicidade. Uma agradável sensação de calor aqueceu-lhe o peito. Ele já havia tido vontade de se aproximar dela mas não sabia como.

Maurício já trabalhava voluntariamente na Fundação Homem Total há mais de 15 anos. Viera para a casa a convite de um amigo. Ele, que já buscava ajudar quem lhe batia à porta, encontrou ali a maneira ideal para sentir-se realmente útil, ajudando a melhorar a qualidade de vida daqueles que estavam mais próximos.

Os trabalhadores voluntários do local buscavam levar ao homem respostas aos conflitos vividos diariamente. Especialmente aos indivíduos mais carentes, que muitas vezes recebiam primeiro o pão para depois serem alimentados na alma.

Duas vezes por semana, estudiosos de várias atividades humanas eram convidados a dar palestras no local para oferecer conhecimentos e experiências para outras pessoas. As discussões decorriam sobre temas relacionados à saúde holística, adolescência, vícios, filosofia, metafísica, e vários assuntos sugeridos pelos freqüentadores da casa.

Maurício, por causa de sua experiência como administrador, sempre estava à frente dos trabalhos da casa. Ali, buscavam estar em harmonia para atender quem vinha à procura de consolo e apoio em todos os aspectos.

E ele sempre percebia com alegria os que viam à casa pela primeira vez. Fazia todo o esforço para que este que ali entrava saísse um pouco melhor. Ou por ter recebido um prato de comida para lhe aliviar a fome, ou por ouvir uma palavra de consolo num momento de tristeza. E foi neste estado de espírito que seus olhos caíram sobre Malú.

Não pode deixar de acompanhá-la com olhar. Era algo mais forte do que ele. Sentia-se totalmente atraído por aquela mulher. Viu quando ela entrou na livraria da casa onde os freqüentadores podiam pegar livros emprestados. Pensou que aquela seria sua melhor chance de aproximação e quando viu que ela estava em dúvida sobre qual exemplar levar ele logo se acercou dela e gentilmente sugeriu-lhe um título. Malú agradeceu a sugestão, mas não prestou muita atenção naquele homem que estava tão solícito ao seu lado. Pegou o livro, dirigiu-se ao bibliotecário e após a liberação da obra literária foi embora.

Maurício teve vontade de a seguir até a rua mas temeu que ela o julgasse inoportuno. E com um sentimento de perda a viu partir sem nem mesmo saber seu nome.

Em um domingo, Maurício resolveu ir almoçar em um aconchegante restaurante de um bairro próximo, o Recanto da Serra. Não tinha muito o costume de ir ali, mas algo fez com que se sentasse em uma mesa virada para a entrada do restaurante. Já havia pedido o seu prato quando vê Malú entrando pela porta. Seus olhos traziam uma melancolia de quem se vê inerte sem poder remediar algo que o aborrece. Como estava voltado para frente da porta de entrada podia ficar olhando para lá sem que percebessem que estava olhando diretamente para ela. Ela veio e se sentou duas mesas diante da sua, mas de costa para ele. Ouviu quando ela fez o pedido. Neste momento sua refeição chegou. Já estava quase no final e viu que ela quase não tocava no que havia pedido. Parece que esperava por alguém que não veio. Sentado em sua mesa Maurício procurava compreender o que ela estava pensando ou quem estaria esperando.

Ela se preparou para ir embora. Procurando ficar perto dela e fazer-se notar ele também levantou e foi até ela, pois era o único caminho da saída do restaurante. Ela levantou os olhos e deparou-se com os olhos de Maurício que a fitavam. Achou que o meio sorriso que ele lhe lançou era para cumprimentá-la talvez a confundindo com outra pessoa. Ela retribui o sorriso mais por educação e se afastou para lhe dar passagem e logo se esqueceu do fato, tão absorta estava em seus pensamentos. As contas do curso de pós-graduação, os cursos de aperfeiçoamento profissional, os gastos com a doença de câncer de mama da mãe e as inúmeras contas do mês estavam tirando-lhe o sono. Viera até aquele restaurante justamente para encontrar uma amiga que iria lhe emprestar uma quantia para que não precisasse cair em juros bancários ou de cartão de crédito. Mas a amiga não apareceu, apesar de tê-la esperado por duas horas. E Maurício foi embora sem que se falassem.

Mas o destino lhe guardava uma surpresa. A mando da empresa, Maurício necessitou executar um trabalho em outra cidade e quando já retornava para casa percebeu um carro parado na estrada. E qual não foi sua surpresa ao ver Malú em frente a ele, com o capô aberto, sem saber o que havia acontecido. Ela estava vindo de uma consultoria em Recursos Humanos para uma indústria de calçados em Franca. A rodovia estava deserta àquela hora e o celular havia descarregado, o que lhe impedia de pedir ajuda. Quando Maurício parou o carro próximo ao de Malú ela não o reconheceu. Um pouco temerosa sobre quem poderia ser, Malú procurou manter-se calma pois precisava de ajuda e talvez aquela seria sua chance. Malú olhou detidamente para aquele homem de semblante sereno e profundos olhos azuis que caminhava em sua direção e se perguntava de onde o conhecia. Apesar do esforço não conseguiu se lembrar.

“Você precisa de ajuda?” Quis saber Maurício.

Malú percebeu naquela voz uma sinceridade que há muito tempo não encontrava nas pessoas e sentiu-se mais segura. “Bem, eu não sei qual o problema e o meu celular está com a bateria descarregada. Preciso chamar a companhia de seguro.” Respondeu Malú.

Imediatamente Maurício pegou seu celular e o deu a Malú.

Malú fez as ligações necessárias e ficou sabendo que pela distância do local eles viriam consertar seu carro dentro de três horas.

“O jeito é esperar. Você já ajudou muito. Se quiser pode ir” Disse isso mas esperando francamente que aquele estranho que tanto lhe inspirava confiança ficasse. E foi com um sorriso que o ouviu dizer: “De maneira nenhuma eu lhe deixarei sozinha aqui. Esperarei junto com você!”

Já que teriam que esperar resolveram ir para o carro dele e se sentar. O rádio tocava uma velha canção do Beatles. Ele ficou sabendo que Malú era a filha mais nova de um casal de espanhóis que vieram para o Brasil na década de 60, o pai falecera havia três anos, vítima de um acidente de carro. Tinha mais dois irmãos que moravam e trabalhavam na Europa. A paixão pelo Brasil fez com que ela quisesse permanecer nesta terra de tantos contrastes. Atualmente não estava namorando ninguém. Já tivera alguns amores que não deram certo, mas nada que fosse muito marcante. Sem se impor barreiras Malú sentiu-se totalmente a vontade para descrever sua vida para aquele homem.

Quando Maurício disse-lhe que a tinha visto há um mês na Fundação Homem Total e no Restaurante Recanto da Serra ela então se lembrou porque ele lhe parecia familiar.

“Ah, então é de lá que eu te conheço! Nos encontramos na livraria!”.

“Isto mesmo, eu estava lá. Gostou do livro?” Malú disse que o leu duas vezes, pois nunca tinha se deparado com tal tema e achou extremamente interessante a forma como o autor esmiuça a existência humana na personagem Cecília, figura tão rica e intrigante.

Conversaram sobre outras obras e filmes preferidos. Riram de situações engraçadas que um e outro tinham presenciado na firma onde ambos trabalhavam, mas por se situarem em departamentos diferentes não tinham contato entre si. Quando os mecânicos chegaram os dois já pareciam velhos amigos. Após a verificação do problema, os mecânicos constaram que o carro deveria ser rebocado e levado até uma oficina para o conserto. Maurício prontamente ofereceu-se para levá-la em casa e assim fizeram. Ao deixá-la no prédio onde morava já haviam combinado de se encontrar na próxima semana para um jantar. Antes que eles se dessem conta já estavam com os preparativos do casamento, três meses após se conhecerem. Todos que deles se acercavam percebiam a maravilhosa harmonia que havia entre eles. As pessoas realmente reconheciam como um amava o outro. Havia uma corrente invisível que os unia. Havia admiração entre eles. Um estava sempre procurando mostrar e apontar as qualidades do outro. As pessoas se sentiam bem perto deles porque eles se sentiam bem um perto do outro e passavam para o redor aquela sensação agradável de pessoas que realmente se amam. Alguns amigos próximos costumavam dizer: “Quero ficar perto de vocês para “pegar” um pouco desta alegria também”. Isto os fazia rir e ficarem mais felizes ainda.

Malú passou a freqüentar a Fundação Homem Total e a fazer parte do grupo de colaboradores.

Dois anos depois o casal se preparava para a chegada de Clara que iria nascer na próxima semana. A felicidade do casal era completa. No dia marcado Malú vai para o hospital. Ansioso Maurício aguardava o nascimento da filha ao lado da mulher da sala de parto. Em dado momento ele começou a perceber uma movimentação estranha entre os médicos. A esposa, após dar a luz a uma criança saudável estava desfalecida. Os médicos tentavam reanimá-la. Tudo acontecia rápido demais e Maurício não podia acreditar que estava perdendo Malú, a sua Malú. Ele foi retirado da sala. Em poucos instantes tudo estava acabado. Ele sentia como se estivesse vivendo algo irreal. Ou que fosse real demais para que ele quisesse acreditar. Malú se fora e deixou Clara em seu lugar. Todos os profissionais foram se afastando pois já não havia mais nada a fazer. Malú já não mais respirava. Um forte pranto tomou conta do marido. Não queria se levantar dali. Não queria abandonar a mulher. Chamava-a e pedia que ela acordasse, que olhasse para ele. Ele não queria aceitar o fato. Malú só tinha 35 anos. Mas estava tudo acabado. Ainda não conseguia raciocinar sobre o que acontecia e a filha ainda lhe parecia um ser distante. Alguém veio, e com delicadeza, mas firmemente, afastou-o da esposa. Maurício estava sem saber o que fazer. Havia perdido aquela que mais amava. Que realmente preenchia sua existência. Não sentia nem mesmo vontade de ver a filha. Mas a insistência dos parentes próximos que estavam no hospital aguardando o nascimento, percebendo sua letargia, procuravam animá-lo lembrando-o da filha. Foi até ela. Ao se deparar com o rostinho inocente a lhe olhar não pode deixar de sentir uma imensa ternura e vontade de cuidar daquela criaturinha tão frágil que agora estava em seu caminho. Nunca sentiu tão perto a morte e o nascimento. Tão profundamente doloroso e tão estranhamente carente de afeto. Rosália, a mãe de Malú, achava injusto que a morte lhe poupasse mesmo estando com câncer e levasse a filha. Maria Luiza era seu nome de batismo. Mas todos a chamavam carinhosamente de Malú. Ganhara o apelido do irmão mais velho. Lembrava-se que quando os familiares a chamavam pelo nome completo ela respondia “Hum, lá vem bronca!”. Malú, sempre tão preocupada com sua saúde, estava agora sem o sopro da vida. Os irmãos também estavam lá e chorando se abraçaram todos. Tinham vindo presenciar o milagre da vida e se deparam com a decepção da morte. Esta visita que sempre nos pega desprevenidos, por mais que saibamos que ela virá.

O sol morno daquela tarde de inverno brasileira brilhava sobre o caixão que acaba de baixar à sepultura no cemitério da Aclimação, o bairro nobre onde residiam. Maurício recebia as condolências dos amigos que vinham para o último adeus. Ainda que acreditasse na vida após a morte não conseguia aceitar que a esposa tivesse que partir tão cedo. Apesar da dor do momento conseguiu fazer uma oração aos céus pela oportunidade de ter estado com uma pessoa tão maravilhosa como Malú nos últimos dois anos e três meses mais felizes de toda sua vida. Caminhando lentamente saiu do cemitério. Não queria estar com ninguém. Apenas com suas lembranças. Não havia como esquecer o rosto de Malú. Passava pelas pessoas e não conseguia prestar atenção em nada. Os acontecimentos à sua volta não faziam qualquer sentido. O trânsito barulhento da cidade de São Paulo, não conseguia lhe afetar. Andou por caminhos lotados de gente sem ver ninguém. Nem mesmo notou que as ruas estavam se tornando desertas devido ao avançado da hora. Já havia andado 10 horas, queria se cansar para não sofrer. Um assaltante acercou-se dele mas a tristeza que Maurício apresentava era tanta que o bandido o deixou seguir sem vontade de incomodá-lo. Maurício foi para casa quandojá estava quase amanhecendo. Sua mãe, Maria Tereza, uma senhora de um metro e sessenta, de quem havia herdado os olhos azuis, estava lá cuidando da pequena Clara. Ela já estava preocupada com o filho e sentiu-se aliviada ao ouvir o barulho da chave na fechadura da porta e vê-lo entrar. A sabedoria de seus 66 anos lhe mostrava que o filho sofria e que naquele momento nada podia fazer para abrandar este sentimento. Ele pegou a filha no colo, sentou junto à varanda da sala em uma cadeira de balanço de vime que Malú tanto gostava. A criança parecendo compreender que o pai precisava dela naquele momento, abandonou-se em seus braços olhando aquele rosto de barba por fazer depois fechou os olhos e dormiu. Maurício, em silêncio, deixou que a noite se despedisse. O sol apontava por trás dos prédios da capital. A noite de sua vida buscava agora em Clara a luz de um novo dia que chega.