YAKINI. A LIBERDADE VEM NO VENTO

Salvador,Bahia. Primeira capital do Brasil, cidade- fortaleza, como determinou a Tomé de Souza o rei Dom João III. Bahia colonial. A primeira capital do Brasil, início do século XIX, na primeira capital do Brasil,Salvador, estado da Bahia. Já é noite, entre vinte e vinte e uma horas, só os passos das sentinelas guardando as ruas e as casas e lá embaixo, ao pé da ladeira, o passo cadenciado da negra ganhadeira, mercando com o seu canto próprio, o acaçá feito recentemente, ao seu canto, acorriam os negros e negras do serviço doméstico, a comprar-lhe acacá para o consumo próprio ou dos patrões. E lá ia a mulher, mercando,mercando,até que sua voz perdia-se no labirinto das ruas da velha província, permanecendo então o silêncio absoluto, quebrado de quando em vez, pelo anúncio das horas que fazia soar os sinos da bela catedral. Acabaram de soar onze badaladas, que anunciavam vinte e três horas naquela província bendita da terra de Santa Cruz, afora as onze badaladas que ainda ecoavam pelos ares, quase nada mais se ouvia, a não ser, vez por outra, o piar de uma coruja, que de quando em quando atravessava os ares, piar esse que já não mais atiçava atenção dos sentinelas, posto que, as aves, todos os dias faziam aquele mesmo trajeto,nem mais por acompanhar-lhes o vôo,fazia interesse ao já calejado sentinela. As ruas, desertas de movimento e gentes, a essas alturas, quando quase todos dormem, nas ruas a luz bruxuleante do lampião desenha as sombras, que rápidas, se esgueiram pelas esquinas, encontram-se, sussurram algo nos ouvidos, e desaparecem na mesma rapidez com que vêm. Não se deixam ver, todo cuidado era pouco. Surgem quando as sentinelas embriagadas de sono, deixam-se abater pelo cansaço e um cochilo mais longo lhes rouba o ânimo, deixando pender sobre o peito ou os ombros a cabeça, nesse momento, em que o sono mais intenso abate as sentinelas mais bravas e corajosas, quando são de longe observados, sem o saber, correm as sombras a trocarem sinais, levando bilhetes, passando recados, marcando encontros, voltando a esgueirar-se por entre portas, portões, cancelas, sumindo em becos e finalmente,com a rapidez de um raio ganhando o mundo, num abrir e fechar d'olhos já havia sumido o homem, que ninguém, ninguém sequer imaginara-lhe a presença, no deserto daquelas ruas,quando supunha-se, pelo adiantado da hora, todos já tivessem adormecido. A lei proibia o ajuntamento de negros nas ruas e esquinas, o medo de uma rebelião por parte dos senhores e polícia era constante ajuntavam-se as vezes, trocavam entre si rápidas palavras, os olhares trocavam códigos pré estabelecidos, no caminhar, mandavam recados que só os seus recebiam, que só entre eles eram entendidos. Aquela época já eram muitos os escravos, das mais diversas nações africanas, enquanto que em número menor eram os homens livres. Os castigos eram constantes. Muito se ouvia falar das revoltas ocorridas no interior do estado, nas fazendas, nas vilas, muitos temidos eram os quilombos,e entre os senhores, o receio de que nas terras da Bahia houvesse uma resistência como a que houve no quilombo de palmares, diante de medo tal, intensificaram-se as opressões, proibição de ajuntamentos, batuques de candomblé, jogos de capoeira, que se transgredida fosse a lei, causaria aos transgressores prisão e castigo, de preferência nos pelourinhos existentes tanto no interior do Estado, nas fazendas, quanto no centro da cidade, para que, ficassem expostos aqueles que desafiaram de alguma forma a lei e as regras para eles impostas, e servissem de exemplos a outros que pensassem em algum dia, desafiar o poder dos seus senhores. Marcelino, assim lhe chamaram quando chegou a esta terra, sem saber dizer palavra da língua falada por aqueles que lhe interpelavam, como não havia interação, ignoraram-lhe o nome que trazia de sua terra e resolveram, por decisão própria, chamar-lhe de Marcelino. No início um choque, uma surpresa jamais imaginada. Viera da costa d'África, refrescada pela brisa, viu os seus serem arrastados por homens para outros navios, durante o percurso viu a violência perpetrada através dos chicotes e castigos que visavam abafar os gritos, e as lágrimas, viu muitos dos seus tombarem e serem os seus corpos, lançados ao mar, viu as correntes a segurar-lhes os passos e conter-lhes os movimentos, nada traziam de seu, a não ser a roupa do corpo, nada traziam de seu, a não ser na cabeça, os seus orixás e a lembrança constante d'África, a povoar-lhes os sonhos e as saudades. Homem alto, quase dois metros,musculoso, tórax bem definido, olhos grandes, bons ouvidos, líder no seu país, capturado que fora, a pele negra, negra como o azeviche, negra como a noite mais negra da África, em cujo céu pendem as estrelas que mais brilham. Venderam-lhe ao comerciante de escravos português, homem de há muito conhecido no Porto, donde granjeou fortunas e inimigos com o comércio infame, não titubeava em separar pais de filhos, irmãos de irmãs, maridos de esposas, esposas de maridos, famílias inteiras eram separadas em nome do lucro que poderia advir-lhe de tais transações era o seu objetivo constante. Em dia de feira e de festas em que os escravos eram expostos aos olhos e mãos de quem os quisesse comprar, Marcelino fora comprado por um rico fazendeiro do Recôncavo baiano, para que, trabalhasse nas terras do seu senhor, produzindo-lhes riquezas sem nada ganhar em troca, a não ser, a perseguição do feitor,a humilhação do senhor, e as lapadas no pelourinho, quando vez por outra, insurgia-se contra a jornada intensa de trabalho; a trajetória de lá pra cá não foi brincadeira, e desde aquele momento em que teve que dar voltas e voltas para esquecer a África, não mais a tirou do pensamento. A travessia,os chicotes, as marcas deixadas no corpo, os que se foram antes de chegar a esta terra,os que tombaram durante a travessia, o porto de Salvador, a saudade incontida, as lágrimas, a pergunta que não calava:Para onde estou indo ?
               No Recôncavo baiano, terras férteis e ditosas para o bom cultivo da cana de açúcar, o ouro branco da Bahia, e os braços fortes de Marcelino e dos companheiros, não paravam de arar, plantar, colher, a vida dura de sol a sol, quando era verão, debaixo de chuva sem trégua,quando era inverno; levantavam-se antes de nascer o sol, de imediato, punham-se em filas, quando eram contados e recontados pelo capataz, para após, tomarem o café ralo e serem ordenados ao trabalho, donde só descansariam, ao por do sol. A custo, adaptou-se a vida que lhe era oferecida, mas, resistindo ainda, não parava de pensar na terra distante; nos amigos que por lá deixara, nas brincadeiras, nas corridas, nas apostas que faziam entre si para ver quem chegava primeiro, e ele era sempre o primeiro a chegar,seus companheiros deram-lhe o nome de Yakini, o vento que vem nos pés; nos aprendizados, único momento em que sentia um pouco de alegria,já não aguentava mais ver os companheiros de senzala nos castigos intensos e constantes, por pouco muito pouco, e na maioria das vezes, por nada. Em verdade, ansiava por dias melhores, distante daquela tortura diária; parou um para pensar, muitas vezes viu os companheiros serem terrivelmente castigados, chegando a morte. Não deixava de pensar nos seus tão distante e agora sem saber onde e como encontrá-los, seus filhos, como estariam ? Se vivos estivessem grandes já; sua esposa amada, como estaria ? Resistiram ? Vieram para o Brasil?.. relembrava sempre um dito constante dos mais velhos: Nunca se esqueçam das lições aprendidas na dor.
               Aos poucos foi entendendo a língua falada por aquela gente, foi conhecendo os caminhos daquelas terras, os seus segredos, os seus costumes, algumas vezes acompanhou o senhor de engenho nas suas viagens a vila, e naquelas oportunidades procurava mentalizar os caminhos, os sinais, os rios, as corredeiras, as fontes, procurava mentalmente construir uma rota de fugas. Nunca fora passivo diante dos maus tratos dos senhores, porém, era preciso conhecer o mundo em que vivia, um dia, seu companheiro mais próximo, fora levado ao suplício do pelourinho, por motivo banal, por e quando retornou mal podiam levantar-se; ao vê-lo passar, crispou os punhos, naquele momento, nada podia fazer para livrá-lo do castigo cruel, mas, os seus feitores não tardariam por esperar. No seu íntimo, ia engendrando caminhos de fugas, formas de liberdade. Era conhecido por falar pouco, muito pouco, mesmo depois de algum tempo, quando já se havia familiarizado com a língua e costumes locais, aprendera a ouvir, observar e a guardar na memória todos aqueles momentos. Um certo dia, depois da labuta no eito, ao por do sol, quando todos estavam recolhidos a senzala, e correntes ainda atavam-lhes os pés, Marcelino, deixou que todos dormissem; as luzes do lampião mais baixas, permitiram-lhe soltar as correntes, arrastar-se por entre os companheiros sem fazer zoadas, ganhar a porta de saída, surpreender o primeiro capataz que vigiava, derrubando-lhe com golpe certeiro, e, arrastando-se, foi ganhando terreno e derribou ao segundo e ao terceiro homem, ambos surpreendidos e sem tempo para reação. Marcelino ganhou o mundo, embrenhou-se pela mata adentro, correu, correu mais do que corria na terra mãe, parecia que tinha asas nos pés, mesmo em fuga, pode sentir de novo o vento passando pelo seu corpo, parecia que tinha asas no quando finalmente parou, já o dia era amanhecido, os pés descalços estavam feridos, os braços cortados pelos galhos das árvores, a roupa rasgada em trapos, e um frio, um frio imenso a castigar-lhe o corpo, procurou abrigo, uma chuva fina fustigava-lhe as carnes, procurou apurar os ouvidos, sabia que, na contagem matutina dos escravos,os feitores iriam dar por sua ausência, fazia-se necessário apagar as marcas deixadas na mata, ou ao menos, confundi-los, não tardava, estariam os feitores a caçá-lo como a um animal e ele não retornaria a condição de escravo, jamais. Aguçou mais ainda os ouvidos, tentou disfarçar suas pegadas, mesmo cansado, estava determinado a resistir. Ainda na madrugada, ao recobrar os sentidos os feitores saíram com archotes tentando alcançar Marcelino mata adentro, o que não foi possível, estavam a pé e dentro da escuridão, não conseguiriam ver muito além, retornaram para logo que clareasse seguirem mais organizados, embrenhando-se na mata, o negro não iria muito longe naquela escuridão, eles pouco sabiam que para quem vive na escravidão qualquer aragem de liberdade é coragem e fortaleza para conservá-la.Marcelino buscou apagar as marcas de sua passagem pela mata, os feitores e capitães do mato, experientes naquelas buscas, encontravam vestígios e pegadas de Marcelino, mais e mais se aproximavam, mais e mais Marcelino apurava os ouvidos e embrenhava-se no mato, não encontrava pouso, não lhe permitido o repouso, os feitores caçavam-lhe impiedosamente, cansado e mal alimentado, as forças começavam a fugir-lhe, aproveitava a noite para adquirir boa dianteira, e encostado a alguma árvore tirar um cochilo, durante o dia, corria e escondia-se o quanto lhe era possível, ao fim do quarto dia de fuga e busca, fora surpreendido por três homens negros, que o abraçaram, vendaram-lhe os olhos e o levaram a um quilombo da região. Lá chegando, fora lavado, alimentado, deram-lhe uma esteira de palha onde pudesse descansar,quando acordou, o líder do quilombo perguntou-lhe: – De onde vem ?
– Da África..
– Por que fugiu ?
– Não aguentava mais aquela situação...muita dor...
– Aqui vivemos juntos e lutando, para que, os homens e mulheres não sejam mais escravos,para que todos possamos ser tratados com a dignidade de pessoas que somos; queremos que não hajam mais homens e mulheres sendo torturados e mortos pela indignidade alheias...
– Eu também penso assim...
– O que sabe fazer?
– Muitas coisas aprendi na minha terra, outras tantas aprendi no eito, e outras mais posso aprender, se me ensinarem....
– O que sabe fazer melhor?
– Sei correr, nas savanas corria como ninguém, corria com o vento mais veloz, corríamos eu o vento....
– Qual o seu nome ?
– Aqui, me chamaram de João...
– Qual o seu nome ?
– Yakini, meu nome é Yakini
– Seja bem vindo Yakini, nas próximas luas libertaremos mais alguns dos nossos....prepare-se.
Os feitores e capitães do mato perderam-lhe as pegadas, de repente, na sua caçada, sem saber como, viram-se andando em círculos que lhes foi difícil sair, ao final, terminaram desistindo da empreitada e levando ao senhor de engenho, uma notícia má daquela busca, não restando outro recurso senão, oferecer nos jornais da capital, recompensa pelo negro fugitivo e redobrar a vigilância nas fazendas, pois, já tinha chegado a fazenda notícias de negros fugidos que libertavam os negros que se encontravam nas senzalas, levando-os para quilombos de difícil acesso onde sequer, nem as autoridades mais experientes sabiam localizar. A partir daquele dia, agregou-se aos homens e mulheres do quilombo, negros fugidos e libertos pelos fugitivos, e à noite, quando todos dormiam e poucos vigiavam, ele e os outros saíam e buscavam as fazendas e sítios onde pudessem tornar livres homens,mulheres e crianças. E assim passaram-se os dias e os meses, muitos foram os escravos libertos por Yakini e seus companheiros, muitas foram as correntes partidas. Organizavam-se em grupos de oito a dez homens, surpreendiam os capatazes, feitores e capitães do mato, Yakini distraía-os, imitava o som do vento nas árvores, sinalizando aos companheiros onde encontrava-se, confundindo os feitores, obrigando-os a lhe perseguirem, destacando-se pela sua rapidez e destreza com os pés, com as mãos, com o que tivesse próximo, enquanto que os seus companheiros quebravam as correntes, chamavam os cativos, para que os acompanhassem, penetravam na mata densa, sumindo na escuridão. Dessa forma, muitos e muitos foram libertos, levados para o quilombo, engrossando-lhe a população e espalhando o medo entre os Nas senzalas, o ruído das fugas e da liberdade chegavam em sussurros de expectativa e contentamento, a liberdade vem no vento, nos pés de Yakini. Dezenas e centenas foram libertos, grande era o prejuízo dos senhores de engenho, notícias constantes enviadas a província fizeram com que fosse determinada uma busca intensa aos aquilombados e arregimentados muitos capitães do mato, a preço de ouro, ficaram em campana, na região onde acreditavam estar próximo o quilombo, um desses dias de campana, viram dois homens que saíram de uma picada dentro da mata, vieram esses homens em busca de folhas medicinais para a cura de feridas, chás e unguentos. Foram presos pelos capitães do mato, obrigados a delatar os outros, a quem chamavam comparsas e a mostrarem a localização do quilombo, os negros então, ambos, preferiram a morte a ter que delatar os companheiros, foram levados para a província, onde julgados, foram condenados à pena capital. Como um rastilho de pólvora, a notícia da execução correu província adentro, Yakini e companheiros, sabedores do fato, acorreram à capital, disfarçados e separados entraram na praça, no dia marcado para a execução, já tinham seus planos; a praça onde fora erguido o patíbulo encontrava-se repleta de curiosos, os soldados a postos, os réus são apresentados, sobem as escadas que levam ao patíbulo, mãos amarradas às costas, cabeças baixas, nuvens plúmbeas cobrem o céu. Toda a cidade parece estar ali, esperando para ver aqueles homens serem executados servindo para os iguais, como um exemplo a não ser seguido. O uivar do vento é ouvido, não se sabe de onde. O carrasco põe-se em posição, todos os olhos se voltam para os condenados e seu algoz,os condenados que acostumados a esse uivar, ativam todos os sentidos, de tanto ouví-lo sabem que a liberdade vem no vento e está próxima, nesse instante um alarido irrompe no outro extremo da praça.