Rodeira de Sandália

- Vó! Judinha tá me batendo!

- Deixa disso! Solta ele, Judinha.

- Me solta...Vovó, vem aqui soltar ela...

- Ele que fica só me mordendo, vó!

Brigava o dia todo com ela. “Oh, meninos capeta”. Jogava água no rosto dele quando estava dormindo. Colocava água no seu café. Colava chiclete no dever de casa.

- Eu te odeio, Judinha!

E ela ria, como se ganhasse um presente.

- Odeia nada, Zico!

A vó reclamava:

- Vai brincar na rua. Fica só enfurnados dentro de casa.

- A gente pode ir na praça, então?

- Pode. Cuidado na hora de atravessar a rua. E volta logo. A comida já quase pronta

- Onde a senhora colocou minha bolsinha de dinheiro?

- Não sei, menina, vê lá nas suas coisas. Pára de me atrapalhar.

- Diacho! Vovó não tem paciência com nada.

- Sua mãe já está quase chegando, viu! Se demorar é com ela que você vai se acertar.

- Vamos logo!

- Sai pelos fundos. Não vai fazer piseiro na sala.

O dia bem quente, Janeiro era assim. Cigarras já gritavam no pátio do Colégio São Pedro. O céu azul, não via uma nuvem. Só uma sensação do espaço está se mexendo com calor do sol.

- Zico, sabia que no mundo tem mais pobre do que rico?

- Chata, só fala bobagem !

- Não falo!

- Vó disse.

- Ela falou que não me entende. É diferente.

- Então. Ela acha você burra!

- Não foi eu que repeti de ano.

- É porque eu faltava muito na escola. Só por isso.

- Bem feito, quem mandou não gostar de estudar.

- Eu gosto, só tenho medo da professora.

- Você ainda é muito bobo, nem parece menino

- Toma isso aqui !

- Não me belisque, seu nojento!

E os dois desciam a Rua Jacarandá. Um do lado do outro, falando de tudo que via. Encontrou o pai no bar da esquina.

- Volta!

- A gente só vai ali.

- Volta, agora!

- Só vamos comprar picolé...

- Onde é?

- No seu Isaac. Vovó deixou a gente ir.

- Tem que pedir é pra mim, entederam?

- Tá

- Vai, mas não demora.

O pai virava as costas. Os dois desciam em direção à feira. Estava de férias

E tudo parecia maior, sem preocupação. A rua era de pedra. Uma descida íngreme cheia de curvas. Em um dos lados, muitos comércios. No outro, casas simples, intercaladas com terrenos vazios, cercados de madeiras. A maioria envelhecidas e capengas. Na parte de baixo, pra passar o outro lado da cidade, uns troncos dos grandes, bem atravessando a barroca. Lá em baixo, água corrente. Mistura de esgoto e corredeira que vazava do açude de seu Miro Martelo.

- Consegue passar de olho fechado?

- Se você fizer isso eu vou contar pro meu pai.

- Medroso!

- Eu só não quero morrer. Viu a altura desse buraco?

- Zico é medroso! Zico é medroso! Zico é medroso!

- Se você continuar eu volto pra casa. E não vou com você.

Os dois andaram toda a Rua dos coqueiros sem se falar. Um perto do outro, sem se olhar. Bem perto da sorveteria, no começo da praça da bandeira.

- Zico, por que a vovó não me entende?

- Não sei.

- acha que falo diferente?

- Fala sim. Quer falar igual o Professor Gerson

- Não falo.

- Fala sim, quer ser inteligente igual ele.

- Mentiroso!

- Por isso que ela não te entende.

- Para de encostar em mim quando anda.

- Não estou fazendo isso.

- Atrapalha eu andar....

- Besta

- Quanto dinheiro ainda tem..

- Já acabou quase tudo.

- Não devia ter vendido a bicicleta.

- Não gostava mais dela.

- Foi Tio Tonho que deu

- Ah, ele já morreu mesmo.

- É pecado falar assim. Agora não tem bicleta e nem dinheiro.

- Bem que muitas vezes você encheu sua barriga.

Foi a primeira coisa de valor que Judinha ganhou. Aniversario de 8 anos. O tio que voltou de São Paulo que deu. Zico com raiva. Pra ele, um carrinho de madeira. Magoado, na época disse que não gostava mais do tio. “Ele só gosta dela.” Pensava!

- Depois o tio compra uma pra você!

- Não quero mais tio. Não quero.

- A sua vai ser da grande.

- Já disse que não quero.

- Abraça o tio.

- Não gosto de abraço!

Lembrou, mas escondia sua tristeza.

Morreu antes de Zico completar 10 anos. Zico triste. Sim. Chorou quando soube que nunca ia receber o prometido. Queria monark, vermelha igual a de Jean. Filho de Zazá retratista. “Nem sabe montar direito, andar de uma mão só. Apenas na rua de casa, com medo de se perder. A cidade nem é grande”:

- Tio Tonho era legal, Zico...

- Só pra você..

- Ele te deu um carro...

- De madeira. Quem quer. Rodeira de sadália?

- Vamos ver quem chega em seu Isaac primeiro?

- Eu não quero correr.

- Você tá pensando no tio?

- A gente só pensa nas pessoas que gosta da gente.

- Onde você aprendeu isso?

- Eu vi na televisão.

- Eu penso em muita gente que não gosto.

- Eu quero dois sorvete!

- O dinheiro só dá pra um.

- Você mente muito.