Olhos Fechados Dentro de um Sonho

- Posso entrar?

- Pode sim...

Ela corre a porta do box e cede as costas da mão à água do chuveiro.

- Ai, que delícia!

Diz, arrancando as roupas.

É uma noite fria de outono, e não estamos exatamente bem. Transamos há pouco, e foi estranho. Foi diferente.

Gozar e ser acometido por uma torrente de pensamentos não é algo saudável; a animalidade da carne tolhe a racionalidade. Racionalidade pós-coito é sinal de mau agouro.

Eu pensava nisto deixando a água cair pesada e quente nos meus ombros.

A porta corre e ela entra, na ponta dos pés, já me expulsando da água que cai, tremelicando, com os mamilos eriçados.

- Me abraça?

Ela pede.

Espirro. E abraço. "Wish you get me out of here", no som, no quarto, invade o banheiro.

O nosso encaixe é perfeito. O nosso abraço é perfeito.

O nosso beijo é perfeito. A nossa sintonia é perfeita.

Eu sinto vontade de chorar, porque algo está ruindo.

E eu não sei o que é e não sei por quê.

A água continua caindo, e dos meus olhos, de onde deveriam realmente cair, nada.

O olhar seco feito o sertão.

Tento me desvencilhar do abraço e não consigo. Ela me puxa e me aperta, e afunda o queixo no meu ombro.

A água cai; a água que fará falta em gerações vindouras alisa nosso corpo por meros segundos e desaparece ralo adentro.

Assim como o tempo que gastamos trabalhando com o que não gostamos, como o tempo que gastamos discutindo frivolidades, como o tempo que gastamos gastando o tempo sem gastá-lo, estagnados em estigmas inescrutáveis. Da alma, do espírito, do ser, do cerne.

Ela se afasta e posso olhá-la nos olhos, cujos cantos estão sujos de rímel.

- O que foi?

- Nada.

- Como "nada"?

- Não é nada.

E me abraça forte novamente.

Quando consigo escapar de seus braços, saio do banheiro enrolado na toalha e desligo o som.

Somente o barulho do ar-condicionado, do chuveiro e dos carros lá fora.

E do meu silêncio gritando dentro de mim.

Porque eu deveria ter falado algo que a confortasse.

Porque eu deveria ter falado algo que a confrontasse

Porque eu deveria ter falado algo que a tirasse o peso, a forca.

A agonia.

Eu não podia - como poderia, não sabendo nem ao menos como me ajudar? Eu não sabia o que sentia e se sentia; não sabia se havia erro ou se era só uma má fase que se arrastava dia após dia. Eu sequer conseguia concretizar um raciocínio. Como formularia palavras, frases, que seja, que pudessem fazê-la se sentir melhor?

O chuveiro é desligado enquanto ponho a cueca e deito de bruços, abraçando o travesseiro.

A porta é aberta e fecho os olhos, fingindo dormir.

Uma perna é passada por cima das minhas costas e um beijo é dado na minha nuca; meus cabelos são afagados.

É o momento que eu deveria virar, abraçá-la e dizer que tudo está bem. Mas só sinto um desejo vago de fazer isto; a luz vermelha que passa por milésimo de segundo ao girarmos um prisma.

Me aninho ao travesseiro, me aninho às pernas, me aninho à (minha) escuridão.

Sinto o estalar do som ligando.

"I've got another confession to make. I'm your fool".

Fecho os olhos dentro de um sonho.

31/03/2012 - 16h00m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 31/03/2012
Reeditado em 31/03/2012
Código do texto: T3586778
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