O Suicida

Deitado naquela cama olhava o teto, mas o pensamento estava acelerado. Pensava na forma menos dolorosa de por um fim naquela aflição. Cortar os pulsos não tinha coragem, uma substância tóxica talvez causasse menos dor. Mas estirado ali naquela cama, não eram só os pensamentos ruins que o consumiam, sofria também de uma paralisia incompreensível. Queria sair daquela cama e procurar um jeito de pôr um plano suicida em prática, mas até para isso era incompetente e medroso. Incompetente por que não fazia ideia de como nem onde encontrar uma substancia que fosse eficaz para o seu propósito. E medroso por que sentia medo da dor que poderia sentir.

Alem do medo e da incompetência, uma incerteza pairava em sua cabeça. A incerteza do que viria depois. Tinha receio de que o depois fosse um vazio consciente, algo parecido com o que sentia naquele momento. A grande questão era: e se o pós-morte for um infinito vazio consciente, principalmente para os covardes como ele? Não sabia explicar, mas sentia em seu âmago que nada mudaria se desse cabo à própria vida, ainda que esta fosse uma vidinha tacanha e medíocre.

E submerso nesse dilema entre o sofrimento neste mundo e o possível nada consciente do além, que era o seu grande medo, jazia ali naquele leito que mais parecia um ataúde do que um móvel utilizado para o descanso temporário do corpo cansado da lida diária. E jogado ali naquela caminha de solteiro, naquele quarto de pensão, ele não se parecia com alguém que repousava na esperança de algumas horas depois se levanta renovado e cheio de disposição para enfrentar os “leões” de mais um dia. Largado ali, mais parecia com um defunto, inerte, porem com consciência, sentimentos, sofrimentos. Era de fato uma imagem fúnebre!

Os pensamentos que pairavam em sua doentia cabeça lhe provocavam sentimentos quase que indecifráveis. Qualquer tentativa de decifrá-los era vã, tal a profundidade, a dor que causavam. A profundidade da dor era tamanha que lhe doía a alma, daí o seu desespero por que não haviam inventado nenhum remédio para esse tipo de enfermidade. Uma dor tão estúpida e absurda que ele não conseguia sequer gritar por socorro ou mesmo chorar. Tinha a impressão de que aquele turbilhão de amarguras que sentia era um castigo pelas coisas ruins que já tinha feito até aquele momento de sua vida. Pensava que aquelas desditas eram provocadas por uma entidade sobrenatural, que só poderia ser demoníaca, que lhe infligia aquele castigo brutal e não lhe permitia sequer derramar uma lágrima, apesar de lhe admitir sentir a vontade de fazê-lo.

Na sua mente ocorria algo como um redemoinho de pensamentos e nenhum deles se completava. Enquanto pensava em algo, logo outro pensamento já se interpunha sobre o anterior. Ele tentava controlá-los, mas as tentativas eram infrutíferas. Era como se dentro dele existisse um outro ser intrinsecamente ligado a ele, mas antagônico. “Ele” queria relaxar ficar tranqüilo. O “outro” era bagunceiro, agitado, perverso, mau em essência. E “ele” sentia que estava perdendo a briga, pois o “outro” predominava, era mais forte. “Ele” estava sucumbindo, estava enfraquecido e sabia que perdia a luta e temia por que perdendo a guerra, logo esse “outro” o levaria além da tênue linha que distingue sanidade e insanidade, razão e loucura.

Perdida a batalha predominava dentro dele a raiva daqueles que mesmo sabendo de suas questões mal resolvidas internamente, o abandonaram, o ignoraram. Sentia inveja daquelas pessoas que riam copiosamente, sem um motivo para tal. Para ele aqueles risos eram ofensas. No meio de tanta injustiça, de tanta coisa fora do lugar, sem sentido, todos riam. Sentia pena e raiva de si mesmo por ser daquele jeito, sem graça, indesejável, deprimido, sem noção do real. Havia um ódio absurdo e injustificado dentro de seu coração. Amaldiçoava o dia em que nasceu. E odiava o seu pai por te-lo posto no mundo sem possuir o mínimo preparo para educá-lo, e por ser tão rude, agressivo, incessível. Lamentava não sentir amor, nem pelos irmãos, nem pela mãe, nem pela mulher que fazia tudo que podia para agradá-lo, para vê-lo bem e feliz. Mas felicidade era algo que não estava gravado no seu código genético. Desconfiava de que seus ditos amigos eram apenas pessoas bem resolvidas em todos os sentidos da vida, pessoas “iluminadas”, de bondade incalculável que de algum modo entendiam seu sofrimento, suas paranóias, seu desequilíbrio mental, por isso se condoíam e faziam o possível para ele se sentir uma pessoa normal, assim como elas.

Quando tinha momentos, lapsos de sanidade, planejava, imaginava o futuro e sonhava em escrever uma grande história que lhe rendesse fama e a possibilidade de viver da literatura. E falava de seus planos e de outras coisas para as pessoas mais próximas. E isso, para ele, aumentava a certeza nas pessoas de que ele era muito desequilibrado, para dizer o mínimo.

Vivia uma vida opaca, sem nenhum entusiasmo. Seu rosto estava sempre serio, taciturno, deprimido. Quando ria, era um riso vazio, sem motivação. Nessas horas lembrava das palavras de um desafeto seu: “você é um falso!”. E quando pensava nisso era certeza que lembraria também de uma discussão ofensiva que tivera com este mesmo desafeto, que desejou que ele morresse quando disse que não pedira para nascer. Quando ele se lembra daquela briga, daquelas palavras, sente que não lhe resta outra alternativa.

De certo modo era o que ele fazia diuturnamente, por ser covarde, matava-se aos poucos, isolando-se, fugindo de qualquer ocasião onde poderia ser observado, apesar de desejar ser. Morria aos poucos quando tinha a oportunidade de dizer ou mostrar o que sabia, mas lhe faltava coragem para se mostrar. Tinha medo, primeiro de errar e segundo do julgamento alheio que podiam considerá-lo vaidoso, exibido ou mesmo acusa-lo de quer ser o centro do mundo, como fizeram certa vez. Morria lentamente quando, por pura paranóia, achava que alguém dele não se agradava ou zombava. E desse jeito ia juntando desafetos por todos os lugares por onde passava.

E naquele momento, jogado naquela cama, pensava que precisava tomar uma decisão. Olhava para o teto e para as paredes do quarto e não vislumbrava saída alguma. Não conseguia enxergar em seu futuro momentos de paz e tranqüilidade, ainda que tivesse tudo para estar feliz, mas não estava, faltava algo que ele não fazia a menor idéia do que seria. Ou imaginava o que seria esse algo, mas pensava que não era para gente igual a ele, esse algo não lhe pertenceria nunca por que não se sentia merecedor. E chegou à conclusão de que entre morrer lentamente ou morrer rápido, é preferível morrer de uma vez. Mas então retornou ao dilema: e se for pior, e se não resolver o problema? Ele é tão pusilânime, ridículo que não consegue nem mesmo ser um fracassado na vida. Um suicida!

Taciturno Calado
Enviado por Taciturno Calado em 31/03/2012
Reeditado em 21/05/2012
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