Reflexo de um Autor

A tempestade desabava lá fora. Aquele ser, um projeto de homem, olhava para fora daquele estreito cômodo que mais parecia um corredor mergulhado em escuridão. À direita daquele, uma estante de ferro sustentava livros que ele jamais leria: estavam ali para fazê-lo acreditar que era um escritor. À esquerda, o monitor anunciava com um piscar laranja que uma nova mensagem havia chegado. Ali estava ele: entre duas realidades às quais ele não mais pertencia.

Na mão direita, um copo. A água dentro do copo estava tão gelada que seria sentido seu arrastar frio pela garganta. O cômodo era como uma geladeira. Imóvel, a silhueta contra os relâmpagos que entravam pela janela não sentia o que segurava. Não só a mão estava dormente pela exposição ao clima como todo o corpo se mantinha em tal estado, talvez pela frieza daquele coração que ainda teimava em bombear sangue.

Ele podia não mais sentir, talvez pela overdose de sensações, mas pensar conseguia. Conhecimento demais! Não tinha ideia de onde tanto inútil conhecimento teria vindo em tão curta idade! Para os menos científicos, veio provavelmente de vidas passadas, florescendo instintivamente do inconsciente quando apresentadas as situações convenientes na atualidade. Os céticos afirmam que os traumas da infância fazem com que nos amadureçamos cedo. Independente da resposta, lamentava por não possuir sabedoria. Uma gota de sabedoria pelas toneladas de conhecimento!

O conhecimento traz medo. Medo do que aconteceu antes, do que vai acontecer depois. Era grande demais, aquele medo. Para ideia do tamanho, quando aquele copo se espatifou no chão e passou pela cabeça da insólita criatura em dar fim em sua existência utilizando-se dos cacos, o medo do que haveria depois da morte o manteve congelado, a mão direita ainda como se segurasse o agora fatal utensílio.

Alaranjado pulsar na base da tela de LCD se renovava. Alguém estava preocupado com a sombra que observava as pesadas lâminas de prata atiradas com fúria contra os mortais por negros lençóis celestiais. A preocupação, no entanto, não era reconfortante. Muito pelo contrário: era estorvo. A sombra precisava de mais, do que ela havia perdido.

Aquecida gota escapava de seu olho direito, descendo pelo rosto com dificuldade, abrindo caminho entre os lábios. Pitada de sabor salgado o fez acordar por um momento, o bastante para que ele abaixasse a mão direita finalmente. Egoica lágrima.

Tinha medo de mudar. O passado e suas glórias lhe prendiam. Tempo em que foi rei. "Por quê?", perguntava-se, encontrando ponta de consciência. Por que todos o adoravam? Por que aquele mundo virtual era o único lugar que lhe dava combustível vital? Naquele tempo todos o amavam. Amavam aquela história.

Aquela história! Fruto de sonhos e fantasias vindos dos últimos anos do século XVIII! Insensíveis! Todos sentiam o que ele sentia, mas ninguém foi capaz de lhe estender a mão! Todos, sem exceção, observavam cada personagem sofrer, cada parte de sua psique morrer, mas continuavam alheios ao que fazia isso tudo brotar daquele solo fértil de imaginação gratuita!

Agia como psicopata, aquele louco! Psicopata criativo, se é que um termo desses possa ser empregado. Quantos personagens aquele insensível que chorava por si matou, Deus meu! Em suas riquíssimas narrações agonizantes e fúnebres estava um histérico neurótico que com milimétrica precisão dilacerava as almas inocentes que criava para essa única finalidade! Agora, com todas elas no escuro limbo de seu próprio subconsciente, ele ainda procura por redenção. Esqueceu todos a quem traiu, todas as mentiras que proferiu! Estava somente preocupado consigo mesmo!

...

Escrever, para ele, há muito não era somente uma atividade criativa. Há muito tornara-se uma penitência a ser paga, um escapismo psicológico para que não enlouquecesse de vez e sua lúcida máscara caísse, tornando-se cacos como aquele copo. Cada morte em sua história era uma forma de destruir temporariamente uma parte de si que o atormentava. Agora, porém, todos os espíritos sinteticamente criados por ele, espíritos cuja essência é composta por demônios particulares alimentados pela emoção causada em todos os assíduos leitores daquele fórum de internet, procuram vingança contra o assassino.

Imaginou-se como rei novamente. Um extenso manto azul repousava em suas costas. Uma coroa enorme sobre a cabeça trazia as iniciais do seu antigo reino. A escuridão do recinto foi tomada pelo majestoso brilho dourado de sua presença. Seus súditos o expulsaram, baniram seu lendário romance, mas guardam ainda, no mais profundo de seus corações, a fidelidade por ele. Nunca o esqueceriam. O de cima que veio de baixo e que de santo foi para pecador.

Abriu os olhos.

O reinado já não existia. A tempestade cessara. O último piscar no monitor era uma despedida.

O sopro da vida foi-lhe assoprado nas narinas. Os pulmões encheram-se dele plenamente.

Agachou. Recolheu os cacos. Enxugou a água.

Quando foi ao banheiro, evitou sua imagem no espelho. Fazia isso toda vez. Tinha medo. Medo do que encontraria ao olhar.

Medo do que sabia que ia encontrar.