''Anônimo'' - Baseado em Fernando Pessoa e seus heterônimos

O sol da manhã lá fora não era empecilho para o balançar das taças daqueles rapazes. Às 9h da manhã, com uma falsa lua ainda no céu, a Taverna de Zé Carneiro já estava a funcionar. As paredes de granito e as mesas de marfim estabeleciam o cenário para a discussão, onde o velho balcão junto aos bancos negros e rígidos servia de palco para a conversa de Alberto Caeiro e Ricardo Reis, regada ao mais tradicional vinho tinto de Lisboa.

A voz aveludada do médico Ricardo contestava o que jornal em suas mãos vos dizia.

- O homem a cada instante mutua-se em pedra; em ferro. Ganha forma dos prédios e portões de sua cidade! - diz.

Indignado, enquanto lia murmurava as palavras ‘’infâmia’’ e ‘’lamentável’’ entre um gole e outro do álcool naquela taça, que, apesar de já não manejá-la com tanto apreço, jamais perderia o equilíbrio. Ele ainda obtinha todo o controle sob sua pose.

Reis atribui esse domínio sob tudo o que possa vir entre o amor e morte, uma vez que teoriza que tudo tem fim na vida. E assim faz. Recusa paixões, autodisciplina-se, aceita o destino e não teme o morrer; pois pra ele, é o único certeiro fato de sua existência, de modo a não ter nada a perder. Inspirado na mitologia considera a vida como uma viagem onde o fim é inevitável e que a fluência dos fatos é o fator que determina o caminho a ser seguido.

As palavras rústicas de concordância de Alberto Caeiro dão suporte ao que Ricardo discursa. Louro, de estatura mediana e olhos azuis, Caeiro crê na natureza e escreve sobre ela. Poeta, vangloriado como ‘’Mestre Ingênuo’’ da literatura, se opõe à metafísica e busca uma vida singular e objetiva. Não se submete a nenhuma profissão.

- Mas o que é isto? – tomando das mãos de seu amigo o jornal – O que se passa nesse novo mundo? As mãos de um homem nunca poderão ser substituídas por outras de ferro, isso é delírio. Sejam realistas! – discute com o papel como se as pessoas das fotos pudessem o ouvir para obedecê-lo.

Eis que vindo da mesa ao lado, uma ideia contraditória surge. O magro e careca Álvaro Campos, que também optara pela bebida vermelha para tomar, expõe sua esporádica opinião:

- ‘’Ouço o equívoco vindo do meu lado. O futuro constrói-se hoje. Aquilo que os senhores chamam de gesso ao homem, trará facilidade à sua vida!’’

Surpreso com tal interferência, Alberto replica:

- Sua teoria é incapaz de suprir a realidade. O que se vê nas casas de família atualmente é um pai desiludido e uma mãe preocupada; enquanto seus filhos se criam carentes. Faça-me o favor, homem, considere a realidade antes de formular uma opinião. Facilidade não traz aquele belo sentimento de colher o que plantou. Tudo isso tem nome, e não felicidade, é acomodação!’’

Álvaro excede-se e traz à tona agumentos vazios. Arranja um banco ao balcão para sentar.

- Ora, ora, Alberto. Não me venhas falar sobre acomodação tendo em vista a vidinha medíocre que o senhor leva. Eu te conheço de outras manhãs nesta taverna e estou ciente de seu desemprego.

- Com toda licença meu senhor, trato meus problemas, a relação com os infortúnios da vida e com as pessoas com muita calmaria. Não pretendo brigar contigo e sim respeitar o estabelecimento do meu amigo Carneiro, pois tanto, não julgue os rumos que minha humilde vida toma, ela não vem em questão. – Alberto recua em tentativa de passividade.

Ricardo Reis fica por observar esta conversa paralela por alguns instantes, tomando do vinho, limpando a boca com o guardanapo de linho e observando o cantar dos cardeais atrás da janela de vidro maciço enquanto formula defesas, até o momento que decide debater.

- O que se ocorre hoje no mundo me entristece. Assistir a modernização dos equipamentos, a troca da forma de produção do que aquilo antes era feito com esmeros pelo talento e imaginação de um humano por produção de um mero instrumento industrial me faz perder o romantismo. A velocidade dos fatos me deixa exaltado e assustado. Mas, não temo o futuro. Só me encho de certeza da nostalgia que ele me trará. Sair por aí pra pensar e andar de forma despreocupada será difícil com tantos automóveis na rua. Mesmo assim, continuarei a buscar a intensidade da vida diante das novas condições do mundo fora à minha janela. Garçom, por favor, traga outra garrafa!

Alberto por um instante decepciona-se com a opinião conformista de seu amigo Ricardo.

- Poxa, amigo. Não sou a favor de sua fácil aceitação as mudanças deste mundo. Mas, na minha condição de fiel entendedor, só me resta extrair de seu olhar sobre o mundo a compreensão e aceitação. Até porque, minha linguagem jamais seria rebuscada o suficiente para contradizer-te e minha filosofia não existe. Sou contra o ato de. Pensar é estar doente dos olhos!

E este foi um estreito buraco aberto para que Álvaro pudesse abrir um riso acima de Alberto. O garçom retira-se.

- Isto me parece tão ridículo, só me resta rir de tal discussão. Sua omissão ultrapassa qualquer barreira da humildade e beira o cômico... Tragicômico, com total certeza! Não sela dissimulado, Alberto. Todos nós já estamos a par de sua tamanha falta de sinceridade. Não faça que a situação te torne vítima da zombaria.

- O único indivíduo que está se expondo ao ridículo nesta taverna é o senhor, Álvaro de Campos. Meu amigo em momento algum o desonrou, apenas estabeleceu sua posição em relação à conversa. – Ricardo sai em proteção ao amigo.

- Agora foi chegado o momento de recobrimentos e fuleiras retaguardas, isso deve mesmo estar se tornando um tribunal. Onde o réu injustiçado sou eu e a vitima carente de defesa é Alberto. – diverge Álvaro.

- Sei muito bem de que meu amigo é um homem formado pela vivência e é soberano. Não necessita de defesas. – impõe Ricardo.

- Opiniões divergentes nunca fora algo fácil de ser aceito pelos verdadeiros ignorantes. A minha falta de educação não me limita a fazer de uma conversa, civilizada. – adverte Alberto.

Os ponteiros do relógio caminham em tua circunferência, novas taças são servidas e as ideias cada vez mais se tornam irracionais e pouco palatáveis.

- Não me faça rir mais, não aguentaria ficar por muito tempo com as calças molhadas. Eu mesmo bêbado possuo linguagem mais rica que a tua! – diz Alberto em estado de alteração.

- Se dizes tanto sobre minha educação deficiente, porque não explanas sobre tua ineficiência em realizações? Diga-me o porquê da falta de acabamento em todas as suas obras. Ora, porque nunca acaba o que começas, já que é tão letrado e eficiente?

Um choro intimista desce ao rosto de Álvaro. Tímidas são as poucas palavras que consegue proferir. “Um supremíssimo cansaço. Íssimo, íssimo, íssimo. Cansaço…”.

Ricardo, em atitude de paz, pede a conta ao garçom.

O garçom, que desde os primórdios das falações as acompanha com desdém, traz contigo a quantia a ser paga e a conta moral a ser dada. Apresenta-se.

- Sou novo por essas tantas, tento daqui tirar sobrevivência e o sustento ao que sinto. Eu sinto as aflições de cada um de vocês, as ingiro e depois as regurgito sob o papel. Às vezes em forma de lágrima, outras de palavra. Palavras por tamanha sobrecarga, já não sei em que chão pisar e se ele poderá suportar minhas injúrias. Como poderia? A verdade é que minhas penitências quem deve sofrer sou eu, e que meus gritos vazios, espero que sejam ouvidos pelo mundo enquanto o mundo for alma e imaginação. Além das terras de Portugal, Brasil ou Vênus, onde há vida ou nada que o sentimento não possa criar. Onde a arte possa dar seu último respiro. Portanto, creiam nesta lei da intersecção que vos trouxe aqui, deve haver algum sentido. E dessas pessoas que me cercam a mente, espero um abraço enquanto há vida, enquanto for capaz de tomar um papel e pena em mãos. Eu escrevo o que tu sentes e não consegues dizer, além disso, o que nem eu mesmo sou capaz.

Prazer, Fernando António Nogueira Pessoa - estende a mãos aos seus três clientes -, este é meu primeiro dia como garçom na Taverna de Zé Carneiro.

Permaneço escondido.

Uma lágrima de emoção se mistura ao vinho na taça sob o balcão.

Lucas Mezz
Enviado por Lucas Mezz em 18/04/2012
Reeditado em 18/04/2012
Código do texto: T3620143