A BOIADA ENCANTADA
Sebastião andara pelo Juruá, na mão do padrinho, um senhor mulato, de coração grande. O padrinho se aventurara de Ponta de Pedras para o Amazonas, dizendo que voltaria depois que tivesse extraído das vacas leiteiras do Alto amazonas uma casa em Belém, uns juros no banco e o colégio do afilhado. Misteriosa linguagem do padrinho. Sebastião era nesse tempo um curumim entanguido, de joelho rajado, meio preto, meio cinzento e manso que nem um jacamim.
Seguiu o padrinho no rumo do Jaruá. Quantas vezes ouviu do padrinho: “Vou tirar leite das vacas”. Até então não tomara conhecimento daquelas vacas. Um dia, o padrinho retirou o curumim das paxiúbas da palhoça e o levou para ver as vacas. E andaram. O menino principiou a dar sinais de cansado. O padrinho reparou e, a bem dizer, ralhou: “Ora, mas se mal andamos? Tu não queres ver tirar o leite das minhas holandesas?” Andaram até que o padrinho tirou o carnaúba da cabeça, limpou o suor com a beira do chapéu, dizendo: ‘chagamos”. Aí o menino se admirou muito, sem contudo manifestar essa admiração. Olhava o chão coberto de folhas, para o céu fechado pelas folhas, os lados que a folhagem forrava e era só árvore, e tanta e quanta árvore! Uma altas, descascadas, como que sangravam mas um sangue branco e logo escuro. E por tudo uma escuridão verde chovendo das folhas e dos galhos. Mas onde estavam as vacas, que poder tinha o padrinho de ver vacas onde só havia árvores compridas, cortadas de cima para baixo, com tigelinhas grudadas no tronco?
O padrinho não explicou nada. Sentado no chão, mordido de mosquitos, orelha cheia do zumzum dos bichos, o menino via o padrinho com a machadinha golpeando a árvore, a aplicar a tigelinha no tronco, tal como viu, uma noite, a sua tia aplicar a ventosa na barriga de um velho que gemia. Teve uma interrogação muda: as árvores não sentiam dor com isso, não parecia doer? Aquelas vacas nem mugiam e os bezerros onde estavam? Foi esta a única pergunta maldosa que fez ao padrinho.