SINHOZINHO BRANCO & AMIGUINHO NEGRO

RUBEMAR ALVES

ELE nasceu numa fazenda centenária em Monte Mor, interior de São Paulo, muitas décadas após o “famoso 13 de maio”, e – não sabia explicar – constantemente via mais do que vultos, quase corpos concretos.

Uns poucos bem pertinho, pele muito escura, uma menininha de grandes olhos redondos, um pouco mais clara (único rosto que distinguia com perfeição), e outros em pequena multidão, também negros, mais distantes, cabeça baixa (nenhuma nitidez nos rostos), como quem evita olhar algo desagradável, mas é obrigado a estar ali presente. Ao mesmo tempo, ouvia gritos do feitor branco, som de chicotadas brabas, gemidos de homem adulto... e choro de dois meninos, sentia que UM era ELE próprio.

Escutava a voz, severa:

“Sai daqui, SINHOZINHO.”

O OUTRO o chamava: “S’imbora, ZINHO.”

“Não vou, não, TIÃO!... Fique aqui você também.”

Em menino branco teimoso ninguém encosta um dedo.

AMBOS ficavam até o fim do maldito “espetáculo”, secretavam juravam matar o feitor, depois davam água ao espancado e ajudavam a colher no mato as ervas para curativos.

Tinha certeza daquelas cenas.

Desesperava-se, ninguém dava atenção, não acreditavam, diziam que era excesso de imaginação (criança até sete anos é anjo: adulto não acredita!)

“Vai dormir, que passa...” – era como se jogassem álcool em ferida aberta, assoprando depois. Nem a mãe gravidíssima o acarinhava nesta ansiedade. Desistia fácil. Medo de chinelada.

Mas que ELE via, via, e que ouvia, ouvia!

Saía andando pelas plantações de café, com os anos a fazenda herdada era bem menor, enrolava-se numa pele de carneiro (achava já ter usado peles iguais em época mais antiga, tinha porém apenas cinco anos de idade...) e ia dormir quentinho numa espécie de galpão semidestruído (“Lugar feio e sujo” – pensava sempre, sentia conhecer há muito tempo), às vezes fotografado por visitantes que se diziam historiadores (não sabia o significado da palavra, gente que olhava tudo e escrevia em cadernos).

“Homens e mulheres grandes contando estórias para quem?”

Dormia, sonhava nitidamente com uma menina mais clarinha (mestiça?), jasmim no cabelo, quase mesmo tamanho, ELA pouco menor, que sorria para ELE docemente.

“Irmão, irmão...” - ELA falava.

Sentia que se amavam fraternalmente – quem era? como? quando? onde?

Acordava aos gritos: “Bel! Bel!”

Aos cinco anos, “lembrava” uma mulher negra, gorda, sempre de avental, acarinhando UM menino branco e UM menino negro, menina retraída espiava pela janela baixa, contando estórias de deuses negros, que moravam do outro lado do mar, na África.

Aí, de repente a memória sumia e agora eram as estórias da avó fazendeira na hora de dormir, lia Monteiro Lobato para ELE, uma colherada de doce de leite ainda morno, goles de caldo-de-cana fresquinho às escondidas da mãe, por dois meses ELE ainda seria filho único, sempre o neto mais velho altamente paparicado.

O avô, mulherengo, arrumara um filho na cidade próxima, mãe da criança morreu de parto (mais de tristeza, pois o safado prometera mundos e fundos até se deitarem), trouxe para a esposa criar.

A mãe do meu futuro amigo e o meio-irmão tinham a mesma idade, só que em tempos modernos era escola todo dia, o rapaz quase se formando em curso superior: engenheiro agrônomo, por vocação e útil para a região toda.

“Nos antigamentes era assim, um filho na barriga da mulher na casa-grande, outros na senzala com a escrava de simpatia – filhos eram depois promovidos como criados de dentro, para serviços domésticos. Existe até a pintura de uma tal Isabel, já mocinha, linda......... Da esposa, meu antepassado só teve um menino.”

Já chegara bêbado, caía no sofá sem completar o assunto.

(A valentia se acabava diante de sapo, rã ou perereca, a mulher sempre colocando nos calçados dele ou na rede da varanda. Corria na hora para o banheiro, vapt-vupt, mãos abertas na barriga, e aos gritos logo pedia roupa limpa!)

O menino associava os nomes Isabel, Bel, sem compreender.

Nascido o irmãozinho, os pais e ELES foram morar na cidade próxima. Despediu-se do lugar com quase sofrimento. As visões sumiram todas e o menininho até sentiu saudades.

Anos depois, formado professor, pesquisador de antropologia, meu amigo mudou-se para a capital do Estado, indiquei bairro onde EU morava há algum tempo.

Sonho recorrente, outra vez desde jovenzinho, sempre em meados de maio. Acordou atrasado, ainda com a visão de uma linda mocinha morena (hoje falamos pré-adolescente) afogada num rio. Pessoas cantavam em coro, ao som de tambores. Ou atabaques? – “(*) EWÁ levou ELA.” Féretro estranho, de rituais.

Mas que ELE viu, viu, e que ouviu, ouviu! Pesadelo? Quem sabe?

Sem tempo nem para um café solúvel. Pão de aveia muito menos.

Táxi. Acenou para dois que não pararam, veio um terceiro. Ah, o fatídico número três!

Motorista deu o primeiro bom dia, ELE retribuiu e disse para onde queria ir. Sentou-se no banco da frente porque detestava inferiorizar quem o servisse.

“Longe, hein?! Fábrica de quê? Marmita nessa bolsa grande?”

Simpatizou de cara com o rapaz negro cujo rosto em sorriso vagamente lhe lembrava alguém, disse que era professor, alunos o chamavam de PROFESSORZINHO pois tinha estatura baixa, na bolsa carregava livros, almoçava em casa antes da escola da tarde.

Falaram de futebol, do novo prefeito, incomodativas e eternas obras urbanas, entra governo, sai governo, pouco muda, motorista contou travessuras dos filhos SEBASTIÃO e ISABEL, nomes pelas datas de nascimento, dois santos cristãos, passaram numa loja masculina recém-inaugurada, portas ainda fechadas, riram da grande fila na calçada, motorista ofereceu bolo, apenas uma fatia, dividiram em partes absolutamente iguais, como velhos amigos, e de repente entrou reclamação do clima (geralmente fala-se isto para iniciar um bate-papo), calorzão... ‘pra’ quê tal assunto?

Mudou tudo instantaneamente. AMBOS sentiram um calor anormal.

Voz do motorista ficou um pouco diferente, sorriso espontâneo virou ar mais sério.

“Lembra de mim?”

“Não... Será que peguei seu carro algum dia?”

Quer leitor acredite ou não, foi um encontro de almas.

Carro parou no acostamento. Rua tranquila, sem perigo.

Motorista agora “explicava” ser o companheirinho negro que o sinhozinho deixara na fazenda sem ter outro amigo da mesma idade para brincar. Aparecia às vezes, em visita aos avós, ambos mais crescidos, agora pouco se falavam. Contou da mocinha, meia-irmã de UM e de OUTRO, o feitor queria abusar dela, atirou-se ao rio sem se entregar.

Nesse mesmo dia, uma cobra venenosa entrou na calça do feitor e mordeu exatamente no local do “quase crime” – o corpo foi jogado a descoberto na mata, conforme determinou o senhor branco, para delícia das aves de rapina.

E assumiu oficialmente a filha amada (nunca negara!) ao mandar rezar missa com toda a família e todos os escravos rezando piedosos. BEL, um doce anjo, era amada por todos e só um homem bem velhinho (hoje chamam de preto velho) sabia de antemão o que estava reservado para ELA, desde que viu a luz do mundo ao primeiro sorriso de vida (estranhamente não chorou ao nascer: na mata, fora da senzala). Destino!

Ora, ELE, o amiguinho negro, soube que sinhozinho branco só recebera a notícia por carta de uma tia um mês depois, carta veio a cavalo - era moda, entre os ricos, enviar notícia de luto em elegante envelope com tarja preta. Chorou muito na ocasião.

“Sim, Pai Oxalá permitiu que um dia EU reencontrasse você na sua nova reencarnação. Nossa irmã está aqui do meu lado e manda um abraço de carinho. Agora é adeus!”

Motorista debruçou-se sobre o volante e sem querer buzina disparou. Levantou a cabeça, espantado, como quem acorda.

ELE arrepiou-se ao longo de toda a coluna vertebral. Entendeu tudo e ao mesmo tempo recusou-se a entender. Agnóstico.

Olhou taxímetro, entregou o dinheiro alto - “Não precisa troco... Balas para as suas crianças...” Saltou ainda muito longe da escola. Acenaram-se amistosos.

Pelo sim pelo não, pediu informações a amigos religiosos.

Eram almas de escravos, indicaram mãe-de-santo baiana que ficou de fazer umas rezas, não cobrou nem pediu nada, mas, escravos provavelmente batizados, ELA sugeriu também missa católica num sábado, dia de EWÁ.

Procurou a igreja de São Benedito, etíope, achou uma exatamente no centro de Campinas, encomendou a tal missa (a que não assistiu, por assumido medo) e acendeu logo um pacotão com cinqüenta velas – para o menino que ELE fora no passado, para ISABEL e para o companheirinho negro, SEBASTIÃO.

Nesse dia, céu em estranho tom rosado, cor de EWÁ.

ISABEL devia estar agradecendo finalmente a sua paz.

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(*) EWÁ – jovem iludida e desvirginada por XANGÔ, refugiou-se na mata; orixá feminino que protege as virgens.

F I M