Ele ainda vem...

Dona Corina não saía daquela varanda há quarenta anos. Só não passou fome porque Josefina estava lá para lhe servir a comida. A casa não ficou imunda porque Josefina estava lá para limpar. As minhas roupas, as da minha irmã e a da própria Dona Corina só ficavam impecavelmente limpas e passadas porque tinha a Josefina.

Josefina era a nossa empregada. Uma negra forte do morro do Adeus, rosto redondo, mulher de um dos motoristas da empresa de ônibus para a qual o meu pai trabalhava como bilheteiro na rodoviária. Dona Corina era minha mãe. Casou-se aos vinte e cinco anos com o meu pai, que tinha a mesma idade. O marido de Josefina era amigo do meu pai e a indicou para trabalhar como empregada na nossa casa em Bonsucesso, onde a minha mãe morava.

Dez anos mais velha que Dona Corina, Josefina foi minha babá e da minha irmã. Até a minha primeira comunhão, Dona Corina brincava comigo, me levava para o centro da cidade aos sábados, para o catecismo e para o Parque Ari Barroso aos domingos de manhã. Ela fazia a minha merenda antes de ir para o trabalho e, mesmo cansada, quando chegava em casa, preparava o jantar da família. As outras tarefas eram feitas pela Josefina.

Josefina trabalhava de carteira assinada. Quando chegou a idade de Josefina se aposentar, ela preferiu continuar com a gente, porque minha mãe já não queria sair da varanda da entrada de casa há quinze anos. De nossa babá e empregada, Josefina passou a ser babá da minha mãe. Quando Josefina quase se aposentou, eu estava começando a trabalhar como publicitário. Há dez anos Josefina morreu e eu e minha irmã tivemos que contratar uma enfermeira, porque Dona Corina já não falava mais e nem conseguia comer sozinha. Entretanto, ouvia e enxergava como ninguém. Habilidades que o seu trauma desenvolveu.

O trauma que a minha mãe teve aborreceu a mim e a minha irmã. Dona Corina deixou de realizar a festa de quinze anos da minha irmã. Só houve porque a minha tia, já falecida, irmã da minha mãe, casada com um construtor rico, encarregou-se de organizar a festa. Mesmo assim, Dona Corina recusou-se a ir. Por causa disso, minha irmã ficou um ano sem falar com mamãe. Daí em diante foi uma seqüência de eventos familiares que a minha mãe deixou de ir para esperar o meu pai: jantar comemorativo de aprovação da minha irmã no vestibular, formatura da minha irmã em engenharia, minha aprovação, minha formatura, casamento da minha irmã, nascimento e batizado dos meus sobrinhos, meu casamento, nascimento e batizado das minhas filhas, primeira comunhão dos meus sobrinhos e das minhas filhas, formatura deles, velório e enterro de suas duas irmãs, funeral de Josefina e, mais recentemente, o funeral do seu cunhado e o batizado do primeiro neto da minha irmã.

Não fosse a minha tia rica, eu e a minha irmã não teríamos as festas de nossa adolescência e os nossos presentes de aniversário, Páscoa e Natal. Dona Corina, pelo menos, pedia para o meu tio comprar os presentes em seu nome. As festas de fim de ano eram passadas em nossa casa, mas sempre na varanda. Até depois que formamos as nossas famílias, continuamos passando na varanda, mesmo com os infernais tiroteios do Rio de Janeiro atual.

Em todas essas ocasiões especiais, eu tentava convencer a minha mãe, Dona Corina a levantar a bunda daquela cadeira de balanço e arredar o pé daquela varanda, mas ela sempre dizia que estava esperando pelo meu pai. Depois que eu cresci, que já tinha formado a minha própria família e já tinha me acostumado com a ausência do meu pai, eu sempre dizia:

— Mas, mãe! O meu pai foi embora. Não quer mais saber da gente! Ele já se casou com outra mulher! Já formou outra família.

— Mas ele ainda vem... Acreditava Dona Corina, com olhar distante, na volta do meu pai.

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Continua no livro Indecisos - Entre outros contos

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Gustavo do Carmo
Enviado por Gustavo do Carmo em 28/01/2007
Reeditado em 14/07/2008
Código do texto: T361494
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