RETALHO BORDADO

Eras partida naquela noite. Eu, silêncio.

Teu vulto, recortado pela luz da porta, denotava segurança e altivez. A mala a teus pés, o ventre com nosso filho, o relógio batendo as oito horas.

Teus olhos serenos sobejavam razões.

Partias, pois.

Sobre as razões sonegadas, nem mesmo meus duendes puderam me socorrer. Ficaram perguntas jamais respondidas, que me fizeram viver anos atormentado na tentativa de sepultar uma relação sem atestado de óbito.

Espalhadas pela casa ficaram lembranças, gemidos, risos, ternuras, lágrimas, mentiras, agressões... estas coisas que fazem parte das relações. Tropeçava nelas todos os dias que se seguiram à partida. A relação estava morta, mas eu não conseguia sepultá-la.

A ausência de um motivo poderia ser a razão pela qual me sentia fadado a carregar aquela despedida pela eternidade. Mas havia mais. Havia alguma coisa que pulsava num canto qualquer da inconsciência e que me mantinha o dia todo conectado àqueles momentos vividos no portal da casa.

Seria a perda, o fracasso, a percepção de impotência, o medo da solidão, o abandono. Quem sabe um pouco de tudo isso. Ou quem sabe, nada disso.

Depois de uma das inúmeras noites mal dormidas, levantei decidido e montei o baú imaginário de depósito das coisas do passado. Reuni as lembranças, os gemidos, os risos, as ternuras, as lágrimas, as mentiras, as agressões e tudo o mais que fizera parte da relação e coloquei dentro do baú.

Por coerência de não conhecer as razões, nenhum nome ocorreu-me a dar-lhe. Passou a ser simplesmente o baú, colocado no sótão do arquivo morto, ao lado de outros baús contendo relações findas, devidamente identificados e definitivamente selados.

Um gesto formal e mágico que deveria me conceder a carta de alforria e me permitir retomar a vida do jeito que fosse, mas sem grades prisioneiras.

Tudo resolvido, liberto o coração, uma ponta de alívio e até uma perspectiva de felicidade, dirigi-me à escada do sótão e olhei o baú, pela última vez, como despedida definitiva.

Foi então que percebi um pequeno detalhe pendendo da parte superior do baú, logo abaixo da tampa. Gelei. Intuitivamente, gelei. Pensei em apagar a luz e descer a escada, fingindo nada ter percebido. Mas sabia que jamais teria paz se fizesse isso. Então, voltei.

Para fora do baú, ficara um retalho de tecido bordado com o nome do meu filho.

Nelson Eduardo Klafke
Enviado por Nelson Eduardo Klafke em 24/04/2012
Código do texto: T3631069
Classificação de conteúdo: seguro