UM LUGAR

Como fosse um sonho, lembro-me:

Da capela onde meu avô fazia suas orações bem cedinho. Eu e meus primos e primas corríamos ao redor daquela capelinha que parecia de brinquedo. Ao lado da capela estava a casa do vovô Manoel e vovó Maria – vovó Lula, como ela era chamada carinhosamente pelos netos. A casa era de madeira, não lembro se era pintada. O assoalho era sempre limpinho, a cozinha era modesta, com um fogão de lenha sempre aceso, vovó mantinha-a sempre bem arrumada, o cheirinho de fumaça da lenha queimando, até hoje sinto. Lá tinha um quartinho, chamávamos o quartinho da vovó, ele estava sempre trancado, tínhamos muita curiosidade de saber o que havia dentro daquele quarto, diziam que era uma dispensa, para mim a curiosidade só aumentava, porque eu não sabia o que era uma dispensa...não lembro se algum dia entrei lá. Um dia vi a porta aberta, vovó estava lá dentro, mas fiquei com muito medo de me aproximar, perdi a oportunidade de ver o que tinha lá. Alguns de meus primos diziam que se agente olhasse pelo buraco da fechadura, o bicho lá de dentro furava nossos olhos. Havia pensado em fazer isso, mas não tentei. Levei muito tempo para esquecer aquele quartinho.

Alguns metros dali estava a “casa de farinha”, chamada também de cozinha do forno, era lá onde os adultos faziam a farinha e os deliciosos beijus com Castanha- do- Pará, os quais faziam parte do nosso café da manhã.

Um pouco mais afastado, estava a casa onde eu morava com meus pais e meus irmãos. Era grande, toda em madeira, assoalho alto, sem nenhuma pintura, sem móveis e pouco conforto...eu gostava dela...apreciava ficar debaixo do assoalho brincando com pedaços de madeiras e olhando os pintinhos correndo atrás da mãe galinha. Alguns metros dali estava o igarapé, onde mamãe lavava roupa e nós pulávamos na água animadamente. Às vezes ficávamos sentados vendo mamãe pescar. Falávamos baixinho para não afastarmos os peixes...ríamos felizes quando mamãe pegava um. Lembro certa vez, em uma dessa pescarias da mamãe, que ao puxar o peixe da água e jogá-lo ao chão, apareceu como num passe de mágica, um gavião faminto e com sua garra afiada agarrou o peixe. Mamãe pegou rapidamente um pedaço de madeira que estava ao seu lado e acertou o gavião...nesse dia levamos a pesca e a caça para casa.( não é história de pescador).

Nesse lugar, eu nasci e morei até meus 7 anos de idade. Era um lugar bonito, mas não sei porque, sentia algo místico ali, ouvi algumas pessoas falarem que lá de vez em quanto aparecia visagem*, penso que não sentia medo ou sentia? Meu avô fazia agente viajar nas histórias que contava. Eram tão reais que ficávamos cansados ao final da viagem imaginária. As histórias dos pretos (escravos), eram as mais divertidas, sempre tinham um final triste, porém, muito engraçado. Lembro de uma assim: O escravo avistou um barco ancorado no porto da fazenda onde trabalhava, e disse: - huje vu fugi, vu rubar o barco e amanhã já tu lunge da fazenda do miu sinhô. De madrugada o escravo correu para o barco, colocou para funcionar e sorriu dizendo: - livre, livre...surra nunca mais, trunco nunca mais e gargalhava. O barco funcionou a noite toda.. pó pó pó pó,pó,pó pó...Quando o dia vinha raiando o escravo escuta o galo cantar, e sorrir dizendo: - se eu já nun tú tão lunge, ia dizer que era o galo do miu sinhô. De repente chega o capataz da fazenda, entra no barco e arrasta o escravo do barco por baixo de chicotada. Ele assustado, não entendeu o que aconteceu. O barco continuava ancorado há,há,há...

Assim fui crescendo na rotina daquele lugar. Acompanhava mamãe nos trabalhos da roça, subia nas árvores, corria entre os pés de cafés carregados de frutinhas vermelhas. No início da noite sempre ouvia as histórias do vovô ou da vovó, da mamãe ou do papai, ou do meu tio Sabá...e nelas pegava carona para uma viagem além da imaginação. Através delas conheci o curupira, cobra Honorato, boto encantado, velha gulosa, Pedro Malazarte, Branca de Neve, Gata Borralheira, Mãe D’água... e tantos outros personagens que me ajudaram a crescer com alegria, e até hoje são presentes no meu lado infantil.

Tenho saudades das boas gargalhadas do vovô, das brincadeiras do tio Sabá, da paciência e carinho da vovó Marciana ( mãe da minha mãe, que sempre ia nos visitar), da correria ao redor da capela e pelo “caminho do porto”*...apostando corrida até o igarapé.

Foi nesse lugar, rodeada de atenção familiar, que vivi parte da minha infância...as lembranças falham, mas completam minha história.

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• Espécie de alma do outro mundo (alma penada) que invisivelmente tenta se comunicar com os vivos através de aparições..

• Estreito caminho que leva a um rio, igarapé, lago...