A Bicicletinha Branca
Quiseram os deuses que eu renascesse como uma bicicleta branca. Tomei consciência da minha existência no exato momento em que montaram minhas últimas peças: um par de rodinhas laterais para equilibrar ciclistas iniciantes. Eu tinha cheiro de tinta e borracha frescas. A minha manjedoura foi uma fábrica grande e bem iluminada, com muitas pessoas atarefadas correndo para cima e para baixo. Desejava falar um oi para os que passavam por mim mas não tinha boca. Só uma pequena campainha que funcionava com buzina e não era capaz de acioná-la sozinha. Porém, a minha estadia na fábrica foi breve, assim que saí da esteira de produção me enrolaram em um plástico transparente e me colocaram em uma caixa de papelão. No escuro, senti que me carregavam, levantavam, empilhavam, sacolejavam e me pareceu que fiz uma viagem eterna, pois quando me retiraram da caixa me vi em um lugar totalmente novo.
A loja oferecia brinquedos diversos nas prateleiras. Uma moça com uniforme azul passou uma flanela em mim e me colocou na vitrine, onde eu conseguia ver vários passantes. Acredito que era uma espécie de galpão cheio de lojas com horário de funcionamento, pois as pessoas paravam de passar uma determinada hora da noite e as luzes se apagavam. Nestas horas, eu me sentia muito só, porque não havia movimento algum exceto as rondas do vigia noturno e sua lanterna. Mas ele não me dava muita atenção. Contudo, o que eu gostava mesmo era dos finais de semana com crianças puxando os pais pela mão e apontando os dedinhos para mim. Algumas riam outras choravam, e os olhinhos sempre revelavam sonhos infantis. Já estava me acostumando àquela rotina quando fui vendida.
Tímida a princípio, a menininha de cabelos negros encaracolados só subiu em mim após os pais a incentivarem várias vezes. O pai precisou levantá-la e colocá-la sentada no selim. Eu parecia uma geringonça gigante do espaço perto da fragilidade da menina. Ela mal alcançava a ponta dos pezinhos no pedal quando ele ficava para baixo. Segui para uma nova morada, viajando na parte de trás de um carro. A menina não parava de me olhar e suspirar. Naquele final de semana, ela brincou comigo por muitas horas. Chorava sentida quando não conseguia fazer os movimentos que queria. Passaram-se dias até que ela perdesse o receio de andar sozinha, mesmo com as rodinhas laterais. Os seus pais me pareceram orgulhosos ao observarem ela aprender a pedalar, a fazer curvas, a frear. No começo segurava em meu guidão com tanta força que sentia suas mãozinhas delicadas encherem-se de pequenos calos. Fui me apegando aqueles momentos mágicos e passei a esperar ansiosa por eles. Quando não estava com ela ficava guardado na garagem e a via só de passagem, entrando e saindo do carro todos os dias usando rabo de cavalo, camiseta branca e mochila rosa.
Um dia o pai a ensinou a me lavar e senti suas mãos aquela manhã toda me esfregando com esponja e sabão, depois me enxaguando e me enxugando com um pano, para no fim eu estar toda limpa e ela imunda. Sempre, de tempos em tempos, com o pai ou sozinha, ela repetia metodicamente todo o processo de lavagem.
Como era de se esperar, uma hora chegou o grande dia. O pai apareceu com uma chave estrela e retirou as rodinhas de proteção. Depois, nos levou até uma praça aonde já estivéramos outras vezes. A garotinha parecia ansiosa. O pai segurou o guidão a equilibrando enquanto a mãe nos olhava à distância. Depois de um impulso ouvi o pai dizer que estava logo atrás dela, mas ele ficava cada vez mais longe. A menina só percebeu quando precisou fazer a curva e acabamos ambos no chão. Ela ganhou um machucado no joelho como lembrança e eu um quadro arranhado. Aquelas foram apenas as primeiras de muitas marcas. Acudida pelo pai, incentivada pela mãe, repetimos as tentativas até que, como em um passe de mágica, ela passou a ser amparada pelo próprio ar conseguindo equilibrar-se sozinha. Depois daquele dia a velocidade e a confiança da pequena aumentaram. Ela buzinava a campainha com felicidade e passou a andar com outras meninas e suas bicicletinhas. Eu amava ver os seus cabelos voarem ao vento e sentir ela terminar o dia toda suada e cansada de brincarmos juntos.
A garotinha já não era tão pequena, frágil e insegura como na primeira vez. Havia crescido e eu contribuíra de alguma forma. Ouvi os pais perguntando se ela não queria uma bicicleta maior já que eu estava ficando pequena para ela. Fiquei satisfeita quando ela disse não, que não me trocaria por nada, que eu era a eterna amiga dela. Mas já era assunto decidido. No próximo aniversário ela ganharia outra amiga e eu seria descartada. Provavelmente vendida ou doada de presente a algum parente que tivesse outra menininha. Naquele dia sentimos um aperto no coração, e saímos para a nossa despedida. Demos algumas voltas no quarteirão e quando voltávamos para casa o acidente aconteceu. Um carro desgovernado subiu em alta velocidade na calçada nos atingindo com brutalidade. Fomos jogadas longe. Eu, torta e quebrada, provavelmente sem possibilidade de conserto, olhava com dor a menininha caída ao meu lado, de olhar triste e vazio enquanto um fio vermelho escorria de sua boca. O motorista desceu visivelmente abalado. Havia bebido e se desesperou ao ver a menina. E eu me desesperei ainda mais ao ver que aquele motorista, que aquele assassino da menininha, na verdade era eu, antes de virar uma bicicletinha.