A MENINA E A CADELA VIRA-LATA

Para o amigo Maurício Fares

“Desse tamanho, não deve ter nem dez anos, e já bêbada, a essa hora da manhã”, disse uma senhora muito bem vestida, sapato alto, que passava naquele lugar, sob as marquises de um prédio na Avenida Guararapes; e quase cospe nela, tão enojada estava, e revoltada também com a situação, “é uma delinquente que vive roubando, malandrinha!”, e passa, virando o rosto para o outro lado.

Perto dela estava um homem, bem mais humilde nos trajes e na fala, mas baixando a cabeça em sinal de concordância, “deve ser mesmo”, e também se vai, indiferente ao que deixa para trás.

Muitos nem olhavam para ela, movimento grande naquela hora. Os passageiros dos ônibus olhavam, também com total desprezo, e teciam seus comentários sem olhar direito para quem estava ao seu lado. Que também concordava sem nem ter entendido o que fora dito pelo outro.

A vida na cidade ia seguindo seu rumo e a menina seguindo seu calvário, seu sofrimento. Gemia e se espremia, se enrolava em seu próprio corpo, como a se proteger; ou se entregar a um poder que ela não conhecia, talvez de sua mãe, quando ainda em sua barriga, talvez de um poder divino: que ela não tinha lembrança se existia.

O vômito saiu forte, “eita que a cachaça foi grande!”, gritou um gaiato, sem prender o olhar na menina. Alguns riram.

Quem se aproximou dela foi uma cadela vira-lata, talvez a conhecesse, lambeu sua boca, como se a reconhecendo, e comeu o vômito.

A menina parou.

A dor cedera, dera um tempo. Ou a derrubara, acabando com suas forças.

A cachorrinha se recostou a ela, que estava estirada, e ficou a lamber seu rosto. Grunhia, como se chorando; chorava, como se grunhisse, buscando acordá-la.

Dorme sobre o corpo da garota, quase, junto à sua barriga.

Dormiram.

Quase meio dia. O sol ainda não chegara lá.

Os passantes nem olhavam mais para ela.

A cena era tranquila, linda, não fora a dor, a sujeira, a fraqueza, o lugar, a criança na rua, a fome, a indiferença. A cena era linda.

A menina estirou as pernas.

A cachorra não se mexeu.

Sentiu que a cachorrinha estava ao seu lado, quase faz um gesto de alegria; em outra situação teria corrido, jogado alguma coisa para ela pegar, brincado com ela. Não teve nem forças para sorrir. Alisou sua barriga, muito vagamente, mão trêmula; sua mão foi lambida com alegria, o rabo balançando, batendo em suas pernas.

A cachorra despertou de vez.

A menina não abriu os olhos. Limpou sua boca, já limpa pelas lambidas da cadela, sim, se conheciam, menina e vira-lata. Ela a encontrou.

Esticou as pernas mais uma vez, como se atleta aquecendo-se, ou bailarina. Esse era seu sonho: ser bailarina para ajudar a família.

Nove anos.

Jeito de sete.

Tamanho de sete.

Dor de adulta. Sofrimento de gente grande.

Enquanto sofria, sabendo ser observada e desprezada por muitos que a pensavam bêbada, era uma desculpa, pensava em suas três irmãs mais jovens, como se adulta, pensando como ajudá-las.

Mãe não tem. A mãe sumiu há alguns anos, as crianças ficaram com uma tia que não tinha jeito de mãe, nem paciência de mãe, nem calor de mãe. Nem espaço, nem comida para tanta cria que não eram suas, “vou cuidar de minhas irmãs”, dizia ela do alto de sua inocência para a tia. E ouvia mil palavras, nenhuma de delicadeza.

“como estão minhas irmãs?” se perguntou em pensamento, enquanto sofria com uma forte dor abdominal, talvez uma comida estragada. O vômito expulsou o mal. Deve ter expulsado.

Ao seu lado, uma sacola com alguns objetos.

Ela abriu os olhos, estava mais corada, sorria timidamente para a cachorra, que a observava com cuidado, alisou sua cabeça, a beijou.

“vai passar a manhã toda aí?”, chega o guarda, vigilante do banco ao lado, Banco do Brasil, tanto dinheiro e as irmãs dela passando fome em casa. A cachorra latia e fugia, vira-lata que era, mas sem deixar a menina para trás.

Ela olha para o guarda mas não responde; não diz nenhum dos tantos palavrões que já aprendeu antes mesmo de começar a viver, ele merecia todos, levantou, pegou sua sacola e saiu, chamando a cadela; que a seguiu alegremente, estava fraca, olhar distante, talvez sentindo fome. Olhou dentro da sacola, pão, mortadela, um pacote de biscoito recheado, um refrigerante de um litro. Quase sorriu. Não estivesse fraca, teria sorrido; e saia pulando de alegria, doida para chegar ao barraco e ver as irmãs felizes a comer tudo.

Atravessou a Avenida Guararapes, pegou a Ponte Duarte Coelho, desceu à esquerda, na Rua da Aurora. Iria para os Coelhos, onde fica o barraco de sua tia.

Na frente do cinema São Luiz, na beira do rio, sentou novamente: a fraqueza, a febre. Deitou, a cachorra deitou a seu lado, parecia sofrer com ela, em um grunhido de dor.

Dormiu.

Apagou.

A cachorra latia com quem tentava se aproximar. Se aproximaram, vira-lata que era, fugiu, mas ficou a olhar, olhar a menina como se cuidando dela.

Sem se mexer. Sem sinal. Nenhum sinal de fôlego na irmã das crianças, como adulta pensava ela, cuidar da família. Como se mãe.

Recolheram a menina com sua sacola e levaram na ambulância, barulho grande de sirene na avenida Conde da Boa Vista, em direção ao Hospital da Restauração, para restaurar a vida da irmã das crianças, amiga da cachorra que ia correndo atrás, quase sendo atropelada.

INALDO TENÓRIO DE MOURA CAVALCANTI
Enviado por INALDO TENÓRIO DE MOURA CAVALCANTI em 13/05/2012
Reeditado em 05/10/2012
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