Tempo de vingança

JULHO DE 1973, INVERNO

BRAGANÇA

Bragança, pequena cidade do extremo sudoeste do Paraná, tinha em 1973 pouco mais de cinco mil habitantes. A maior parte da população morava na zona rural. A agricultura era a base da economia.

Embora com área urbanizada pequena, tinha uma vasta extensão territorial. A maior parte de sua área era plana, como imensas plantações.

Os anos setenta foram incrivelmente gelados naquela região. Especialmente em julho de 1973, quando os termômetros chegaram perto de 0 ºC. Nesta ocasião, a família Aires da Costa morava numa modesta casa de alvenaria, no interior do município.

O sítio era um pequeno paraíso. De um lado ficava uma grande reserva de floresta tropical. Do meio dela erigiam gigantescas perobas. Inhambugaçus piavam quando a noite descia pela encosta e ia entristecendo o horizonte. Todo o resto da propriedade era cercada por imensos campos de plantação.

Naquela feita o vento batia pela campina e uma onda verde se movimentava sobre o trigal, e a fraca luz solar que a acompanhava assemelhava-se a um balé. Todos os moradores da região gostavam muito de ver os trigais em cachos dando um espetáculo. A grande magia da vida campestre recaía sobre aquele pedaço de chão. Os Aires da Costa sabiam disso e agradeciam por aquele pedaço de chão imensamente privilegiado.

Rômulo Aires da Costa, o pai de família, era agricultor desde criança, e cultivava sua pequena propriedade rural herdada de seus pais.

Silvia Aires da Costa, sua esposa, era uma mulher alegre, trabalhadora e não deixava ninguém notar uma ponta sequer de tristeza em seu olhar. Não obstante as dificuldades que enfrentava, trazia na face alva um feliz sorriso que demonstrava uma felicidade cândida e inocente.

A casa em que moravam não era grande. Tinha sebe de todos os lados, menos um: a parte da frente; esta dava para um pequeno jardim de grama verde e rosas vermelhas.

Da rodovia saía uma pequena estrada cerca de dois quilômetros a dentro. O que se via até aonde a vista podia enxergar, quando se andava por aquele caminho, era plantação. Os campos de trigo formavam um imenso mar verde que doía o pensamento ao contemplá-lo. Quem olhava não tinha palavras para tamanha estupefação.

Quando se chegava da cidade, parava-se ao lado da casa, num pequeno barracão que servia de garagem e depósito. O teto de zinco e a paredes de madeira pintadas de marrom ajudavam a guardar o cheiro do lugar. Uma espécie de óleo com sossego.

Do galpão até a casa era coisa de trinta metros. Os dias de chuva, a terra grudenta e as queixas de Sílvia convenceram Rômulo a fazer um pequena passarela de cimento até a porta principal.

Não sendo grande, era por demais aconchegante: sala, cozinha, banheiro e três quartos. Lateralmente havia um cômodo construído, interligado a casa, era utilizado como dispensa, mas podia ser um escritório ou quarto, quanto fosse a necessidade.

Sílvia sabia da casa que tinha e dela guardava muito préstimo. Só que duma coisa ela não gostava muito. Era o frio insuportável...

- Ai, esse frio, meu Deus do céu. Nada me aquece. Eu tenho a impressão que um dia esse tempo gelado ainda vai comprimir ao ponto de eu deixar de existir. Meus músculos estão trincando de tanto segurar esse frio. Não sinto os meus pés - e assim ela procedia toda vez que, no inverno, era preciso lavar uma enorme quantidade de roupas.

- Deixa disso... - respondia Rômulo ou uma das filhas, quando ela se queixava. Ela não dava atenção à resposta e virava-se para frente, ajeitando os longos cabelos, para que eles não molhassem na água gélida que jazia no tanque de cimento.

***

Mas nem tudo era frio naquele inverno cinzento.

Foi no começo de julho de que nasceu Renato. Era o terceiro filho de Rômulo e Silvia. Eram pais de duas meninas: Sandra e Soraia. A primeira tinha sete anos; a segunda, cinco. O nascimento de Renato trouxe ao lar uma felicidade extrema, parecida com o calor do sol, que conforta a alma.

O terceiro filho não foi algo planejado. A bolha inflacionária que se instalava no final do período do "milagre econômico" trazia uma desconfiança quanto ao futuro. Mas a crise foi uma nuvem levada pelo vento quando o menino nasceu. Renovou a sensação mais pura que pode ocorrer na mente humana. Ter um filho é sentir-se como a vida fosse algo intangível e ao mesmo tempo plena em seus aspectos reais. Como se um grande vazio de sentidos fosse preenchido quando a criança chora pela primeira vez. Um sentimento único e substancial. Uma marca de ferro quente na parede do coração. Sentimento que molda a alma e nos torna essencialmente verdadeiros na relação de amor com filho que chega. Amor de pai e mãe era uma coisa que Rômulo não consegui definir.

Quando Renato nasceu, esses pensamentos foram comuns em sua mente Rômulo e as lágrimas desciam silenciosas pelo seu rosto quadrado; umedeciam a barba escura e grossa, quando ele chegava do trabalho e ficava parado em frente ao berço admirando seu filho recém-nascido.

***

A casa ficou cheia de gente tão logo Silvia e o menino recém-nascido chegaram da maternidade de Bragança. Presentes e mais presentes; visitas e mais visitas. E o frio continuava. Geava praticamente toda manhã. A parte mais baixa do sítio, próxima a um lago, onde Rômulo mantinha algumas vacas leiteiras, era coberta por um manto branco.

Dias houve em que uma pequena serração saía do chão e subia em direção a casa, num verdadeiro espetáculo. As meninas morriam de medo quando saíam para a escola. - Não dá para ver nada. Eu tenho medo... - dizia Soraia, enquanto o pai sorria a acenava quando elas rumavam para o ponto do ônibus que as levavam para a escola na cidade. Logo cedo a grama parecia um grande lençol branco estendido mansamente, cobrindo a terra roxa...

Foi um período muito feliz no seio daquela família. E isso podia ser notado por todos os visitantes. Tantos, que nem o frio os espantava. As bochechas de Renato eram vermelhas. Não se sabia se era pelo frio que não perdoava nem os pequenos, ou era por conta de tantos apertões que lhe davam... sempre seguidos de palavras como lindinho, docinho...

O vai e vem durou perto de duas semanas. Neste período a casa ficou cheia todos os dias. Vieram os parentes de Brasília, que ficaram impressionados com a robustez da criança e o frio insistente. Teve uma tia de Rômulo, dona Albertina, que precisou tomar um copo de leite e chocolate quase fervente para poder ser reaquecer. -Nunca mais volto aqui nesse frio - disse ela em tom de desabafo, enquanto soprava o leite numa caneca com o desenho em preto e branco. No final de tudo, sobraram apenas o Aires da Costa. Silvia recuperou-se rapidamente. A criança crescia saudável e tudo aos poucos ganhava ares de normalidade.

***

Depois de algumas semanas, tudo estava calmo outra vez.

- Vai chamar papai para o almoço - disse Silvia à filha mais velha, Sandra, que logo desceu pela escada da casa e andou alguns metros até poder avistá-lo e fazer um brado ecoar.

- Pai, o almoço está na mesa!!!!! Rômulo, olhando para casa, fez um aceno com o chapéu como se fosse um sim codificado entre eles.

No toca-discos disposto sobre uma pequena mesa em mogno ao lado da estante da sala, Rita Pavone cantava uma canção que fazia Silvia lembrar das histórias sobre a Itália, que sua avó contava quando era uma criança.

Silvia tinha uma beleza fora do comum. Não tinha luxo, mas a elegância sobressaía contra sua vontade. Gostava muito de vestidos; usava-os com freqüência e eles denunciavam seu garbo. Mesmo depois de ter sido mãe de três filhos, a beleza tratava-a com a afabilidade de sempre. Olhos esverdeantemente grandes; alta e esguia, com ombros magros, chamava a atenção. O pescoço comprido trazia sempre um cordão de ouro que ganhara de sua mãe anos antes, no qual sempre punha um pingente de algum santo de sua devoção.

Era bela e simples. Criava os filhos com doçura. Voz mansa e tranqüila, sem nunca se exasperar. Nem mesmo a teimosia imanente no espírito das crianças a exacerbava.

Rômulo agradecia muito por tê-la como esposa, pois dava ao lar que construíram uma moldura de perfeição. Às vezes, quando ele olhava para Silvia, sentia uma amor tão grande que subia do estômago uma gelada sensação que pensava ser o medo de perdê-la.

***

Rômulo nem sempre pensou assim. Logo que se casaram, ele tinha o hábito de sair com amigos para jogar cartas. Deixava-a em casa a mercê de seus medos pavorosos. Silvia, numa dessas noites sozinha, foi até a casa de uma vizinha, Dona Aparecida, devido ao medo que sentia. Quando Rômulo chegou e viu a casa vazia, seu coração congelou. Um instante de pensamentos atropelados; reviravoltas e tragédias se passaram na cabeça dele. Sentia um pavor tétrico. Amava Silvia como a si próprio ou mais. Não dera conta do mal que fazia nas noites que a deixava sozinha.

Aparecida conta que quando Rômulo chegou a sua casa tinha o rosto pálido como a geada que caía nos dias mais frios. Engolia as silabas das palavras quando tentava dizer que Silvia não estava em casa.

Quando a viu saindo por trás de Aparecida e lhe dirigindo um olhar desprotegido e cansado, Rômulo teve uma carga de emoções que o fez prometer para si mesmo de que nunca mais a deixaria só. E assim o fez. E ela nunca mais sentiu a dor da solidão.

*****

Quando Rômulo chegou para o almoço, Silvia acabava de por a mesa. Eram quatro pratos brancos, de vidro. A cozinha era pequena. Um armário azul de madeira e um grande espelho na parte superior fazia duplicar com o reflexo os copos de vidro que se enfileiravam. Eram postos de forma simétrica e por ordem de tamanhos que fazia um reflexo interessante no espelho.

- Hora do almoço! - disse Rômulo, enquanto pendurava o chapéu atrás da porta. Sua alegria era demasiadamente notada pelo largo sorriso que trazia na face. Ele era um agricultor por opção, pois tinha algum estudo, chegando a cursar dois anos de agronomia. Era muito respeitado entre os sitiantes da região. Entendida de política, juros do banco e até sobre questões jurídicas voltadas ao sistema agrário. Tinha no sindicato dos plantadores de soja da região o cargo de vice-presidente. Mesmo sendo sua lavoura modesta e como poucos alqueires de plantação, sua inteligência e articulação o faziam importante perante os demais agricultores. Era um respeito inato que os demais nutriam por ele. O respeito e a admiração era algo que condizia com sua personalidade.

- Claro que sim - respondeu Silvia, diminuindo a chama do fogão que fervia o leite para o recém-nascido. Ela passou a parte do braço e a costa da mão sobre a cabeça e depois a levou até o avental, franzindo a testa...

- Que foi meu bem? - pergunto Rômulo, vendo-a com ar de preocupada.

- Não foi nada.

- Como nada, se você está com aquela cara de quem tem alguma coisa errada, ou como dizem, está com a pulga atrás da orelha.

Silvia pensou consigo mesmo sobre tudo que a preocupava, mas achou por bem não dizer nada. Ele não entenderia mesmo e diria tratar-se de coisas de sua cabeça. A verdade é que ela se preocupava com a ideologia que o sindicato, do qual o marido fazia parte, era defensor.

Ela temia que com o avanço da ditadura naquele ano de 1973 e todas as coisas que saíam nos jornais da época, seria plausível que o governo militar não visse com bons olhos as manifestações do marido. E o pior, pudesse achá-las comunistas ao ponto de tomar alguma atitude contra ele.

Rômulo nunca falou diretamente à mulher sobre as ações do sindicato. Era uma instituição com muitos associados, e estes não estavam contentes com o governo. Era uma questão econômica na sua aparência, mas era política na essência.

O que preocupava Silvia foi uma reunião ocorrida há uns quinze dias antes, nos meados de junho. O frio era terrível e foi numa noite de quarta-feira que os membros do sindicato se reuniram. Dentre os associados, a maioria era apolítica. Para eles, a simplicidade do homem do campo é incompatível com essas atividades, que destinavam principalmente aos doutores e letrados da cidade grande. Não era o que pensava Rômulo e o presidente do sindicado, o Sr. Edgar Sampaio.

O que incomodava os dois representantes sindicais era a intromissão da ditadura em assuntos civis. Nessa reunião, Rômulo disse...

_ ... o quero dizer, queridos amigos, que esse governo que está aí não está preocupado com a sua gente. Não temos direito a nada. Pagar imposto e ficar quieto. Não pode criticá-lo. Seria tal sistema tão perfeito a ponto de ser imune a criticas? Claro que não. No mundo atual em que vivemos é incompatível um sistema desses. Devemos ter plena liberdade de escolher nossos representantes. Mesmo o presidente da república, o mais importante cargo político do país. Devemos ser governados por nossos pares e não por um general posto no cargo pela força...

***

O sindicato, aproveitando o preço das commodities, formou uma grande reserva de soja, que podia ser facilmente convertida em dinheiro. Rômulo e Edgar começaram ao poucos a usar essa riqueza para financiar um grupo que combatia a ditadura. Era a ALN - Aliança Libertadora Nacional.

Essa vocação anti-regime era mantido sob sigilo dentro do sindicato. Todos os membros eram de alta confiança e uma espécie de código proibia a todos comentar fora de seu recinto os assuntos ali discutidos.

Não cuidavam desse assunto em público. Além de um código da associação, havia o medo da perseguição política. Talvez fosse esse o principal motivo de eles manterem em sigilo os assuntos dessas reuniões. Nas atas registravam apenas as questões ordinárias de assembléia. A questão política e o apoio àqueles que combatiam a ideologia ultrapassada dos militares era segredo absoluto.

No final da reunião ficaram Rômulo e Edgar a conversar sobre os próximos passos do financiamento.

Viria para Bragança na semana seguinte um tal de Paquiderme, segundo apuraram, um membro a ALN. Ele responsável por coletar as ajudas financeiras para restabelecer a democracia.

Depois que ficou acertado a quantia e a forma que seria entregue a Paquiderme o dinheiro, os membros do sindicato foram saindo, um a um. Deu-se, que no fim de tudo, ficaram Rômulo e Edgar. Minutos antes o secretário do sindicato, um moço magro e aparentando uns trinta anos tinha se despedido.

Não havia mais ninguém. Somente eles justificavam uma única luz acesa na ante-sala que dava para a rua.

Foi neste momento em que Rômulo ouviu um barulho estranho vindo de uma sala depois da sala de reuniões. Ela era uma saleta com um computador, mesa, cadeira e armário, onde tudo que foi dito era digitado pelo secretario. Nela havia um pequeno lavabo.

- Tem mais alguém aí - disse Edgar a Rômulo, olhando para o relógio e verificando que se passava das onze horas da noite.

- Com certeza não, retrucou Rômulo, com um olhar preocupado e titubeante quanto à idéia de verificar se realmente alguém estranho estava na outra sala, se era o vento ou um animal pequeno, como um gato.

***

Eles olharam para o lado direito da sala, que ficava próximo a um corredor de onde a janela deixava entrar a claridade da iluminação da rua. Um vulto acabara de passar.

Seus passos eram receosos. Rômulo adiantava-se em relação a Edgar. Os moldes em que foram criados não dava a eles a opção do medo. Não era permitido senti-lo, quanto mais demonstrá-lo. Os pais muito severos lhes deram a educação de ferro sustentada na máxima de que homem não chora. Se não chora, então não sente medo.

Mas o momento fugia ao controle. Ambos sabiam que as suas convicções políticas podiam implicar em retaliações do regime. O governo militar não estava para brincadeira e não tolerava aqueles que não apoiavam o Estado.

Quando chegaram bem próximo a janela de madeira, com vidros quadrados e translúcidos, viram novamente a sombra de alguém que a luz da rua projetava pela janela e deixava entrar na sala de reuniões do sindicato.

Foi um estalo de algo quebrando que fez Rômulo sentir a espinha gelar e subir um arrepio estranho pelo corpo.

Você ouviu isso, Edgar? - disse ele, com a voz trêmula, e baixa, segurando a mão sobre a boca, fazendo uma concha para não permitir que o som saísse mais forte que o necessário.

Ouvi sim... será que tem alguém no corredor? - disse Edgar com a voz mais abafada que a de Rômulo.

Vamos verificar...

***

Edgar e Rômulo estavam na sede do escritório por volta das onze horas da noite. Naquela data tinha ocorrido uma reunião ordinária e depois dela os membros ficaram discutindo o papel do sindicato no apoio aos rebeldes contra o regime militar que havia se instalado no Brasil.

Todos os assuntos da ordem do dia foram discutidos; ficaram somente Rômulo e Edgar.

Eles ouviram um barulho estranho e incomum que parecia ter se originado no corredor ao lado, que dava acesso para a rua e era fechado somente com um portão de metal em formato de grade.

Ao verificar o que estava acontecendo, viram que havia alguém com uma roupa camuflada, parecida com aquelas usadas por militares. Ficaram estarrecidos.

Rômulo tremeu quando imaginou que podia ser alguém a mando do governo. Deveria ter alguém deles infiltrado no sindicato. Ou, talvez, algum de seus companheiros poderia ser um traidor. O coração disparou ainda mais. Não conseguia pensar direito. As imagens de sua família começaram a passar rapidamente num telão que a mente simulou. Viu as duas filhas nascendo, e depois crescendo. A beleza de Sílvia que uma foto na carteira deixava naturalmente embevecer. Não viria seu filho crescer. Logo ele, um menino... um sonho de qualquer pai...

Seria agora o fim de tudo. As emoções todas ao lado família, o passeio com o cachorro. Nunca mais viria sua família. Ele não conseguia acreditar como poderia ter acontecido.

Essa inquietação lhe acometera devido ao pavor que as pessoas que lutavam contra o regime militar tinham. Os anos de chumbo deixaram muitos mortos e outros tantos desaparecidos. E esse período cruel não tinha acabado e Rômulo sabia disso.

Enquanto os pensamentos de Rômulo fizeram-no uma estátua, ele ouviu um estalido seco atrás de si, como se alguém tivesse sido atingido com um pedaço de madeira.

Ele olhou para trás e viu Edgar com os olhos inexpressivos e resignados. Quando Edgar começou a inclinar e cair para frente, Rômulo pôde ver dois homens fardados e com boinas. Um deles estava mais adiante e trazia uma arma grande, como um fuzil, nas mãos. O soldado empunhava-a como se acabasse de atingir alguém com a coronha. Isso explicava a queda abrupta de Edgar. Na lateral do braço de um deles havia uma bandeira do Brasil com os dizeres: BRASIL. AME-O OU DEIXE-O. Os anos de chumbo deixavam sua marca na história daquelas pessoas.

***

Edgar acordou depois de algumas horas no Hospital Nossa Senhora de Lourdes em Bragança. Tinha uma dúzia de pontos na parte posterior da cabeça. Os sentidos foram voltando aos poucos e os vultos se aproximavam e distanciavam acompanhados de sons sem sentido.

Ele foi encontrado desmaiado no chão do sindicato depois da meia noite. Sua esposa Irene achou muito estranho ele não ter voltado para casa até aquela hora. Convidou o único filho, Gerson, para acompanhá-la até o local onde ocorreria a reunião.

Irene temia que algo acontecesse. A censura não conseguia encobrir todos os malefícios da ditadura. Alguns órgãos de imprensa noticiavam com freqüência o desaparecimento e morte de pessoas. Todos, supostamente, eram terroristas ou anarquistas.

Embora soubesse nitidamente que seu marido não tinha nenhuma dessas qualidades, não era menor a ciência de que a ditadura não tinha um arquétipo que os identificava. A mera suspeita era suficiente para capturar, abater e sumir com o corpo, tudo pela defesa na ordem social do país.

O quarto do hospital era bastante simples, assim como todo o prédio. Não tinham muitos recursos. Havia outras duas camas ali. Mas apenas Edgar ocupava aquele cômodo.

Era uma cama de ferro, com lençol grosso de pano branco com as iniciais H. N. S. L. B. (Hospital Nossa Senhora de Lourdes de Bragança). Ao lado da cama, havia uma velha cadeira de madeira, na qual estava Irene; estava sentada de lado, apoiando o cotovelo esquerdo na costa da cadeira e o rosto descansava sobre o mesmo braço.

Ela dormitava tranquilamente e levou um susto quando Edgar acordou.

- Rômulo... Rômulo, os militares estão aqui. Fuja...

-Calma, disse Irene, levantando-se rapidamente e pegando em sua mão para apoiá-lo. Depois que caiu uma lágrima do rosto dele, ela o trouxe para junto de si, confortando-o, como se noticiasse o pior.

- Ele morreu, não é? Eles o mataram... aqueles malditos...

- Fique calmo, homem, pelo amor de Deus!

- Então ele está vivo. Ele está aqui no hospital? Quero vê-lo agora...

Irene consegui acalmar Edgar e informá-lo de que não era conhecido o paradeiro de Rômulo.

Contou a ele todo o sofrimento de Silvia e das meninas. O pequeno Renato tinha ficado sem pai tão cedo. Era uma tristeza muito grande.

Irene inteirou Edgar de todas as notícias que ouvia no rádio. Apenas uma emissora local veiculou uma nota informativa sobre o assalto no sindicato.

- Assalto uma ova! - disse Edgar enquanto pedia suas roupas e se inclinava para frente para deixar a cama e depois o hospital, quando foi recolocado na cama por um enfermeiro alto e forte que apareceu correndo depois de ouvir que alguém falava alto.

- É melhor o senhor ficar calmo. Tivemos um trabalho colossal para estancar o sangramento em sua cabeça. O senhor tem muita sorte de estar vivo.

O enfermeiro disse em tom firme o que Edgar devia fazer. Injetou novamente a agulha de soro em sua veia, que havia saído com o tranco que ele deu para se levantar.

Minutos depois ela estava dormindo novamente. Era provável que deram algum calmante, pois sua agitação oferecia risco a sua saúde.

***

Quando Edgar finalmente teve alta uma semana depois, o cabelo na parte posterior crescia. Ele tinha um visual estranho, pois a cabeça teve a parte de trás toda raspada. Parecia um punk revolucionário. Mas não era. Era um homem triste e inconformado.

O tempo que ficou no hospital foi de grande pesar. Não sentia alegria alguma. Parecia que aquelas coisas terríveis que assolavam pessoas em São Paulo ou no Rio de Janeiro jamais chegaria aos confins de Bragança. Uma cidade no meio do nada, como pouca relevância. A ditadura realmente silenciava qualquer grito pela democracia. Quem a defendia pagava um alto preço. Muitas vezes com a própria vida.

A primeira coisa que ele fez foi procurar Sílvia. Quando chegou até o sítio dos Aires da Costa, viu que estava praticamente abandonado.

Um vento soprava silenciosamente. Era uma zéfiro estranho, com um canto de tristeza. De longe ele avistou a casa. Quando parou em frente dela, viu que não tinha ninguém. Estava completamente fechada. O silêncio marcante denunciou o fim de período extremante feliz naquelas terras.

Os trigais que enfeitavam as encostas já não verdejavam. As folhas haviam secado e os cachos maduros trinavam uns contra os outros, quebrando preguiçosamente a quietude que o vento denunciara.

A tristeza nasceu do silêncio e ganhou forma nas lembranças de Edgar. Desde que Rômulo recebera aquelas terras como herança, esta parte da zona rural de Bragança havia ganhado magia. Uma espécie de aura adornava a localidade e tinha sua energia mantida pelo carisma e felicidade dos Aires da Costa.

As meninas correndo pelas estradas de terra em suas bicicletas acionando suas buzinas. Os cães ladrando atrás. A chaminé soltando fumaça, dando vida ao vale. O carro barulhento de Rômulo, que cortava o chão rumo a cidade toda quinta-feira para buscar mantimentos. Ou às sextas-feiras, para as reuniões do sindicato.

Embora fosse à noite as reuniões, isso não mais preocupava Sílvia, pois as meninas se faziam companheiras alegres e providenciais.

Mas essa realidade não existia mais. O pasto na parte baixa estava queimado pela geada. Nele o gado leiteiro não pastava.

Os pássaros silenciaram e o balé das plantas estava triste e sem som. Quem já o via, a esta altura pensava que ele estava desafinado e sem sentido.

***

Edgar contemplou o lugar mais uma vez e virou-se para deixar o sítio de Rômulo, quando notou que alguém se aproximava. Era o marido de dona Aparecida. Tinha um nome esdrúxulo do qual Edgar não se lembrava facilmente.

- Bom dia, - disse Edgar, levantando o chapéu, o que causou espanto no homem, ao ver sua cabeça com parte raspada.

- Bom dia, para o senhor também...

- Não tem mais ninguém morando aqui?

- Não senhor. Desde o acontecido, a família não está mais aí. Fiquei sabendo que a mulher ficou com medo e pegou as crianças e foi embora para casa de seus pais em Brasília...

- Brasília?

- Sim senhor. Parece que tem um tanto de parentes lá. Tem um deles que trabalha para o governo. Talvez isso tenha feito eles pensarem que é mais seguro por lá.

- E as terras?

- As terras vão ser arrendadas para uma grande empresa; os animais e implementos já foram vendidos para um fazendeiro que tinha contato com a família.

Edgar então percebeu que não mais tinha o seu vice-presidente no sindicato. E o pior: perdera seu melhor amigo e conselheiro. Uma pessoa inteligente, prudente e sensata.

Ele novamente desfez o chapéu da cabeça, como que pedindo licença e se despedindo; os fios grisalhos que não tinham sido raspados denunciavam sua idade.

Anos se passaram sem que se ouvisse qualquer notícia dos Aires da Costa.

Edgar recuperou-se bem da batida na cabeça. Renunciou à presidência do sindicato.

Seus últimos anos de vida foram soturnos.

Muitas as tardes em que viram-no sentado em uma cadeira de balanço feita de madeira nobre na varanda de sua casa.

A tristeza fez com ele levasse seus últimos dias como alguém que carregava um fardo pesado. Pesaroso, tentava se manter alegre para não deixar que contaminasse Irene e o filho.

Morreu algum tempo depois.

(em breve a segunda parte)