Uma família do século XIX

Tertuliano Silva, nascido e morador da aldeia N.S.da Conceição, nas proximidades de Porto, em Portugal, trabalhava a terra, de onde ajudava a tirar o sustento de sua família. Como filho mais novo de uma família de 10 viventes, Tertuliano trabalhava duro, desde pequenino, seu pai, bastante exigente, administrava o serviço executado por ele e seus 7 irmãos com muito rigor, exigindo de cada um deles o cumprimento de tarefas, previamente, determinadas.

Já com 17 anos, cansado de trabalhar nas terras do pai, iniciou o namoro com uma camponesa da propriedade vizinha, Maria da Conceição, que logo se encantou com o gajo. Do namoro até o casamento foi aproximadamente um ano.

Tertuliano tinha idéias diferentes, sobre as quais seus irmãos comentavam, mas não acreditavam que ele as colocasse em prática. Mas Tertuliano era um desses portuguesinhos teimosos e determinados e não dava ouvidos aos comentários. Tinha combinado com Maria da Conceição que após o casamento emigrariam para o Brasil. Sobre isso conversava quando a visitava e tinha a oportunidade de ficarem a sós. Maria, apaixonada pelo namorado, sempre concordava. Ela, como Tertuliano, trabalhava na roça, acompanhando todos da família.

Haviam amigos e parentes já morando e estabelecidos no Brasil, de onde enviavam, esporadicamente, notícias sempre elogiando a terra fértil e comentando que o governo brasileiro lhes destinavam terras, que após certo tempo se tornavam proprietários.

Com esse sonho na cabeça, Tertuliano começou a juntar todos os tostões que podia e os escondia de todos em um lugar secreto. Sempre que podia, trabalhava para os vizinhos nos dias de folga e tudo que ganhava com o trabalho extra, guardava. Maria contribuía com o que era possível, cuidava do enxoval do casamento, coisas que levariam para a nova terra.

Depois de casados, Tertuliano e Maria da Conceição, com a cara e coragem, se despediram dos parentes e puseram os pés na estrada, rumo ao porto de embarque mais próximo. Caminharam muito até chegarem lá. Ali permaneceram mais alguns dias, amontoados com outros candidatos e emigrantes, até encontrarem um navio que os levaram, assim, como aos demais, partiram para o Brasil. Muitos dias, confinados, naquele navio, onde a maioria passava mal e não havia nem mesmo remédio à bordo, médico então era coisa que nem se cogitava. Muitos não conseguiram sobreviver às duras condições impostas pelo tratamento e acomodações inadequadas a uma viagem longa, na travessia do Atlântico. Alguns morreram e tiveram seus corpos sepultados no oceano. Mas Tertuliano permanecia sereno e cuidava de animar Maria da Conceição, sempre inventando histórias sobre a nova morada. Terra boa, fartura, brotava até ouro do chão. Lugar certo para se criar uma família com conforto, se tivessem sorte de chegarem vivos em terra.

Desembarcaram no porto do Rio de Janeiro em 1890 e logo foram sendo transportados em lombo de burros até as terras onde se encontravam seus parentes e conhecidos. Acabaram na divisa de Minas Gerais com o Estado do Rio de Janeiro e lá ergueram, no meio da mata um casebre de madeira e barro. Tertuliano não cansava, começava a trabalhar com o sol ainda por nascer e só parava quando este já tinha ido embora.

No início, faziam tudo no chão, até as camas feitas de palhas e folhas. Viviam como bichos no meio da mata. Maria da Conceição logo engravidou e Tertuliano não podia deixar que seu primeiro filho nascesse naquelas condições, tratou de construir um “girau” com forquilhas de árvores e varões tirados da mata. Assim teve sua primeira cama na terra nova. Daí para frente, tudo começou a progredir. A lavoura que começou já estava produzindo e conseguia alimentos além da caça e pesca. Alguns animais foram adquiridos em troca dos produtos da sua roça, até que o primeiro filho nasceu. Foi uma bênção para Tertuliano que dava pulos e gritava de alegria, como uma criança que ganhara um brinquedo novo. O filho só veio aumentar a sua garra e vontade de progredir. Quando José, seu primeiro filho completava 5 anos, já tinha uma irmã de 4 e outra de 3 anos. Com a família aumentando, Tertuliano trabalhava dobrado. Plantava, cuidava dos animais e progrediu. Marcou e registrou as terras que havia conquistado com seu trabalho e nela foi tirando, aos poucos e com muito trabalho sua riqueza. Rebanho aumentando, José já o ajudava a cuidar do gado e outras tarefas enquanto Maria da Conceição e Leocádia, a filha do meio preparavam as refeições cuidavam da casa e das criações do terreiro – galinhas, patos, porcos e outros bichos que criavam – alimentando-os e tomando conta para não serem devorados por bichos da mata.

Água havia bastante, o que era muito útil para o cultivo e o trato dos animais. Havia, próximo ao casebre uma bica, construída por Tertuliano, que despejava suas águas entre duas pedras enormes onde Maria da Conceição e Leocádia lavavam as roupas e os utensílios da cozinha. Progredindo sempre, Tertuliano ganhou o respeito dos vizinhos e logo aprendeu a negociar, trocando mercadorias, adquirindo cavalos e bois que acrescentavam ao seu rebanho. Tinha uma grande criação de porcos, e semanalmente matava um dos mais gordos, deixando por conta de Maria da Conceição e Leocádia, ajudadas pela pequena Mariazinha, a mais nova, encarregadas de fritarem as costelas e fabricarem as lingüiças que Tertuliano ia vender na Vila juntamente com os queijos, feitos por Maria, assim como os demais produtos de sua roça. De lá trazia sempre presentes para a mulher e para os filhos. Não esquecia do açúcar, pão e rosca seca para variar o menu. Assim ficavam alguns dias sem comerem a broa de fubá que Maria da Conceição assava no forno de barro erguido no quintal por Tertuliano.

Passa o tempo suas terras foram aumentando, sempre comprando um alqueire de um ou de outro, a lavoura cresceu e o rebanho também. A família, como dizia, já estava crescida. José o filho mais velho já com dezesseis anos, Leocádia com 15 e Mariazinha com 14 anos já pensavam e se casar e viver vida própria. Primeiro foi Leocádia, arranjou um matuto brasileiro, de nome Juvenal Silva que tinha umas terras na vizinhança. Juvenal era como Tertuliano, trabalhava duro e ainda solteiro já havia conseguido muita coisa. Já tinha uma casa de barro batido, um pequeno rebanho e uma boa roça que cuidava sozinho. Precisava de uma esposa, para criar uma família que o ajudasse no trabalho da lavoura. Como a portuguesinha Leocádia Tomazia, se engraçou pelo matuto, acabaram se casando e mudou de nome, agora era Leocádia Tomázia da Silva. E foi morar no rancho do Juvenal. Tertuliano perdeu uma boa ajudante no trabalho com os animais.

Em seguida foi José. Arranjou uma namorada e logo se casou, construiu ao lado da casa do pai uma igual para morar com a sua mulher, assim, Tertuliano não perdeu a ajuda do filho e ainda ganhou uma nora que trabalhava igual a filha que havia casado.

Leocádia se sentia muito só, pois seu marido, Juvenal, passava o dia todo na roça e só o via poucas vezes no dia, de manhã, quando lhe levava o almoço e à noitinha, quando em casa chegava tão cansado que mal lavava os pés já estava na cama procurando dormir para levantar cedinho. Já quase amanhecendo, levantavam e enquanto Leocádia fazia o café, Juvenal cuidava das criações, para logo após ganhar o trilho para a roça.

Essa era a vida dos dois. Criança mesmo que queriam, estava difícil, pois Juvenal quase não tinha tempo para essas coisas de fazer filho. Tão moído do trabalho que só queria dormir. Os aconchegos ficavam para o domingo, dia de descanso, assim demorou para Leocádia engravidar, Juvenal ficou radiante, enfim um par de braços para ajudá-lo no cultivo da terra.

Quando nasceu, o primeiro, ou melhor a primeira filha, Juvenal viu sua alegria se transformar em frustração. Mas pensando bem até que uma mão feminina podia ajudar sua esposa e até estava pensando em aumentar o rebanho e as criações.

O segundo, também mulher. Então se sentiu mais decepcionado. Só na terceira tentativa veio o primeiro filho homem ao qual deu o nome de Sebastião. Ficava ansioso, o filho demorava a crescer para ajudá-lo. Veio o segundo filho homem, chamou-o de Antônio e assim o terceiro, José. Já estava Juvenal todo animado e fazendo planos quando pela terceira vez se sentiu chateado seu sexto filho veio mulher, assim como a sétima, a oitava e a nona. Só na penúltima e última barrigada vieram os machos que ele tanto esperava. Mas logo achou que era muita boca para ser alimentada e aposentou o fazedor de menino.

A medida que os filhos iam crescendo, Juvenal ia tratando de arrumar alguma coisa para eles fazerem. Comprava mais gado, mais porcos, galinhas e patos. Até cabritos fez questão de comprar. Os animais de pequeno porte podiam ser cuidados pelas mulheres, enquanto os homens pegavam no pesado.

Com tanta gente trabalhando e Juvenal não dava moleza para ninguém, foram crescendo, evoluindo em tudo. Casar, não deixava. Com esse seu comportamento, foi aumentando as terras comprando outras propriedades trocou umas pequenas por outras maiores e chegou a ter muita terra, 11 filhos e alguns colonos que em suas terras moravam e o ajudavam.

Levando uma vida de trabalho duro, sem descanso, o coração não agüentou. Um dia, ao “apear” do cavalo, vindo do vilarejo, mal colocou os pés no chão, deu um grito e caiu. Foi um Deus nos acuda. Gente correndo em todas as direções. Não teve jeito. Juvenal foi enterrado no cemitério da Vila e a fazenda ou as fazendas, ficaram sob o comando da Dona Leocádia, mulher de fibra que procurava imitar o marido morto, principalmente, na disciplina e no trato com o trabalho. Seus filhos mais velhos ganharam funções de administradores. Cada qual com a sua obrigação bem definida, mas certo dia chegou na fazenda um tal de Dotor advogado que disse para ela que tinha que fazer um tal de inventário. Vinha ele de terno branco de brim, montado em uma mula fogosa e com ar de autoridade foi logo entrando e nem esperou ser convidado, Adentrou casa a dentro, chamando a viúva para conversar.

Dona Leocádia levou susto, pois o tal de advogado foi logo colocando medo nela. Tem que fazer, senão vem o governo vem aqui e toma tudo. Mas na sua ignorância começou a se coçar toda e suar e lamentar, pois ninguém, por aquelas bandas entendia de nada disso.

Pedindo explicações para o “dotorzinho empinado”.

-O que precisa fazer dotor? O qual respondeu logo:

-Dinheiro, Dona Leocádia, dinheiro. Hoje se gasta muito, pois a Lei é muito cara. Sabe como é tem o salário do Juiz, do Promotor, do Oficial de Justiça e do Advogado. Isso sem contar as custas do processo.

Processo? Mas o que é isso? Não é inventário? É e não é, D. Leocádia. O Tal de inventário é um processo. Tem que escrever um montão de papel, anotar os nomes e a idade dos herdeiros.

- Herdeiros? O que é isso, dotor?

- Herdeiros são os filhos, D. Leocádia. Cada filho tem direito a uma parte da herança deixada pelo falecido.

A cabeça da portuguesinha já estava tão cheia de nó que mais parecia linha de pipa sem carretel. Está bem, estou entendendo, mais ou menos, mas o meu falecido não deixou nenhum dinheiro. Aqui não tem dinheiro. Nunca tivemos.

Responde o advogado:

- Mas deixou bens.

- O que é esse tal de bens? Pergunta D. Leocádia, Entendendo menos do que já não havia entendido.

- É tudo que ele deixou. Terras, bois, vacas, cavalos, mulas, carros de bois e tudo o mais.

- Mas isso não é dinheiro. Responde.

Continua o advogado.

- Não é, mas tudo pode se transformar em dinheiro. É só vender.

- Mas quem vai ter dinheiro para comprar isso tudo? Pergunta.

- A gente arranja, há de ter alguém, responde o advogado.

- Mas se a gente vender tudo vai fazer inventário de que? Começa a ficar desconfiada, a fazendeira.

- Não há necessidade de vender tudo, D. Leocádia, vende-se uma parte a outra divide entre os herdeiros. Ah! Entendi. Aí não sobra nada.

- Não. Não é assim. A senhora fica com a metade de tudo que não for vendido e a outra metade é dividida entre os filhos.

- Entendi. Eu fico com a minha metade aqui e os meus filhos cada um vai embora com a sua parte. Mas o senhor está dividindo é a família não as terras.

- Não D. Leocádia, não é preciso dividir de verdade, fica só no papel. Pode continuar todo mundo junto do mesmo jeito, Não muda nada.

- Se é para ficar como está, por que o tal de inventário? Ah! Deixa pra lá, não vou entender mesmo.

- Mas é a Lei, Dona Leocádia. É preciso registrar, senão perde tudo.

Assim, o experto advogado arranja logo um comprador para ficar com uma das fazendas da portuguesa e o dinheiro foi indo embora. A cada dia chegava o advogado com o mesmo terno de brim branco montado na mesma mula.

- Oi D. Leocádia, o Juiz mandou buscar mais dinheiro.

- Já sabia e quanto é desta vez? Faziam os acertos, o advogado escrevia alguma coisa em um pedaço de papel e dava para ela guardar.

As idas e vindas do advogado só cessaram quando o dinheiro acabou.

Enfim, já bastante aborrecida e de posse daquele montão de documento, a viúva resolve vender a outra fazenda e se mudar. Vendeu, dividiu o dinheiro entre os filhos e com a sua parte comprou uma outra bem menor, para onde mudou. Os filhos receberam e gastaram seu dinheiro, da forma que acharam melhor. Uns casaram outros foram embora e os demais a acompanharam, foram morar na casa nova.

Não satisfeita, deu vontade ir morar na cidade, já que quase todos os filhos já tinham ido.

O filho mais velho fez uma proposta: Cuidaria da fazenda e dava a ela o suficiente para que se mantivesse na cidade. Assim foi feito.

Tempos passaram e de que forma, não sei, a fazenda da D. Leocádia foi vendida.

Quem vendeu e quem comprou, na época, ninguém ficou sabendo. Só que foi vendida.

D. Leocádia, continuou na cidade mais alguns anos até falecer com seus mais de 90 anos sem jamais ter tido qualquer tipo de doença.

Onde foi parar sua fazenda? Ninguém viu, ninguém sabe. Se viu ou se sabe, não contou para ninguém.

Neodo Ambrosio
Enviado por Neodo Ambrosio em 16/05/2012
Código do texto: T3670522
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