O purgatório da bic escrita fina vermelha
E quem passasse por aquela alameda do cemitério, e me visse. ali com um ar de cão perdigueiro - na sombra de uma daquelas esculturas de anjo - em busca dos erros nos escritos que deixei em vida - então saberia que eu estava de partida para um destes purgatórios vernaculares.
Quando aqui começa a minha via crucis. Mandado que fui para o "Purgatorius Ignis ", onde medalhões dos tempos da "grammática analytica" assim me saudaram:- Você sairá daqui em condições de fazer parte da verdadeira renascença dos estudos philológicos no Brasil.
Bem, custou um pouco para desfazer o equivoco. Já que se tratava de um purgatório vernacular destinado àqueles que morreram na vigência da gramática do final do século XIX.
Por isso fui transferido para o purgatório mais próximo - dos redatores dos manuais da Apple, que ali purgavam o pecado de escrever aquilo que só "mac-maníacos" conseguiriam entender:
" Usufrua de todo o poder de quatro milhões de pixels brilhantes e de outros benefícios como Gigabit Ethernet, FireWire 800, outra porta Thunderbolt, três portas USB, uma câmera FaceTime HD. Com duas conexões rápidas‚ o cabo de energia MagSafe, e o cabo Thunderbolt‚ você tem tudo o que precisa em questão de segundos. "
Como, em vida, fui vítima de um destes manuais, e não o responsável por eles. Então este argumento fez os gestores do limbo literário de novo me transferirem para outro purgatório - desta vez para o desprezível purgatório dos escribas do marketing imobiliário:
"Venha morar no Condomínio Principado de Mônaco. Loft onde você desfrutará de Children Care - Closet, Deck Molhado, Fitness, Garage Band - Quadra de Squash, Sala de Home Theater, Espaço Zen - Cave de Vinho, Solarium, Espaço Le Gourmet - Lounge de festas, Personal Home, e Espaço Le Petit (área para crianças com brinquedoteca e sala de artes). E mais o inovador Espaço Le Jeunesse (área especial para adolescentes, com computadores e video-games), e um Beach Service (serviço de cadeiras e barracas de praia em frente ao condomínio) de primeira. "
E não é que estes redatores, vendilhões do idioma pátrio, mereciam mesmo passar um tempo ali de molho? Eles que não tinham vergonha de ainda pedir para os seus corretores de imóveis não usarem o linguajar deste material escrito, no trato direto com os clientes, porque poderiam procurar outra construtora. Momento em que dei uma pirateada numa tese de Martinho Lutero, para mostrar que os meus pecados em relação à língua eram outros:
"Inferno, Purgatório e Céu parecem ser tão diferentes, quanto de fato o são um do outro: o desespero completo, incompleto ou quase desespero e certeza. Parece que assim como no purgatório diminuem a angústia e o espanto, das almas, nelas também deve crescer e aumentar o amor."
E não era isso mesmo, pois precisava apenas crescer no amor ao idioma pátrio, sem precisar me tornar um professor Pasquale. Aceito meu recurso tratei logo de cair fora deste purgatório metido a besta. Quando minhas malas foram mandadas para o aprazível "purgatório café com leite".
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Um lugarzinho pitoresco onde mineiros e paulistas proseavam gostosamente. Defensores da proposta de se dizer as coisas escritas da mesma maneira como são faladas:
Ké Café?
Ké!
Pó Pô Pó?
Pó Pô.
Pó Pô Súca?
Pó Pô Pokin.
Mas como me arrepender dos meus erros gramaticais no meio dessa mineirada hilária?
Sem falar que a turma dos paulistas - do "um chops e dois pastel" - que só escrevia o português correto se fosse para justificar a escrita errada, como explica o escritor Alfredo Aquino:
" Neste linguajar repousa (inconscientemente ou não) uma espécie de senha revelada do cosmopolitismo paulistano, antídoto atávico e sofisticado contra o provincianismo que passa bem à distância da grande metrópole. Pois " um chops e dois pastel " é a esgrima rápida e acumpliciada de todas as idades, nos seus bares preferidos, desde os mais simples aos mais requintados. "
Bem, o problema ali foi encontrar a minha falecida esposa, revisora de livros didáticos, que agora era supervisora do lugar. Hora de novamente arrumar as malas e baldear-me para o purgatório dos modernistas de 22, morador que fui da Barra Funda.
Para ali encontrar aqueles que na primeira metade do século XX foram avessos às letras clássicas, empenhados apenas em promover a chamada "revolução de expressividade" .
Modernistas de 22 que agora se redimiam de todo aquele modernismo com a leitura de Virgílio, Horácio, Cícero, Camões, Vieira, Rui. Estudando também as lições do professor de gramática, José Lourenço de Oliveira, que assim criticava à herança literária modernista:
" Existe a expressão momentânea de quem fala e a expressividade meditada de quem escreve. Escrever é uma arte. Por isso uma obra de arte é obra de esforço e o linguajar do povo é obra do menor esforço, do nenhum esforço ". Embora para deixar o clima mais leve, no final ele contemporizasse: " Mas quem poderá prenunciar os caminhos da língua e os termos das tendências? ".
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Hora de sair à francesa do purgatório modernista e continuar meu giro batendo desta vez na porta do purgatório internetês:
Lugar que recebia aqueles que provocaram o desmoronamento da pontuação e acentuação, pelo uso da fonética, em detrimento da etimologia; restringindo caracteres, em desrespeito às normas gramaticais.
Pecadores vernaculares que antes escreviam no idioma do "miguxês".
Inventores ainda de programas de conversão de texto que geravam uma infinidades de acessos, e boa receita de propaganda para os donos de sites como o "Embriaguetor":responsável por usar a escrita para transformar a fala normal de uma pessoa na de um bêbado. Deturpação lucrativa do idioma, que gerava milhares de acessos para com isso atrair anúncios e verbas publicitárias do Detram, Confederação Nacional do Transporte, e até mesmo de uma empresa que oferecia um curso rápido de enfermagem.
Eles também os criadores do "Engripeitor" - programa que permite escrever com o sotaque de quem está gripado:
"Ainda fico irridada com o conbordamendo daz bezzoaz. Exizde muido breconceido e a baioria dão faz idéia do inferdo gue bibo ou be drada cobo louca de fado. Do endando, agora conzigo adodar oudra bozdura diande da bida. Beu abô baderdo dinha debrezzão. Beu abô maderno, cirroze hebádica. Ezdou fazendo um curzo de corde cozdura , brofizzão linda da binha abó!"
Neste caso uma menina manifestava ainda a sua revolta com o Hospital das Clinicas, cujo departamento de psiquiatria ofereceu vagas - para a participação de pacientes em um projeto de pesquisa para pessoas de ambos os sexos, de 18 a 35 anos - com suspeita de transtorno afetivo bipolar - mas que não tivessem passado por tratamento psiquiátrico, prévio, ou tivessem histórico de uso de drogas. Motivo do hospital ter recusado a menina como participante da pesquisa, quando agora com o vírus do "engripaitor" ela lastima a discriminação:
- Ora! metade dos bipolares já tiveram experiências com drogas, dizem as pesquisas. E depois tem os que, como Bil Clinton, fumaram mas não tragaram.
- E por qual razão não se pode pegar gente que já fez tratamento: querem um bipolar " virgem " em matéria de diagnóstico psiquiátrico?
Quer dizer...
Você podia até desconfiar de ser bipolar, mas não podia ter a certeza disso!
O "Engripeitor" um programa que gerava um leque de anúncios, para produtos farmacêuticos ligados a cada uma destas palavras - "gripe", "tosse seca", "dor de garganta" - sempre atraindo grandes anunciantes.
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E internetês que não parava por aí, pois neste purgatório havia ainda os conversores de texto para o miguchês arcaico e o neo miguchês. Ou que tal ainda aprender a escrever na língua do "Salinzator", que troca o c pelo g: "breziza gorrer bra vigar rigo!".
Eis que neste momento o despertador no criado do mudo tocou, para assim dar fim a este meu tour juntos aos purgatórios vernaculares. Quando nos instantes finais deste sonho ainda pude ler o que estava escrito numa placa, na sua entrada central:
" Os que morreram na graça e amizade dos imortais das letras, mas não estão completamente purificados dos erros gramaticais cometidos, então neste caso, embora tenham sua salvação vernacular garantida, mesmo assim passarão por uma purificação linguística, a fim de obter a santidade gramatical necessária para entrar na alegria do Céu dos Letrados "