A Velha Vida. À Velha Vida

É noite de sábado.

- Me ajuda aqui a fechar uma mala!

Grita ela, lá do quarto.

- Estou ocupado.

Devolvo.

Estou no videogame. Sou um macaco jogando insetos na boca de um barril gigante e mau que quer me jogar num precipício. A cada inseto que acerto, ele arrota e se arrasta pra trás; pra outra ponta do precipício. A cada vez que erro, ele se arrasta pra frente.

A minha situação é parecida com a do jogo, só que os insetos são o amor que me impuseram goela abaixo com melindres, com cuidados, com atenção. Não me dei conta de que estava dando ré em direção ao abismo a cada gole.

Pauso o jogo e vou até lá. Ela está sentada sobre a mala, enquanto tenta fechar o zíper.

O quarto, aos poucos, vai ganhando uma aparência sombria, triste. A parede de fotos já não existe mais. Todos aqueles sorrisos congelados com praias e fazendas ao fundo estão dentro de uma das inúmeras caixas espalhadas pelo chão. Os livros empoeirados também.

Bem como a nossa história.

O que sobrou da nossa história está na minha mochila.

Porque ela não pode levar nada físico do que vivemos.

É sujeira.

Ela não diz que é, mas eu sei.

Eu sei que ela vai voltar à velha vida.

À vida que abandonou. Ao tédio que a botou em parafuso.

Às agruras, à comodidade. À velha vida.

A velha vida.

Essa é a nossa última noite juntos. Para todo o sempre a nossa última noite. Amanhã, logo cedo, o ônibus dela partirá daquela rodoviária nojenta do Tietê. Ajudarei com as malas.

É triste quando a vida da pessoa não dá certo, e você não pode fazer nada, e a sua segue no mesmo embalo. Você se acha independente e dono de si; se envolve com alguém, mas mantêm a unilateralidade do pensamento - mas só pensa que mantêm.

Você não sabe o quanto dói perder alguém que se ama de repente.

Sei que daqui a alguns meses ela jogará na minha cara que hoje eu não me manifestei, que eu não fiz nada para segurá-la, que eu fui frio, que eu não demonstrei todo o amor que eu alardeava sentir.

Vai jogar na minha cara que só se foi porque eu não soube segurá-la.

Ela não faz idéia de como estou por dentro...

A cada trombada que damos nos corredores do apartamento e nos abraçamos, eu sinto que algo está sendo destituído de mim para sempre.

A cada beijo que trocamos, eu penso: esse é o último.

Eu chorei ao final de todas as últimas transas.

Por que as pessoas ficam mais bonitas quando estamos prestes a perdê-las?

- Bom - ela diz - acho que terminei. Ufa!

Eu me resumo a dar meia-volta em direção aos meus macacos.

É manhã de domingo. E estamos suados.

A constatação de que são nossos derradeiros minutos nus, na horizontal, ouvindo o barulho da nossa respiração misto ao da avenida três andares abaixo, não me afeta tanto. Hoje. Porque amanhã, não sei não, viu?

Nosso último banho juntos.

Nosso último boquete debaixo do chuveiro.

Nosso último café da manhã minguado.

Nosso último etc, etc, etc.

Subimos a rua em direção ao Metrô.

É meu último dia morando num bairro bom.

Estou puxando uma mala pesada pra caralho, faz calor, e não estou muito contente com a última discussão que tivemos.

Sinto que essa mala que carrego é equivalente ao do peso nas costas que me verei livre dentro de uma ou duas horas.

Estamos na rodoviária. As malas já foram colocadas no bagageiro do ônibus. Estamos diante dele. As pessoas apresentam a passagem, ficam com o canhoto e sobem as escadas.

Estamos abraçados diante do ônibus, e o motorista, de lá de dentro, me olha.

Estamos abraços e ela está chorando.

Não sei se por mim ou se pela vida que não deu certo na bosta da São Paulo.

Ou pela velha vida que a espera na outra cidade.

Eu nunca sei quem fui nessa relação: se o traído ou o amante.

Pouco me importei, desde que obtivesse as calmarias pros meus desânimos no meio dos braços, no meio dos lábios, no meio dos seios e no meio das pernas daquela mulher.

Pra ela também era cômodo me ter e meter: eu não fazia perguntas. Eu pouco me importava. Isso doía quando ela queria - ah, elas adoram e sempre querem! - discutir e toda a minha eloqüência ficava no "tá, tá, tá".

Tudo ralo abaixo, finalizado com um abraço apressado por um motorista dando farol alto nos meus olhos marejados.

Depois de se desculpar, ela sobe os degraus.

Olho sua bunda pela última vez.

A porta é fechada e a ré é engatada.

A coisa é manobrada e eu não saio do lugar.

Não consigo.

Um espelho dentro de mim foi despedaçado e cada caquinho reflete a dor do outro caquinho e assim por diante ad infinitum.

É uma desgraça estar sentado no chão do trem voltando pra casa sozinho enquanto tudo desmorona por dentro.

É um sábado de sol, e o ser humano é o único animal que proíbe sacolas de plástico nos supermercados.

É o único que não sabe o que quer da vida.

O ser humano é o único animal que evolui; evolui das lides por sobrevivência ao redor dinossauros a lides por qual celular é o melhor do momento.

É um sábado de sol, e acentuo a ascensão da minha decadência bebendo conhaque vagabundo em copo americano num balcão de casa do norte com um jabá balançando rente ao meu nariz.

Com a mulher (que eu pensava ser) da minha vida a cada minuto mais perto do ex-atual-seilá-namorado douchebag.

06/04/2012 - 18h00m

Chris Wollard & the Ship Thieves - Oh Whatever

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 06/04/2012
Reeditado em 06/04/2012
Código do texto: T3598071
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