Sinfonia de Silêncios

 
Abriu um olho, depois o outro. A luminosidade do ambiente irritou-lhe a visão tão desacostumada pelos dois meses em coma.
Aos poucos, habituou-se e pode divisar melhor o local: um hospital, indubitavelmente. Ao seu lado, a esposa sorria, ansiosa.
Sorriu de volta, sentia-se bem, sem nenhuma dor. Só um incômodo indefinível, algo fora do lugar. Demorou a descobrir o que era. De repente, a constatação: à sua volta reinava o silêncio. Absoluto, esmagador. Exames confirmaram a surdez.
Compositor e maestro, o pobre homem vivia para a música. Como prosseguir sem ela? Como suportar a ausência dos acordes, ritmos e timbres? Como existir, sem os sons cotidianos, suas fontes de inspiração? Aliás, inspiração para quê, se jamais poderia voltar a compor?
Da tristeza à revolta, desta à frustração e a mais tristeza, até que um amigo trouxe a notícia de uma professora que ensinava música a crianças surdas. Não hesitou em procurá-la. Foi recebido com festa pela velha senhora, professora de piano desde mocinha e fã ardorosa do maestro.
Discutiram apaixonadamente sobre o método dela e sobre a carreira já consolidada dele. Quando despediu-se, sentia-se renovado.
As aulas começaram logo. Usando cores e a vibração do piso para a marcação do ritmo, ela conseguia fazer as crianças cantarem, tocarem instrumentos e até comporem.
Ele logo dominou a técnica de sua mestra, aprimorando-a com seu conhecimento profissional e com a sua condição especial. O método de ensino desenvolvido por eles passou a ser conhecido como a Sinfonia de Silêncios. Embora para o público, a música se fizesse perfeitamente audível e tão bela e harmônica como a de qualquer outra orquestra, o silêncio das outras sensações é que se fazia “ouvir” pelos interpretes.
A orquestra dos meninos surdos tornou-se referência mundial. A metodologia da Sinfonia de Silêncios foi compartilhada em escolas para deficientes auditivos em todo o planeta e ganhou prêmios nos cinco continentes.
Ao retornar de uma dessas premiações, durante o vôo, o maestro sentiu, nos ouvidos, aquele desconforto característico da mudança da pressão atmosférica. Distraído, engoliu em seco para livrar-se dele. Imediatamente todos os sons da aeronave agrediram-lhe os tímpanos, com violência. Apertou a cabeça entre as mãos, gritando, horrorizado:
- Silêncio! Por favor! Silêncio!
Ao compreenderem o que estava acontecendo, conseguiram-lhe um protetor auricular e, do aeroporto, seguiram direto para o hospital.
Novos exames comprovaram o retorno da audição, agora supersensível, com a expectativa de normalização em breve.
De fato, após alguns dias, sua audição estava restabelecida e ele pode ouvir, pela primeira vez, sua orquestra de meninos surdos interpretando uma de suas composições, do período em que ele mesmo vivia mergulhado em silêncio.
Foi uma experiência patética. Os sons que acreditava ouvir, quando privado da audição eram infinitamente mais belos do que aqueles que ouvia. Culpou a inexperiência das crianças ou mesmo, suas limitações, e levou o trabalho à sua antiga orquestra, composta de músicos profissionais, todos com a audição perfeita e o resultado foi igualmente frustrante.
Voltou à prancheta, tentou rever a harmonia, os arranjos. Nada mudava, nada lhe trazia de volta as impressões que a música lhe causava quando era constituída de silêncios.
Por mais que as platéias o elogiassem e mesmo os críticos mais ferrenhos ao seu trabalho se rendessem extasiados à qualidade de sua composição, ela lhe parecia tacanha, sem cores, sem vibração.
Quando já cogitava em furar os tímpanos, quem veio ao seu socorro foi sua velha amiga e parceira da Sinfonia de Silêncios.
Em sua próxima interpretação, levou para o palco os recursos de cores e da vibração do piso. Ferramentas de trabalho, elas haviam se tornado elementos fundamentais para a sua sensibilidade, trazendo para a sua música, a riqueza dos outros sentidos.




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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Sinfonia de Silêncios
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